Salvação

O Desejo do Deus Soberano

Na queda, a ordenança divina revela o desejo de Deus de preservar o homem; na salvação, Deus dá um novo mandamento em Cristo, revelando o Seu desejo de que todos que se perderam cheguem ao conhecimento da verdade para que possam ser salvos (1 Timóteo 2:4).


O Desejo do Deus Soberano

“Que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade.” (1 Timóteo 2:4).

O Propósito e o Desejo de Deus

Há uma diferença fundamental entre o propósito de Deus e o Seu desejo. O propósito de Deus é imutável, e nada, seja na eternidade ou no tempo, pode frustrá-lo.

Na eternidade — uma dimensão fora do espaço-tempo — Deus estabeleceu um propósito em Si mesmo (Efésios 1:9), concentrado especificamente na pessoa de Jesus Cristo (Efésios 3:9-11). Essa eternidade transcende a compreensão humana, pois aquilo que chamamos de passado, presente e futuro se encontra resumido no “agora”. Como diz o Salmo 90:4, “mil anos são como o dia de ontem que passou”, e o Pregador afirma: “O que é já passou, o que há de ser também já passou; mas Deus pede conta de tudo.” (Eclesiastes 3:15).

É nessa singularidade eterna que o Deus triúno — Pai, Filho e Espírito Santo — formulou o Seu propósito, centrado na pessoa do Verbo encarnado, Jesus Cristo. Esse propósito é glorificar e tornar Cristo preeminente em tudo:

  • Como Rei, o descendente de Davi, que será o mais elevado entre os reis da terra (Salmo 89:27).
  • Como o último Adão, cabeça de uma nova raça de homens espirituais (1 Coríntios 15:45-49).
  • Como o primogênito dentre os mortos, o primeiro de muitos irmãos ressuscitados (Romanos 8:29).

Deus determinou esse propósito em Cristo desde a eternidade e, com santa vocação, chamou uma geração eleita para cumpri-lo (Efésios 3:11; 2 Timóteo 1:9), assim como, no passado, chamou a descendência de Abraão para um propósito terreno. Esse propósito celestial jamais será frustrado: ainda que céus e terra passem, a palavra de Deus permanecerá, e nada poderá impedir o cumprimento do Seu propósito feito segundo o conselho da Sua vontade.

Entretanto, para que esse propósito se concretize, Deus requer muitos irmãos semelhantes em tudo ao Cristo ressurreto. Esses irmãos só podem surgir por meio da ressurreição com Cristo, o que pressupõe que sejam homens terrenos, descendentes de Adão, que morrem com Cristo para renascerem como novas criaturas. Assim, homens gerados segundo a semente de Adão tornam-se homens espirituais, criados à imagem do último Adão.

É aqui que o desejo de Deus entra em evidência. Deus deseja que muitos homens terrenos, gerados à imagem do primeiro Adão, cheguem ao pleno conhecimento da verdade do evangelho. Somente assim poderão morrer com Cristo e renascer pela ressurreição, tornando-se parte da geração eleita, criada segundo o segundo homem, Jesus Cristo (1 Coríntios 15:47).

Homens assim, gerados da semente incorruptível, que é a palavra de Deus (Tito 3:5; 1 Pedro 1:3, 21-25), são aqueles que passam pelo lavar regenerador resultado em uma nova criação, nascendo de novo para integrar o propósito eterno de Deus. Eles foram chamados para cumprir o plano divino de conceder a Cristo preeminência em todas as coisas.

Enquanto o propósito de Deus foi estabelecido na eternidade, a vontade de Deus se revelou em Cristo, trazendo salvação a todos os homens. É em razão dessa vontade salvadora que Deus, por intermédio de Seus embaixadores, roga aos pecadores que se reconciliem com Ele (2 Coríntios 5:20).

A vontade de Deus se apresenta aos homens como um mandamento, convocando-os a se sujeitarem a Ele como servos. Essa distinção é essencial: enquanto o propósito divino foi estabelecido antes da criação do mundo, imutável e eterno, a vontade de Deus opera na história, revelando-se de forma ativa e contínua na pessoa de Cristo.

