No contexto bíblico, o termo “presciência” refere-se ao conhecimento que Deus antecipou aos Seus santos profetas sobre o Cristo, e não a um atributo da divindade.
A Falácia da Presciência como Atributo Incomunicável de Deus: Uma Reflexão Crítica
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“A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos;” (Atos 2:23).
Um Erro na Teologia Reformada
Atribuir à presciência o status de atributo divino por si só constitui um reducionismo da onisciência de Deus e contraria a ideia de Sua onipresença.
O erro arminiano ao afirmar que tanto a predestinação quanto a eleição para a salvação são fundamentadas na presciência de Deus representa uma falácia que remonta a dois equívocos graves. Trata-se de um erro doutrinário que resulta de uma interpretação inadequada dos textos bíblicos, onde o termo “presciência” é utilizado, especialmente pelos apóstolos, com destaque para Pedro.
Por outro lado, é igualmente falacioso o argumento calvinista de que predestinação e eleição para a salvação resultam de uma pré-ordenação divina que culmina em eventos futuros, e que, portanto, se Deus é presciente, isso se deve ao fato de que Ele previamente ordenou todas as coisas.
Considerando que Deus é onisciente, onipresente e onipotente, atribuir à presciência o status de atributo divino é enfraquecer a compreensão da onisciência e onipresença de Deus. Deus não antecipa eventos futuros; Ele os presencia em sua totalidade, sejam eles do passado, do presente ou do futuro, sendo assim conhecedor de todos os eventos em todos os tempos.
Para o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, nada é pré-conhecido ou pré-ordenado; todos os eventos são presenciados no exato momento em que ocorrem, ou ocorrerão. Pensar a divindade em termos de pré-conhecimento ou pré-ordenação é reduzir a grandeza da onisciência e onipresença de Deus.
Os eventos futuros não são pré-conhecidos por Deus; antes, Ele os conhece porque os presencia em sua plenitude. Não há possibilidade de qualquer evento ocorrer sem que Ele tenha plena ciência e presença. De fato, se Deus antevisse os eventos futuros, estes deveriam seguir um curso fixo e determinado por Ele. Entretanto, a verdadeira grandiosidade de Deus reside no fato de que Ele não antevê, mas sim presencia todos os eventos simultaneamente enquanto eles ocorrem.
A doutrina arminiana, ao tentar corrigir o equívoco da predestinação calvinista, introduziu a chamada teoria da presciência. Porém, esta teoria é limitada diante da grandiosidade de Deus, ao descrevê-Lo como alguém que, na eternidade, antevê eventos futuros. Na verdade, Deus está acima de todos os eventos, presencia todos eles e está presente em todos, inclusive naqueles que ainda não foram vivenciados por Suas criaturas.
“O que é, já foi; e o que há de ser, também já foi; e Deus pede conta do que passou.” (Eclesiastes 3:15).
Diante disso, cabe a indagação: o que é, de fato, presciência?
O Primeiro Discurso do Apóstolo Pedro
Durante sua primeira pregação após a ascensão de Cristo aos céus, e estando pleno do Espírito Santo, o apóstolo Pedro se dirige aos seus concidadãos judeus, que estavam perplexos ao ouvir galileus falando em suas línguas nativas, apesar de nunca terem deixado suas cercanias para aprender outros idiomas (Atos 2:1-13).
Ao explicar o que estava acontecendo, Pedro destaca a pessoa de Jesus de Nazaré. Embora Ele fosse um homem aprovado por Deus por meio de sinais, prodígios e maravilhas, foi entregue à morte por mãos de homens ímpios. Pedro enfatiza que esse Jesus foi entregue conforme o conselho de Deus, ou seja, segundo Sua vontade, deliberação e/ou propósito.
“Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade;” (Efésios 1:11).
O termo “conselho” (βουλή/boulé) implica que Deus entregou Seu único Filho segundo Sua soberana vontade, pois somente assim Ele poderia santificar a humanidade (João 3:16).
“Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez por todas.” (Hebreus 10:10).
Pedro sublinha que, além de Deus ter deliberado entregar Seu Filho unigênito para santificar os que creem em Cristo, Ele também antecipou esse conhecimento aos Seus santos profetas. O apóstolo se refere a isso como “presciência” (πρόγνωσις/prognósis). Em vez de afirmar que Cristo foi morto apenas conforme a vontade de Deus e o que estava previsto nas Escrituras, Pedro utiliza o termo “presciência” no sentido de “dar a conhecer de antemão”.
Nesse contexto, o apóstolo da circuncisão cita alguns Salmos e enfatiza que o rei Davi era profeta, ou seja, alguém que recebeu de Deus uma revelação de eventos futuros concernentes à morte e ressurreição de Cristo (Atos 2:25-35).
No contexto bíblico, o termo “presciência” refere-se ao conhecimento que Deus antecipou aos Seus santos profetas sobre o Cristo, e não a um atributo da divindade.
O Segundo Discurso do Apóstolo Pedro
No segundo discurso do apóstolo Pedro, ele faz referência, por três vezes, ao conhecimento antecipado por Deus e revelado aos Seus santos profetas:
“Mas Deus assim cumpriu o que já dantes pela boca de todos os seus profetas havia anunciado: que o Cristo havia de padecer.” (Atos 3:18);
“O qual convém que o céu contenha até aos tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou pela boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio.” (Atos 3:21);
“Sim, e todos os profetas, desde Samuel, todos quantos depois falaram, também predisseram estes dias.” (Atos 3:24).
Este conhecimento antecipado por Deus aos seus santos profetas e registrado nas Escrituras é o que se entende por presciência divina.
A Oração dos Discípulos
Após serem ameaçados para que não falassem mais sobre Jesus, os discípulos de Cristo fizeram uma oração que remonta aos conceitos utilizados por Pedro:
“E, ouvindo eles isto, unânimes levantaram a voz a Deus e disseram: Senhor, tu és o Deus que fizeste o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há; Tu disseste pela boca de Davi, teu servo: ‘Por que bramaram os gentios, e os povos pensaram coisas vãs? Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se ajuntaram à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido.’ Porque verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas também Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho anteriormente determinaram que se havia de fazer.” (Atos 4:24-28).
Nesta oração, os discípulos mencionam o conselho de Deus, demonstrando que foi Ele quem determinou a prisão e morte de Cristo por meio das mãos de judeus e gentios. Tudo o que aconteceu, segundo o conselho de Deus, foi previamente revelado aos Seus servos, os profetas.
“Porque nunca deixei de vos anunciar todo o conselho de Deus.” (Atos 20:27).
O Termo Presciência
O termo πρόγνωσις (prognósis) é utilizado apenas duas vezes no Novo Testamento, ambas pelo apóstolo Pedro: uma vez em seu discurso no dia de Pentecostes e outra na introdução de sua primeira epístola.
“Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: Graça e paz vos sejam multiplicadas.” (1 Pedro 1:2).
Este versículo introdutório evidencia que os cristãos eram eleitos segundo o conhecimento que Deus antecipou aos homens por intermédio dos Seus profetas. Assim, eles foram santificados pelo evangelho (espírito, palavra), que obedeceram para que pudessem alcançar os benefícios da aspersão do sangue de Jesus.
Ao longo da epístola, Pedro destaca a presciência do ponto de vista dos profetas:
“Da qual salvação inquiriram e trataram diligentemente os profetas que profetizaram da graça que vos foi dada, indagando que tempo ou que ocasião de tempo o Espírito de Cristo, que estava neles, indicava, anteriormente testificando os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e a glória que se lhes havia de seguir. Aos quais foi revelado que, não para si mesmos, mas para nós, eles ministravam estas coisas que agora vos foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho; para as quais coisas os anjos desejam bem atentar.” (1 Pedro 1:11-12).
