Pentateuco

Como afligir a alma?

O que é afligir a alma? Como afligir a alma? Seria uma mudança de humor? Deixar de estar alegre para ficar triste? Autoflagelação? Seria jejuar, orar ou arrepender-se?


Como afligir a alma?

“Sábado de descanso vos será; então afligireis as vossas almas; aos nove do mês à tarde, de uma tarde a outra tarde, celebrareis o vosso sábado” (Levítico 23:32).

Introdução

Ao instituir o Sábado, Deus ordenou aos filhos de Israel que “afligissem suas almas”. Isso levanta algumas perguntas: O que significa afligir a alma? Como essa aflição deve ser realizada? Seria uma simples mudança de humor? Trocar a alegria pela tristeza? Ou talvez algo mais extremo, como autoflagelação? Seria isso relacionado a práticas como jejuar, orar ou arrepender-se?

No Novo Testamento, Jesus repreende a multidão para que não se mostre ‘contristada’ como os hipócritas, que desfiguravam o rosto enquanto jejuavam. Os escribas e fariseus utilizavam essas práticas para demonstrar publicamente que estavam jejuando: não ungiam a cabeça nem lavavam o rosto, aparentando tristeza diante dos homens (Mateus 6:16).

Contudo, é claro que ninguém será aceito por Deus apenas por estar com o semblante abatido, com aparência de sofrimento, deitado sobre pó e cinzas, vestindo roupas rasgadas, como se estivesse suportando uma dor extrema.

Então, como devemos nos afligir diante de Deus?

 

Sara e Agar

A relação entre Sara e Agar, apresentada no Gênesis, ilumina de forma notável o conceito de “afligir a alma”.

A narrativa bíblica descreve como, devido à impossibilidade de Sara ter filhos, ela entregou sua serva Agar, uma egípcia, a Abraão, para que, por meio dela, Sara tivesse um filho (Gênesis 16:1-3).

Após conceber de Abraão, Agar começou a desprezar Sara, sua senhora (Gênesis 16:4-5). Sara, descontente com a situação, apresentou sua queixa a Abraão, que deixou a resolução do conflito em suas mãos.

A Bíblia relata que Sara “afligiu” Agar, levando a serva a fugir da presença de sua senhora (Gênesis 16:6). O termo hebraico utilizado para “afligir” é [1] עָנָה (‛anah), que pode ser entendido como “oprimir” ou “humilhar“.

Agar foi encontrada junto a uma fonte no caminho para Sur por um mensageiro do Senhor. Quando questionada sobre de onde vinha e para onde ia, ela respondeu que estava fugindo de sua senhora. O anjo, então, lhe disse:

“Torna-te para tua senhora, e humilha-te debaixo de suas mãos” (Gênesis 16:9).

O termo “humilhar”, utilizado pelo mensageiro, é o mesmo termo hebraico ‛anah, que foi usado para descrever a ação de Sara ao “afligir” Agar, sua serva. Aqui, fica claro que a instrução dada a Agar era para que ela voltasse e se sujeitasse à sua senhora, o que implica em uma submissão voluntária.

Esse uso do termo hebraico com dois significados — a) afligir e b) submeter — levanta uma questão importante: quando Deus ordenou que os filhos de Israel afligissem suas almas, Ele estava pedindo que eles ficassem tristes, aflitos e temerosos? Ou estava, na verdade, chamando-os a uma atitude de submissão e obediência voluntária a Ele?

A partir do exemplo de Agar, podemos entender que “afligir a alma” não significa necessariamente experimentar tristeza ou aflição emocional, mas sim uma atitude de submissão à vontade de Deus.

 

Afligir como sujeição

Quando Deus estabeleceu como estatuto perpétuo a celebração anual da Festa da Expiação, no décimo dia do sétimo mês, Ele ordenou que os filhos de Israel “afligissem suas almas” e se abstivessem de qualquer trabalho.

“E isto vos será por estatuto perpétuo: no sétimo mês, aos dez do mês, afligireis as vossas almas, e nenhum trabalho fareis nem o natural nem o estrangeiro que peregrina entre vós” (Levítico 16:29).

Seria incoerente pensar que Deus exigisse tristeza ou abatimento em um dia de celebração, que Ele mesmo instituiu. Pelo contexto, fica claro que a expressão “afligir a alma” não se refere a um estado emocional de tristeza, mas sim a um ato de submissão em obediência a Deus, guardando o décimo dia do sétimo mês como um dia de descanso, um sábado solene.

