O Homem que Confia em Seu Semelhante é Maldito?

A proposta de Jeremias 17:5 – Maldito o homem que confia no homem – é denunciar o homem que confia em si mesmo, tendo como base elementos como ser israelita, ter a adoção de filhos, a glória, as alianças, a lei, o culto, as promessas, os pais, etc., e por isso, se afastava de Deus.
O Homem que Confia em Seu Semelhante é Maldito?
“Assim diz o Senhor: Maldito o homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do Senhor!” (Jeremias 17:5).
Introdução
Este versículo é frequentemente citado no meio cristão, muitas vezes para justificar a desconfiança em relação ao próximo. Frases como “não confie em fulano, pois maldito é o homem que confia no homem” tornaram-se comuns, como se o texto bíblico autorizasse um espírito de isolamento e suspeita nas relações humanas.
Mas será mesmo esse o sentido da mensagem profética? Teria Deus nos criado para uma vida desconectada, sem confiança uns nos outros?
Sabemos que não. O próprio Criador nos formou para vivermos em sociedade. Toda convivência humana — seja no casamento, na amizade, no trabalho ou na vida comunitária — se estrutura sobre a confiança mútua. Um lar saudável, por exemplo, repousa sobre a confiança entre marido e esposa, pais e filhos. A confiança não é apenas inevitável: ela é essencial.
O que, então, o Senhor está condenando por meio do profeta Jeremias? Certamente não é a confiança no próximo em sentido geral. O problema apontado por Deus é mais profundo: trata-se da pretensa autossuficiência espiritual, muitas vezes camuflada por uma religiosidade superficial.
O Homem que Confia em Si Mesmo
A chave para compreender esse texto está no próprio versículo, que é uma construção típica da poesia hebraica. Ele apresenta um exemplo claro de paralelismo sinonímico expandido, uma das principais formas de estruturação do pensamento poético no Antigo Testamento.
A poesia hebraica não depende de rima ou métrica, como na tradição ocidental, mas do paralelismo de ideias, ou seja, da repetição, reforço ou contraste entre linhas consecutivas.
Neste caso:
- Maldito o homem que confia no homem
- e faz da carne o seu braço
- e aparta o seu coração do Senhor!
Temos aqui três linhas que formam uma unidade de sentido, com um paralelismo em escada (também chamado de paralelismo expansivo ou sintético), em que cada linha aprofunda ou especifica a anterior:
- A primeira linha traz a declaração geral: “Maldito o homem que confia no homem” – ela denuncia a confiança do homem em si mesmo, o que se depreende da segunda linha.
- A segunda linha desenvolve a ideia da primeira utilizando-se de metáforas: “e faz da carne o seu braço” – ou seja, aquele que considera sua descendência abraâmica (carne) como elemento de salvação (braço).
- A terceira linha revela a consequência espiritual: “e aparta o seu coração do Senhor” – aqui, o profeta mostra o erro central: essa confiança equivocada implica um afastamento voluntário de Deus. Ou seja, não é uma confiança inocente, mas idolátrica, pois troca o Deus vivo por pressupostos equivocados.
A beleza do paralelismo hebraico nesse versículo está em sua clareza progressiva e poder retórico. Jeremias constrói uma sentença que é, ao mesmo tempo, uma acusação poética e teológica. Cada linha amplia e aprofunda o diagnóstico do erro vinculado ao judaísmo: considerar que compartilhar do sangue e da carne de Abraão é essencial à salvação, sendo que o que torna alguém filho de Abraão é compartilhar da fé de Abraão no Deus eterno.
“Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas os filhos da promessa são contados como descendência.” (Romanos 9:8);
“Bendito o homem que confia no Senhor, e cuja esperança é o Senhor.” (Jeremias 17:7).
A Bíblia é rica em simbolismo e intertextualidade. O “braço” é uma metáfora poderosa e recorrente para a força, poder e capacidade de agir, frequentemente associada à salvação e libertação proveniente de Deus.
“SENHOR, tem misericórdia de nós, por ti temos esperado; sê tu o nosso braço cada manhã, como também a nossa salvação no tempo da tribulação.” (Isaías 33:2).
A proposta de Jeremias é denunciar o homem que confia em si mesmo, tendo como base elementos como ser israelita, ter a adoção de filhos, a glória, as alianças, a lei, o culto, as promessas, os pais, etc., e por isso, se afastava de Deus. Confiar em tais elementos é cobrir-se com uma cobertura que não tem por base a palavra de Deus (Isaías 30:1).
Esse tipo de construção poética reflexiva, onde o termo “homem” se refere a si mesmo, encontra paralelo na fala de Jesus ao explicar a impossibilidade de um servo servir a dois senhores. Ele afirmava que a impossibilidade decorre do fato de o servo amar (servir) um senhor e odiar (não servir) o outro, e a suma é: não podeis servir a si mesmos e ao Senhor, servir ao próprio ventre (avareza) e a Deus (Filipenses 3:19).