O propósito eterno de Deus não é imposto às Suas criaturas, pois foi estabelecido em Si mesmo, antes mesmo da criação do homem. Contudo, apenas participam desse propósito eterno aqueles que, por intermédio de Cristo, se rendem voluntariamente a Deus. Essa rendição ocorre por meio da mensagem do evangelho, que atrai os corações de maneira livre e espontânea, conduzindo-os à submissão a Deus por Jesus Cristo. Por Sua graça, ao regenerá-los, Deus os torna aptos a serem participantes do Seu propósito eterno.

 

O Propósito e a Vontade de Deus em Relação à Perdição e à Salvação

Era propósito de Deus que o homem se perdesse? Se é vontade de Deus que todos os homens se salvem, seria também da Sua vontade que o homem se perdesse? Para responder, é necessário analisar a relação entre o propósito e a vontade de Deus no contexto da perdição e da salvação.

A Queda no Éden e a Vontade de Deus

No evento da queda, percebemos que a lei dada a Adão era a expressão da vontade de Deus, demonstrando que Ele não desejava que o homem se perdesse. Quando Deus ordenou: “De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gênesis 2:16-17), Sua vontade estava clara: preservar o homem na condição em que fora criado. Essa ordem também evidenciava a liberdade plena concedida ao homem, com garantias para exercê-la.

A criação do homem está vinculada ao propósito eterno de Deus, pois para Cristo ter a proeminência, seria necessário ter muitos irmãos semelhantes a Ele. No entanto, a queda não decorreu desse propósito, visto que o propósito de Deus é imutável e não pode ser violado. A queda, portanto, foi consequência do exercício da liberdade concedida ao homem, que escolheu desobedecer à ordenança divina.

Deus, sendo magnânimo, não idealizou a queda do homem, mas permitiu que este exercesse sua liberdade. Essa liberdade plena foi simbolizada pelo livre acesso à árvore do conhecimento do bem e do mal, assim como pela incapacidade do homem de reverter, por si mesmo, as consequências do seu ato. É essencial afirmar que Deus não é, sob nenhuma hipótese, o autor do pecado.

Adão, ao transgredir, trouxe o pecado ao mundo, e pelo pecado veio a morte. Como a morte passou a todos os homens, é dito que todos pecaram (Romanos 5:12). O poder de transformar sua condição não estava em Adão, mas na própria ordenança divina, que trazia a advertência: “certamente morrerás”. Quando desobedeceu, esse poder latente no mandamento começou a operar, e através de uma lei santa, justa e boa, o pecado encontrou ocasião, mostrando-se excessivamente maligno e introduziu a separação de Deus no mundo.

O Propósito de Deus e a Salvação

Assim como o propósito eterno de Deus não teve relação com a queda, a redenção também não pode ser atribuída diretamente ao Seu propósito eterno. Na queda, a ordenança divina revela a vontade de Deus de preservar o homem; na salvação, Deus dá um novo mandamento em Cristo, revelando Sua vontade de que todos cheguem ao conhecimento da verdade para que possam ser salvos (1 Timóteo 2:4).

O paralelo entre a queda e a redenção é notável: assim como o pecado entrou no mundo por meio de um homem, Adão, a graça de Deus se manifesta através de um homem, Jesus Cristo. Tanto na queda quanto na redenção, a vontade de Deus é expressa por meio de mandamentos. Contudo, a redenção não ocorre pelo propósito eterno de Deus, mas por Sua vontade de salvar.

O propósito eterno de Deus foi estabelecido na eternidade na pessoa de Cristo. Na plenitude dos tempos, esse propósito se concretiza na pessoa do Cristo ressurreto. A queda, sob a perspectiva temporal da humanidade, ocorreu após o estabelecimento do propósito eterno. Já a redenção, na mesma perspectiva, antecede a concretização desse propósito, sendo o meio pelo qual Deus chama os homens à reconciliação, preparando-os para participar do Seu plano eterno.