Essa ideia de “aflição” como submissão, e não tristeza, é reforçada quando Jesus, ao responder sobre o jejum, contrapôs a tristeza com o contexto de uma festa nupcial:

“Podem, porventura, andar tristes os filhos das bodas, enquanto o esposo está com eles? Dias, porém, virão, em que lhes será tirado o esposo, e então jejuarão” (Mateus 9:15).

Jesus evidencia que a tristeza não tem lugar em momentos de celebração, como uma festa de bodas, da mesma forma que Deus não esperava que o povo ficasse triste em um dia sagrado, mas que o reverenciasse por meio da obediência.

Assim, “afligir a alma” e “não trabalhar” no Dia da Expiação não eram mandamentos distintos, mas inter-relacionados. A abstinência de trabalho simbolizava a sujeição a Deus, ou seja, o ato de “afligir” a alma era uma demonstração de obediência e reverência. Não se tratava de adotar uma postura de tristeza, abatimento ou aparência sombria, mas sim de uma atitude de entrega e submissão à vontade de Deus.

Portanto, ao parafrasear Levítico 16:29: “No sétimo mês, aos dez dias, obedeçam, não façam nenhum trabalho.” A interpretação incorreta seria: “Fiquem tristes, cabisbaixos, e guardem o décimo dia do sétimo mês”. Deus desejava submissão voluntária, não tristeza emocional, e isso era demonstrado pela guarda fiel do Dia da Expiação.

 

O termo ‘afligir’ em outras passagens bíblicas

Após entender que “afligir” significa sujeitar-se a Deus como Senhor, podemos melhor compreender o que o salmista expressa em sua reflexão:

“Antes de ser afligido andava errado; mas agora tenho guardado a tua palavra” (Salmo 119:67).

O salmista reconhece que, antes de se sujeitar a Deus, ele seguia um caminho errado. Contudo, após submeter-se ao Senhor, passou a guardar e obedecer à Palavra de Deus. Aqui, o paralelismo sintético (ou formal), no qual a segunda parte do versículo amplia e complementa a primeira, mostra claramente que “afligir” implica obedecer (sujeitar-se, guardar) à vontade de Deus.

Um exemplo prático desse processo de aflição que consiste em submissão pode ser visto na vida de Davi, quando ele tentou trazer a arca da aliança de Quiriate-Jearim. Ao fazê-lo de maneira incorreta, Deus abriu uma brecha em Israel, fulminando Uzá. Davi, temeroso, consultou a lei para aprender a maneira correta de trazer a arca: “E aquele dia temeu Davi a Deus, dizendo: Como trarei a mim a arca de Deus?” (1 Crônicas 13:12). Esse temor levou Davi a se sujeitar à ordem de Deus, buscando fazer o que era correto.

O profeta Daniel também exemplifica esse tipo de aflição. Ele se dispôs a compreender e se humilhar perante Deus, o que o levou a receber resposta imediata:

“Então me disse: Não temas, Daniel, porque desde o primeiro dia em que aplicaste o teu coração a compreender e a humilhar-te perante o teu Deus, são ouvidas as tuas palavras; e eu vim por causa das tuas palavras” (Daniel 10:12).

Por outro lado, os filhos de Israel substituíram a verdadeira sujeição a Deus por práticas externas de jejum, acreditando que o sofrimento físico seria suficiente para afligir suas almas. Em lugar de sujeitarem-se (afligir) a Deus obedecendo ao Seu mandamento, se lançavam aos jejuns, achando que com jejuns estavam afligindo (tristeza) as suas almas.

“Dizendo: Por que jejuamos nós, e tu não atentas para isso? Por que afligimos as nossas almas, e tu não o sabes? Eis que no dia em que jejuais achais o vosso próprio contentamento, e requereis todo o vosso trabalho” (Isaías 58:3).

Aqui, Isaías expõe o erro do povo: em vez de se submeterem verdadeiramente a Deus, optaram por jejuns e práticas ascéticas, acreditando que essas ações externas constituíam aflição da alma. Eles confundiram a sujeição espiritual com ritos de autoimposição, o que o apóstolo Paulo chama de “rudimentos fracos e pobres” (Colossenses 2:20-21).

O profeta Isaías deixa claro que esse não era o tipo de “jejum” e “dia aprazível” que Deus desejava. Ao estabelecer a aflição da alma, Deus queria submissão genuína, e não meras práticas ritualísticas, como inclinar a cabeça como junco ou deitar-se sobre sacos e cinzas. Essas imagens simbolizam o homem que deixa de ser senhor de si mesmo e se rende à vontade de Deus:

“Seria este o jejum que eu escolheria, que o homem um dia aflija a sua alma, que incline a sua cabeça como o junco, e estenda debaixo de si saco e cinza? Chamarias tu a isto jejum e dia aprazível ao SENHOR?” (Isaías 58:5).