Todos os eventos futuros anunciados pelos profetas referem-se à presciência de Deus, e a obediência da fé proporciona a santificação:
“Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor fraternal não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração puro; sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre.” (1 Pedro 1:22-23).
Os Atributos Incomunicáveis de Deus
Vamos destacar três atributos incomunicáveis de Deus, ou seja, atributos que nenhuma criatura criada por Ele possui: onipotência, onisciência e onipresença.
Quando a Bíblia faz referência ao poder de Deus, o único termo adequado para descrevê-lo é a onipotência—Ele é o detentor de todo o poder criativo, e tudo o que existe foi criado por Ele e para Ele.
“Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele.” (Colossenses 1:16).
Quanto ao conhecimento de Deus, os termos onisciência e onipresença são utilizados para descrever uma divindade que transcende as limitações de espaço e tempo. Para o ser humano, que vive imerso em uma dimensão temporal, os eventos ocorrem de forma linear, divididos em passado, presente e futuro.
O que parece ao homem como passado, presente e futuro, para Deus é um eterno presente, ou melhor, um eterno “agora”. Para Ele, o tempo e o espaço são relativos em essência, pois:
“…mil anos aos teus olhos são como o dia de ontem que passou, e como uma vigília da noite.” (Salmo 90:4).
De outra perspectiva, tudo para Deus em relação aos homens é passado:
“O que é, já foi; e o que há de ser, também já foi; e Deus pede conta do que passou.” (Eclesiastes 3:15).
O tempo e o espaço são leis estabelecidas por Deus para governar Sua criação finita. No entanto, Deus está acima dessas dimensões e Ele presencia todos os eventos do tempo—sejam eles passados, presentes ou futuros—como se fossem o agora.
Quando o cristão compreende que todos os eventos da humanidade estão completamente descobertos e expostos diante de Deus, e que nada escapa à Sua presença e conhecimento, torna-se evidente que Deus, embora esteja ciente e presente em todos os acontecimentos, não interfere diretamente nas decisões diárias e nas consequências das escolhas feitas por cada ser humano.
Deus Não Preordena Ninguém à Salvação
Da mesma forma que Deus não preordenou a queda da humanidade, Ele também não preordena ninguém à salvação, embora todas as ações dos homens estejam nuas e patentes diante d’Ele.
A queda da humanidade ocorreu por escolha de um único homem que pecou—Adão. Por meio dele, a morte entrou no mundo e se estendeu a todos os seus descendentes, razão pela qual se diz que todos pecaram.
Os descendentes de Adão não fizeram essa escolha; no entanto, por estarem sujeitos à morte decorrente da ofensa de Adão, é certo que todos pecaram. A desobediência que trouxe o pecado e a morte ao mundo foi única—foi a de Adão, que desobedeceu a um mandamento específico:
“Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gênesis 2:17).
Os descendentes de Adão não tiveram a mesma escolha que ele teve; já nascem sob o domínio do pecado, presos pelo seu aguilhão, a morte. Todos os homens que vêm ao mundo entram nele por Adão, a porta larga, e estão em um caminho largo que os conduz à perdição. Nenhuma escolha que o homem faça no seu dia a dia pode livrá-lo dessa condenação, por isso é dito que o homem está morto em seus delitos.
A ação de Adão ao levar o fruto do conhecimento do bem e do mal à boca, após recebê-lo de sua mulher, não foi ordenada ou pré-ordenada por Deus na eternidade, mesmo que Deus estivesse vendo o que estava acontecendo. Deus não obrigou Adão a comer do fruto que Ele mesmo havia alertado para que não comesse. A ação de Adão foi livre e deliberada, influenciada por sua mulher, que comeu do fruto por causa da concupiscência de seus olhos. Assim, Deus não é o autor do pecado e não obrigou o homem a pecar. Entretanto, o pecado se mostrou excessivamente maligno ao tomar ocasião do mandamento, que era bom, e por meio dele, matou o homem. O pecado não tinha poder em si mesmo, mas exerceu domínio sobre a humanidade por meio do mandamento que dizia: “certamente morrerás”.