Portanto, a perdição do homem não foi fruto do propósito eterno de Deus, mas da liberdade concedida por Sua vontade. Da mesma forma, a salvação não é o propósito em si, mas a expressão da vontade de Deus, que deseja que todos sejam reconciliados com Ele. O propósito eterno de Deus é maior que a queda e a redenção, pois está centrado na exaltação de Cristo e na formação de uma nova humanidade à Sua imagem, composta por aqueles que, voluntariamente, se rendem ao Senhor por meio do evangelho.

 

Jó e a Falta de Compreensão do Propósito Eterno de Deus

O patriarca Jó, após ser repreendido por Deus, teve uma profunda revelação ao contemplar a divindade. Ele reconheceu que o que sabia sobre Deus era superficial, limitado ao que ouvira dizer, levando-o à confissão: “Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus propósitos pode ser impedido.” (Jó 42:2). Jó admitiu que suas palavras durante o debate com seus amigos careciam de fundamento, pois falou sobre coisas que não compreendia, mistérios inescrutáveis para ele (Jó 42:3).

O que Jó não compreendia acerca dos propósitos de Deus era algo que nem mesmo os seres angelicais haviam compreendido. Esse mistério estava relacionado às riquezas insondáveis de Cristo (Efésios 3:8; Colossenses 1:26), à dispensação do mistério que permaneceu oculto em Deus desde a eternidade, o mesmo Deus que criou todas as coisas por meio de Cristo. Contudo, por intermédio da igreja, os principados e potestades celestiais agora são informados acerca da multiforme sabedoria de Deus, manifesta no propósito eterno realizado em Cristo Jesus.

 

Cristo como o Fundamento do Propósito Eterno

Cristo é o fundamento do propósito eterno de Deus. Por isso, a igreja, como templo espiritual, tem Cristo como a principal pedra angular, enquanto os cristãos são as pedras vivas, edificados sobre Ele. Ao considerar o propósito eterno como a constituição de um corpo, Deus designou Cristo como a cabeça da igreja, e os cristãos como os membros desse corpo.

Se utilizarmos a figura do pão, vemos que o propósito de Deus expresso no Éden — “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.” (Gênesis 1:26) — encontra sua plenitude na pessoa do Cristo ressurreto. Aqueles que ressurgem com Ele tornam-se participantes da mesma natureza divina, conformados à Sua imagem e semelhança. Isso é resumido na declaração de Paulo:

“Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão.” (1 Coríntios 10:17).

 

A Nova Geração e a Preeminência de Cristo

Na criação original, Deus é soberano e inatingível, pois nada nem ninguém é semelhante a Ele. Contudo, no contexto da nova geração — decorrente do propósito eterno — o Cristo ressurreto, que viveu entre os homens, semelhantes a eles em tudo, agora se relaciona com Seus muitos irmãos, iguais a Ele na nova criação. Cristo, que antes como o Verbo eterno era inatingível, agora entre muitos irmãos alcançou a preeminência ao assumir a primogenitura, sendo Ele mesmo a cabeça do corpo.

Na nova criação, Deus realiza o que estava oculto desde os tempos eternos: formar um corpo espiritual em Cristo, onde Ele é a base e a razão de todas as coisas. O propósito eterno se concretiza na união de Cristo com a igreja, formada pela comunhão de muitos irmãos conformados à Sua imagem.

 

A Manifestação do Mistério e as Riquezas da Glória

Na plenitude dos tempos, Deus revelou aos Seus santos o mistério oculto desde os séculos passados e por todas as gerações, evidenciando as riquezas da glória, que é Cristo nos vasos de misericórdia, a esperança da glória (Colossenses 1:27; Romanos 9:23). Essa esperança aponta para o glorioso evento em que, ao Cristo se manifestar, os cristãos também se manifestarão com Ele em glória (Colossenses 3:4).

Não há riqueza maior do que ser mais sublime que os céus. Cristo, sendo o mais sublime que os céus, compartilha essa exaltação com os salvos, que, ao se manifestarem com Ele em corpos glorificados, também serão elevados acima dos céus (Hebreus 7:26). Predestinados a serem conformados à imagem de Cristo ressurreto, os membros do Seu corpo alcançam uma das maiores riquezas da glória (Romanos 8:28).

O apóstolo Paulo explica:

“O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu. Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial.” (1 Coríntios 15:47-49).