Portanto, aquele que realmente “aflige” a alma é aquele que se sujeita a Deus em plena obediência. Em contraste, os soberbos e altivos são aqueles que se recusam a submeter-se ao Senhor, desviando-se de seus mandamentos ao seguir os desejos enganosos de seus corações:

“Tu repreendeste asperamente os soberbos que são amaldiçoados, que se desviam dos teus mandamentos” (Salmo 119:21).

Este contraste entre a verdadeira sujeição a Deus e a soberba humana deixa claro que afligir a alma é mais do que uma prática externa — é uma atitude interna que se traduz em obediência ao Criador.

 

Como se humilhar debaixo das potentes mãos de Deus

Na Nova Aliança, afligir a alma significa sujeitar-se a Deus por meio da obediência ao Seu mandamento central: crer em Jesus Cristo como o Filho de Deus e o Salvador do mundo (1 João 3:23). Ao crer que Jesus é o Cristo, o crente se torna servo de Deus, afligindo-se, humilhando-se e submetendo-se à Sua vontade.

Como Pedro nos instrui: “Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que a seu tempo vos exalte” (1 Pedro 5:6). A verdadeira humilhação diante de Deus implica uma disposição interior de obediência, ou seja, submissão, tal como Cristo demonstrou em sua própria vida.

Jesus é o exemplo supremo de como devemos nos humilhar:

“Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz” (Filipenses 2:7-8).

Ao tornar-se semelhante aos homens, o Verbo eterno esvaziou-se de Sua glória e assumiu a forma de servo. Na condição humana, Cristo humilhou-se ao máximo, obedecendo ao Pai até à morte, e morte de cruz. Este ato de humilhar-se consistiu em uma completa submissão em obediência ao Pai, o mesmo que se afligir.

A obediência que Deus requer de todos os homens na Nova Aliança é crer que Jesus é o enviado de Deus (João 6:29). Ao crer, o homem aflige a sua alma no sentido de sujeitar-se a Deus, entrando no descanso prometido, como mencionado em Hebreus 4:3, e assenta-se espiritualmente com Cristo nas regiões celestiais (Efésios 1:3).

Na Antiga Aliança, os filhos de Israel afligiam suas almas ao guardarem o décimo dia do sétimo mês, ou outros dias sabáticos, em obediência à lei. Na Nova Aliança, a aflição da alma ocorre quando qualquer pessoa, de coração sincero, crê que Jesus é o Cristo e, assim, cumpre o mandamento de Deus de forma plena. Esse é o verdadeiro descanso e a verdadeira sujeição à vontade do Pai.

 

[1] “ענה 06031 ànah uma raiz primitiva [possivelmente melhor identificada com 6030 pela ideia de menosprezar ou intimidar]; DITAT – 1651,1652; v. 1) (Qal) estar ocupado, estar atarefado com 2) afligir, oprimir, humilhar, ser oprimido, ser curvado 2a) (Qal) 2a1) ser abaixado, tornar-se baixo 2a2) ser rebaixado, estar abatido 2a3) ser afligido 2a4) inclinar-se 2b) (Nifal) 2b1) humilhar-se, curvar 2b2) ser afligido, ser humilhado 2c) (Piel) 2c1) humilhar, maltratar, afligir 2c2) humilhar, ser humilhado 2c3) afligir 2d4) humilhar, enfraquecer-se 2d) (Pual) 2d1) ser afligido 2d2) ser humilhado 2e) (Hifil) afligir 2f) (Hitpael) 2f1) humilhar-se 2f2) ser afligido” Dicionário Bíblico Strong.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

3 thoughts on “Como afligir a alma?

  • Gloria DEUS por sua vida…….que DEUS possa continuar te Abencoando Imensamente,muito me elucidou os estudos que eu li aqui…..DEUS Abencoe sua vida e tbm aos demais irmaos que passarem por esse site de estudo biblico……DEUS os Abencoe…JESUS esta Voltando.

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  • A paz do senhor Jesus🙌 Glória a Deus por esse estudo! Entendi realmente o que é afligir! E como é bom poder-nos submeter-se à Deus e obedecer a ele! E Jesus é grande exemplo para nós🙏🏻 Que Deus abençoe a cada um. Em nome de Jesus 🙌

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  • A paz do Senhor Jesus! Estudo abençoado que Deus continue lhe abençoando, iluminado e trazendo entendimento a você a luz do Evangelho. Jesus é um a grande exemplo para nos de submissão a Deus e o seu plano de Salvação foi cumprido pela obediência a Deus!

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