Como a criação da humanidade servia a um propósito maior, que envolvia a própria divindade, Deus providenciou salvação para a humanidade por intermédio de Cristo. O propósito de Deus ao criar o homem foi congregar em Cristo, na plenitude dos tempos, todas as coisas, tornando-o cabeça da Igreja e concedendo-lhe um nome superior a todo nome que se nomeia no presente século e no vindouro.
Da mesma forma que Deus não preordenou nenhum homem à perdição, visto que é o caminho largo que tem um destino, e não os homens que entram pela porta larga, Ele providenciou salvação em Cristo. Isso exige que, após ouvirem as boas novas do evangelho, os homens se decidam por Cristo para poderem nascer de novo.
Para possibilitar um novo nascimento, Deus providenciou Cristo, o Verbo encarnado, como cabeça de uma nova raça de homens espirituais. Cristo foi introduzido no mundo sem pecado, assim como o primeiro homem, e teve que obedecer ao Pai em tudo. Ao descer à cova e ressuscitar, Ele trouxe justificação aos pecadores, pois todos que creem em Cristo morreram com Ele, tornando-se livres do pecado.
Assim, Cristo é a justificação daqueles que creem, pois ao nascerem de novo em Cristo, o último Adão, passam a estar em um caminho estreito—Cristo—que os conduz à salvação. Desse modo, não há como os homens gerados em Adão serem preordenados à salvação, pois todos devem morrer em Cristo para poderem alcançá-la.
Deus Não Antevê Ninguém que se Decidirá por Cristo
Da mesma forma, Deus não pode ser visto como alguém que, estando no passado, anteviu aqueles que creriam no evangelho e os predestinou à salvação.
Deus não antevê, pois Ele é onipresente, ou seja, está presente em todos os eventos que ocorrem, tanto no espaço/tempo quanto na eternidade. O erro arminiano de considerar a presciência como base para a predestinação desconsidera a onipresença de Deus e, portanto, depõe contra esse atributo divino.
O erro arminiano é duplo: além de interpretar incorretamente a presciência como um atributo de Deus, também ignora que esse termo se refere ao conhecimento que Deus revela aos Seus profetas antes que os eventos aconteçam.
“…que eu sou Deus, e não há outro; eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho subsistirá, e farei toda a minha vontade” (Isaías 46:10).
O ato de Deus anunciar “o fim desde o princípio” e “desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam” é um exemplo de presciência—um conhecimento antecipado revelado aos homens. Isso, porém, não é o mesmo que preordenar eventos futuros; em vez disso, demonstra a fidelidade e a imutabilidade da palavra de Deus.
“Mas vós vede; eis que de antemão vos tenho dito tudo.” (Marcos 13:23).
Quando Deus antecipou Sua boa palavra a Abraão, Ele estava destacando Sua fidelidade, poder e imutabilidade. Isso significa que, mesmo se os homens forem infiéis, Ele permanece fiel.
“Ora, tendo a Escritura previsto que Deus havia de justificar pela fé os gentios, anunciou primeiro o evangelho a Abraão, dizendo: Todas as nações serão benditas em ti.” (Gálatas 3:8).
Ao anunciar o evangelho primeiramente a Abraão, Deus não estava elegendo Abraão ou seus descendentes para a salvação. Cada um teve que crer na promessa, inclusive Abraão, para alcançar a promessa. No entanto, a promessa permanece firme, mesmo que muitos sejam infiéis.
“Se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo.” (2 Timóteo 2:13).
Além disso, a eleição e a predestinação não têm como foco a salvação dos homens, mas sim o propósito eterno que Deus estabeleceu em Cristo. Para cumprir esse propósito, Deus determinou que a nova geração de homens espirituais seria santa e irrepreensível. Assim, a Igreja é composta de pessoas eleitas em Cristo, e, portanto, santas e irrepreensíveis (Efésios 1:4).