Entre as outras riquezas da glória, está o privilégio de estar assentado nas regiões celestiais em Cristo Jesus (Efésios 1:3; 2:6). Além disso, Deus nos escolheu em Cristo antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis perante Ele. Essas bênçãos espirituais revelam o favor imerecido de Deus e a grandiosidade do Seu propósito eterno.

Manifestar-se em glória com Cristo é o prêmio concedido aos salvos por meio da soberana vocação de Deus em Cristo. Essa vocação resulta da exaltação soberana de Cristo, a quem Deus concedeu um nome que está acima de todos os nomes. Nada foi deixado fora do Seu domínio, e Ele foi constituído cabeça da igreja, o corpo que manifesta Sua plenitude (Filipenses 2:9; Efésios 1:22; 3:14).

Para alcançar o prêmio da soberana vocação, o homem é primeiramente salvo pelo poder do evangelho. Em seguida, ele é chamado com uma santa vocação, não segundo suas obras, mas conforme o propósito e a graça de Deus. Nesse chamado, Deus concede aos homens o privilégio de serem participantes da formação do corpo de Cristo, contribuindo para que Cristo tenha a preeminência em tudo (2 Timóteo 1:9).

A soberana vocação não se alcança por obras, pois é um chamado que recai exclusivamente sobre as novas criaturas geradas em Cristo, com o objetivo de cumprir o propósito eterno de Deus. Para ter direito ao prêmio da soberana vocação, basta ter sido regenerado por meio de Cristo.

No que diz respeito à salvação, Deus exige que o homem cumpra Sua obra — a obra da lei da fé, que é crer em Cristo (João 6:29). Essa fé em Cristo é o que torna o homem servo de Deus, uma vez que ele se submete à mensagem do evangelho, que é a forma de doutrina entregue. Assim, enquanto a salvação é alcançada pela obediência à lei da fé, o chamado à soberana vocação está relacionado ao propósito divino para aqueles que foram regenerados.

Da mesma forma que a lei de Moisés demandava obras, a lei da fé também exige uma obra. Contudo, a lei da fé exclui a jactância, pois quem a pratica torna-se servo de Deus. Isso contrasta com a lei de Moisés, cuja prática não resulta em galardão segundo a graça, mas segundo a dívida, promovendo assim a jactância (Romanos 3:27; 4:14).

A lei da fé, ao contrário da lei de Moisés, opera sob o princípio da graça, onde a obra exigida é a fé em Cristo, que, em essência, significa descansar na promessa de Deus. Já a lei de Moisés opera sob maldição, pois está escrito: “Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las.” (Gálatas 3:10-12). Assim, enquanto a lei da fé conduz à vida pela graça, a lei de Moisés expõe a incapacidade humana e a condenação àqueles que falham em cumpri-la integralmente.

 

A Vontade de Deus para a Salvação

A salvação do homem é operada através da vontade de Deus, visando o propósito eterno que Ele estabeleceu em Si mesmo. Ou seja, a salvação não é concedida pelo Seu propósito eterno, mas para o cumprimento desse propósito. Deus salva o homem não apenas para redimi-lo, mas para integrá-lo em Seu plano eterno de dar a Cristo a preeminência em todas as coisas.

O que Deus concede ao homem segundo Sua soberania é um corpo glorioso, conforme a expressa imagem de Cristo. Isso está diretamente relacionado ao propósito eterno que Ele estabeleceu em Si mesmo: a preeminência de Cristo em todas as coisas. Nesse propósito, Cristo é exaltado como o primogênito entre muitos irmãos, resultado do evento em que os salvos são conformados à Sua expressa imagem. Essa transformação culmina na manifestação dos filhos de Deus, uma obra grandiosa da nova criação (Romanos 8:19).

Para conceder salvação ao homem — algo que exige que Deus permaneça justo e, ao mesmo tempo, seja o justificador — Ele deu o Seu Filho unigênito e estabeleceu o evangelho (Romanos 3:26). Este é descrito como a forma de doutrina entregue (Romanos 6:17) ou a fé confiada aos santos (Judas 1:3), sendo o meio pelo qual Deus oferece redenção sem comprometer Sua justiça. O evangelho exige obediência irrestrita daqueles que são servos do pecado, caso desejem, ao responder à mensagem, tornarem-se servos da justiça (Romanos 6:16).