“Nenhum servo pode servir dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom.” (Lucas 16:13).
“E eles vêm a ti, como o povo costumava vir, e se assentam diante de ti, como meu povo, e ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra; pois lisonjeiam com a sua boca, mas o seu coração segue a sua avareza.” (Ezequiel 33:31).
Coração Enganoso
Israel, como nação, havia quebrado a aliança com o Senhor. Confiando em sua força militar e em pactos com nações estrangeiras, ignorando o Deus que os havia libertado do Egito, eles viviam como se pudessem garantir a própria segurança por seus próprios braços, como se depreende da denúncia do profeta Isaías.
“AI dos que descem ao Egito a buscar socorro, e se estribam em cavalos; e têm confiança em carros, porque são muitos; e nos cavaleiros, porque são poderosíssimos; e não atentam para o Santo de Israel, e não buscam ao SENHOR.” (Isaías 31:1).
Já Jeremias, ao instruir “maldito o homem que confia no homem”, se volta para o indivíduo e denuncia algo mais profundo: a essência da corrupção da humanidade, o coração. É nesse contexto que lemos:
“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jeremias 17:9).
E qual é a origem desse coração enganoso? O nascimento natural no qual tanto se apoiavam!
“Alienam-se os ímpios desde a madre; andam errados desde que nasceram, falando mentiras.” (Salmo 58:3).
Os religiosos de Israel que faziam da “carne” o seu “braço” se esqueciam de que todos os homens, desde a madre, se alienam, pois todos são concebidos em pecado (Salmo 51:5), de modo que não há quem seja justo (Salmo 53:2-3), nem mesmo aqueles que são descendentes da carne de Abraão.
A postura dos escribas e fariseus é um exemplo contundente do que significa “fazer da carne o seu braço”. Mesmo após a mensagem incisiva de João Batista – “arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos Céus” –, eles persistiam em afirmar que tinham a Abraão por pai. Essa crença evidencia a profunda confiança que depositavam em sua descendência biológica e em sua identidade étnica como garantia de salvação.
Essa dependência da “carne” os impedia de confiar no enviado de Deus e de produzir o fruto digno de arrependimento. Os religiosos estavam tão arraigados na segurança de seu sangue e linhagem que ignoravam uma verdade fundamental: para ser filho de Deus, é preciso ser gerado por Ele. A advertência de João Batista de que “Deus pode, destas pedras, suscitar filhos a Abraão” ressalta a futilidade da confiança dos religiosos firmada em laços de parentesco terreno.
“E não presumais, de vós mesmos, dizendo: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que, mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão.” (Mateus 3:9).
O coração humano, quando desligado de Deus, é fonte de mentiras, pois tudo o que conjectura não pode alcançar o inalcançável, o mistério que se revela através da palavra de Deus. Por isso, seguir seus próprios conselhos, seus próprios caminhos, sua própria sabedoria, sem submeter-se à Palavra do Senhor, é trilhar o caminho da maldição — e não da vida.
“De maneira nenhuma; sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso; como está escrito: Para que sejas justificado em tuas palavras, E venças quando fores julgado.” (Romanos 3:4).
Por isso, devemos ter zelo ao citar as Escrituras. Textos retirados do contexto podem distorcer o verdadeiro ensino bíblico. A mensagem de Jeremias 17 não é um apelo à desconfiança generalizada, mas um chamado à fé genuína: não confie em si mesmo ou em qualquer recurso humano como fonte de salvação — confie no Senhor e na força do seu poder: Cristo, o santo braço do Senhor desnudado perante as nações.
“Perto está a minha justiça, vem saindo a minha salvação, e os meus braços julgarão os povos; as ilhas me aguardarão, e no meu braço esperarão.” (Isaías 51:5).
A Bíblia deve ser lida, primeiramente, como um livro de instrução para a salvação, que revela a natureza de Deus e Seu plano redentor para a humanidade. Esse plano, evidência que a salvação é algo impossível aos homens por seus próprios meios e possível unicamente por Deus.
Quando o leitor busca nas Escrituras “pressupostos para relações humanas” de forma isolada, sem ancorá-los na teologia da salvação, corre-se o risco de distorcer o verdadeiro propósito do texto. Por exemplo, analisar Jeremias 17:5 focado apenas na aparente proibição de confiar no próximo (um aspecto relacional) sem compreender que o versículo aponta para a impossibilidade de o homem salvar a si mesmo através de suas próprias convicções, leva a uma interpretação equivocada e prejudicial.
“E eles se admiravam ainda mais, dizendo entre si: Quem poderá, pois, salvar-se? Jesus, porém, olhando para eles, disse: Para os homens é impossível, mas não para Deus, porque para Deus todas as coisas são possíveis.” (Marcos 10:26-27).