O propósito eterno de Deus é que muitos filhos sejam conduzidos à glória, e para isso, eles devem ter a imagem e semelhança corporal de Cristo. Deus predestinou os salvos em Cristo para serem conformes à imagem do Cristo ressurreto com um corpo glorioso. Dessa forma, a predestinação diz respeito à conformidade com o corpo glorioso de Cristo, e não à salvação em si.
“Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.” (Romanos 8:29).
Observando esse versículo, percebe-se que tanto calvinistas quanto arminianos se equivocam ao considerar que a predestinação se refere à salvação, enquanto o versículo trata da imagem que terão todos os salvos, para que Cristo seja o primogênito entre muitos irmãos semelhantes a Ele.
“Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é o veremos.” (1 João 3:2).
Paulo, em Romanos 8:29, não está tratando de como nos tornamos filhos amados de Deus, mas sim do que ainda não é manifesto: como seremos. A resposta emerge da predestinação: seremos semelhantes a Ele!
O motivo da predestinação é claro e específico:
“Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial.” (1 Coríntios 15:48-49).
Assim como todos os homens terrenos estão predestinados a ter a mesma imagem de Adão, da mesma forma, os homens celestiais estão predestinados a ter a imagem de Cristo ressurreto.
A predestinação bíblica não tem qualquer relação com a ideia grega de predestinação, que advém do fatalismo. O fatalismo atrela um destino aos homens, enquanto a Bíblia atrela o destino ao caminho, e não ao homem.
Como a cultura grega antiga é em grande parte fatalista—devido ao deus Destino e às Moiras, que tecem o tear do destino—, o que também se nota no estoicismo grego e romano, muitos teólogos não percebem que Jesus nunca atrela um destino ao homem, mas ao caminho em que ele está ao nascer.
“Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; E porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.” (Mateus 7:13-14).
Na Bíblia, o destino não é inexorável como no pensamento grego, pois se refere ao lugar em que o caminho leva o homem. Tanto que, mesmo que alguém tenha entrado pela porta larga e esteja no caminho largo, o convite é magnânimo: entrai pela porta estreita!
A Essência do Evangelho
Nesse ponto, retornamos à essência do evangelho: graça e liberdade.
O evangelho é gracioso—o homem não precisa realizar nada para alcançar a salvação providenciada em Cristo. O evangelho é a lei da liberdade, ou seja, ninguém é obrigado a obedecê-lo, tanto que a oferta é feita na forma de convite.
Para que o homem entre pela porta estreita, que é Cristo, basta crer que Deus o ressuscitou dentre os mortos e confessar que Ele é o Cristo de Deus. Ao crer em Cristo, o crente recebe poder para ser feito filho de Deus (João 1:12-13).
Esse poder se refere ao novo nascimento, que decorre da semente incorruptível, a palavra do evangelho.
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, (…) Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre. Porque toda a carne é como a erva, e toda a glória do homem como a flor da erva. Secou-se a erva, e caiu a sua flor; Mas a palavra do SENHOR permanece para sempre. E esta é a palavra que entre vós foi evangelizada.” (1 Pedro 1:3, 23-25).
Para entrar pela porta estreita, não é necessário fazer uma escolha, apenas nascer. Como todos os homens estão em um caminho largo que os conduz à perdição, precisam obedecer ao mandamento do evangelho, que é crer no enviado de Deus, Jesus Cristo, para que ocorra o novo nascimento, resultando em uma nova criatura.
“Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa.” (Efésios 1:13).
Deus em nenhum momento anteviu as pessoas que obedeceriam ao evangelho e as elegeu e predestinou à salvação, nem preordenou aquelas que ouviriam a mensagem do evangelho e creriam nele.
A salvação não ocorreu no passado, como creem os calvinistas e arminianos, nem se dará no futuro, como acreditam outras religiões. A salvação acontece hoje, pois o dia aceitável e oportuno é agora! Se hoje o homem ouvir a mensagem do evangelho, não deve endurecer o coração, como os filhos de Israel fizeram no deserto. Antes, deve ouvir e crer.
“Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego.” (Romanos 1:16).