A forma de doutrina entregue reflete a vontade de Deus, que deseja salvar os pecadores. No entanto, Deus não pode violar Sua justiça nem absolver o culpado sem que a penalidade seja paga. Por isso, Ele estabeleceu uma ordem em que os homens, ao crerem em Cristo em obediência ao evangelho, morrem para o pecado. Essa obediência potencializa o poder transformador de Deus, que faz com que o servo do pecado morra, seja sepultado com Cristo e ressurja como uma nova criatura, viva para Deus.

Nessa ordem, há um poder semelhante ao contido no mandamento dado no Éden, que opera fazendo com que o servo do pecado morra para o pecado. Assim como o mandamento no Éden tinha o poder de trazer morte pela desobediência, o mandamento do evangelho tem o poder de trazer vida àqueles que obedecem.

O mandamento do evangelho provoca a morte do pecador que obedece, levando-o a ser sepultado no batismo com Cristo. Nesse processo, ele ressurge como uma nova criatura, viva para Deus e morta para o pecado. O que transforma o homem é o poder da forma de doutrina, ou seja, o evangelho, e não a obediência em si. No entanto, para que esse poder contido na forma de doutrina opere, é essencial a obediência, que, pela graça, promove a circuncisão de Cristo — o despojar do corpo do pecado — e a ressurreição para uma nova vida de liberdade e justiça em Cristo.

Quando o pecador morre para o pecado, obedecendo à forma de doutrina, Deus executa Sua justiça, pois é justo. Ao criar um novo homem, vivo para Ele, Deus também o declara justo, tornando-se o justificador daqueles que obedecem ao evangelho. Assim, a salvação manifesta tanto a justiça divina quanto Sua graça, concedendo ao homem redenção sem comprometer os atributos de Deus.

A desobediência foi o meio pelo qual o poder contido no mandamento no Éden operou no homem, permitindo que a morte entrasse no mundo. De forma semelhante, a obediência é o meio pelo qual o poder transformador do evangelho realiza a regeneração e a reconciliação com Deus.

Em ambos os eventos — o Éden e o Calvário — a vontade de Deus está expressa em mandamentos dotados de poder, cujo efeito depende da disposição do homem: obediência ou desobediência. No Éden, o mandamento só traria consequências se houvesse desobediência; já na Nova Aliança, a redenção só é possível mediante a obediência à forma de doutrina entregue por Deus. Assim, cada mandamento opera conforme a resposta do homem, revelando o juízo e a justiça divina ou a graça e a redenção divina.

 

Graça irresistível e tentação irresistível?

A forma de doutrina entregue por Deus aos homens evidencia que Ele é o detentor de todo poder. Ao manifestar Sua graça em Cristo, cumprindo a promessa feita a Abraão, Deus trouxe salvação a todos os homens, pois deseja que todos sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (Tito 2:11; 1 Timóteo 2:4).

Essa forma de doutrina é clara: ao conceder graça a todos os homens, Deus removeu a distinção entre judeus e gentios (Romanos 10:11-12). Essa graça está expressa na palavra da fé pregada pelos apóstolos, que afirma: “Se com a tua boca confessares Jesus como Senhor e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo.” (Romanos 10:9). Assim, quem confessa que Jesus Cristo é o Senhor em obediência ao mandamento de Deus em Cristo torna-se servo da justiça, recebendo a salvação pela graça (Romanos 6:17; 10:8-10).

A graça manifesta em Cristo não pode ser definida como irresistível ou resistível, pois o evangelho, sendo a mensagem divina, é dirigido a todos os homens. Cabe aos pecadores, em razão da liberdade da vontade, decidir aceitar ou rejeitar essa oferta de salvação, conforme a sua resposta à convocação de Deus.