Se a salvação ocorresse através da soberania ou da presciência, o tempo da salvação seria na eternidade, e não hoje. O agora não seria o tempo aceitável, nem o dia de salvação. A pregação de que Deus roga por meio dos Seus embaixadores seria uma falácia.
“(Porque diz: Ouvi-te em tempo aceitável E socorri-te no dia da salvação; Eis aqui agora o tempo aceitável, eis aqui agora o dia da salvação).” (2 Coríntios 6:2);
“Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno.” (Hebreus 4:16);
“De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus.” (2 Coríntios 5:20).
O Erro de Girolamo Zanchi
Em um site calvinista, são apresentadas cinco proposições[1] de Girolamo Zanchi (1516-1590), um tomista que, ao discorrer sobre a sabedoria e presciência de Deus, afirma que Deus é perfeitamente sábio e que ninguém pode frustrar Seu conhecimento. A Bíblia, de fato, enfatiza que nada pode frustrar o eterno propósito de Deus estabelecido em Cristo. No entanto, isso não se correlaciona diretamente com o saber de Deus, que pode ter conhecimento de algo sem necessariamente intervir no curso dos acontecimentos, ou pode escolher intervir para punir os rebeldes, como ocorreu com os filhos de Israel.
É certo que Deus não adquire novo conhecimento agora, nem adquirirá no futuro algo que Ele não soubesse antes da criação do mundo. Isso, contudo, não significa que Ele soube e previu eventos futuros na eternidade, mas sim que Ele presencia todos os eventos e, portanto, conhece todas as coisas. Tudo o que compreende o passado, presente e futuro está nu e patente diante de Deus, referindo-se à Sua onisciência; portanto, a presciência não diz respeito à natureza de Deus como se fosse um atributo.
A terceira proposição de Zanchi também contém um erro, pois Deus não prevê o futuro; Ele presencia o futuro, assim como o passado e o presente. Seu conhecimento não é conjectural ou incerto por ser onipresente. Não há risco de Deus anunciar um evento futuro aos homens e esse evento não ocorrer, pois Deus o presenciou através de Sua onipresença.
Deus, sendo soberano, onisciente, onipresente e onipotente, jamais influenciaria ou determinaria que o homem agisse fora de seu livre arbítrio. É por isso que, conhecendo o destino do caminho daqueles que não estão com Cristo, Ele roga aos homens que se arrependam, por meio de Seus embaixadores.
Na quinta proposição, Zanchi comete outro erro ao citar Atos 2:23, ao afirmar que “a presciência de Deus, considerada de forma abstrata, não é a única causa dos seres e eventos, mas Sua vontade e presciência juntos.”
Como já foi demonstrado, o “determinado conselho” (vontade de Deus) refere-se a tudo o que Ele deliberou sobre os eventos que antecederam a morte, crucificação e sepultamento de Cristo. Quando Pedro menciona o conselho de Deus, ele está destacando os eventos que levaram à morte de Cristo (Mateus 26:42) . Ao referir-se à presciência, Pedro estava ressaltando o que estava previsto nos Salmos e nos profetas acerca de Cristo.
Os eventos que ocorreram com Cristo e culminaram em Sua crucificação poderiam ter ocorrido mesmo que não tivessem sido antecipados aos santos profetas. Mas, ao revelá-los aos profetas, Deus evidenciou Seu eterno poder e fidelidade, pois nem mesmo poupou Seu próprio Filho para cumprir Sua palavra, e assim, como não nos dará também, com Ele, todas as coisas?
“Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como não nos dará também com ele todas as coisas?” (Romanos 8:32).
Se todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos de Deus (onisciência) e n’Ele todas as coisas existem (onipotência e onipresença), é absurdo considerar que a presciência seja um atributo de Deus que, na eternidade, anteviu eventos futuros, sendo Ele onipresente.
[1] https://voltemosaoevangelho.com/blog/2017/01/girolamo-zanchi-sabedoria-e-presciencia-de-deus-reforma500/