Se admitirmos que a graça de Deus em Cristo é irresistível para alguns, pela equidade e justiça divina, teríamos que considerar que a tentação no Éden também seria irresistível. Contudo, no Éden, apesar de Adão ser livre, enquanto permanecia sob a proteção do mandamento, era servo de Deus, estando morto para o pecado. Sendo servo de Deus, Adão não estava sob o domínio do pecado, e, conforme o posicionamento calvinista, isso implicaria que ele estaria “cego e surdo” para o pecado, com um coração puro e desesperadamente justo.

Nesse cenário, se o calvinismo fosse correto, a vontade de Adão não seria livre, mas escravizada à sua natureza boa, o que o tornaria incapaz de escolher o mal em questões espirituais. No entanto, os eventos do Éden demonstram o contrário: Adão, sendo livre, escolheu desobedecer, evidenciando que a liberdade da vontade não foi anulada, mesmo diante da soberania divina.

O evangelho também esclarece que o pecado tem domínio sobre o corpo do homem descendente de Adão, devido ao poder da morte, que é o seu aguilhão (1 Coríntios 15:56). Contudo, esse domínio não se estende à vontade do homem. Historicamente, em sistemas escravagistas, o domínio sempre foi sobre o corpo, mas a vontade permanece livre. A incapacidade de se libertar de uma situação física não significa que a vontade seja submetida. Da mesma forma, a incapacidade do homem de voar como os pássaros não tolhe sua vontade de querer voar.

Assim, a graça de Deus não anula a liberdade da vontade humana. Ela é oferecida ao homem, que, por meio de sua vontade, pode respondê-la, aceitando ou rejeitando a mensagem do evangelho. O apelo de Deus tanto na lei e quanto na graça não afasta do homem o direito a uma escolha livre com base no conhecimento revelado:

“Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe pois a vida, para que vivas, tu e a tua descendência,” (Deuteronômio 30:19);

“Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; E porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.” (Mateus 7:13-14).

Se a tentação no Éden não foi irresistível, segue-se que a graça também não pode ser irresistível. Exigir obediência a um mandamento que, para alguns, seria irresistível e, para outros, resistível — conforme uma suposta preordenação soberana de Deus — seria contraditório com a natureza do evangelho. Isso implicaria admitir que o evangelho não é um mandamento universal, mas uma imposição seletiva, o que fere o princípio da justiça divina.

No Éden, o mandamento de Deus exigia obediência de Adão, sendo plenamente acessível à sua livre vontade se sujeitar ou não. De forma semelhante, o evangelho, como mandamento de Deus (1 João 3:23), exige obediência daqueles que o recebem, mas sem anular a liberdade do homem em responder à mensagem. A graça manifestada em Cristo é oferecida a todos, mas depende da resposta do homem à forma de doutrina entregue (Hebreus 2:3).

Se a graça fosse irresistível, e sua aceitação dependesse exclusivamente de uma preordenação divina, isso violaria o caráter justo de Deus ao exigir obediência de todos, mas efetivamente permitir que apenas alguns a cumpram. Assim, o evangelho, que é a boa nova da salvação, perderia seu caráter universal e a sua essência como convite ao arrependimento e o exercício da fé em Cristo.

Portanto, tanto no Éden quanto no evangelho, a obediência é uma questão de escolha livre, e a graça divina opera mediante a disposição do homem em respondê-la. Essa coerência reafirma a justiça e a equidade de Deus em Suas ações redentoras, o que não depõe contra a Sua soberania que promove o propósito eterno.

A obediência ao evangelho ocorre mesmo enquanto o homem ainda é servo do pecado. Ele reconhece que a morte com Cristo é a única solução para se libertar do domínio do pecado, conforme revelado na forma de doutrina entregue por Deus. Os escravos do pecado permaneciam nessa condição por causa do medo da morte, que os mantinha sujeitos à servidão ao longo de toda a sua existência (Hebreus 2:15).

O evangelho, porém, oferece a morte com Cristo por meio do batismo, que simboliza a união com Ele em Sua morte. Ao morrer com Cristo, o homem se liberta do domínio do pecado, pois a morte, antes temida, é transformada em um novo e vivo caminho para a vida. Na morte com Cristo, há ressurreição e o início de uma nova vida para Deus. Assim, o evangelho não apenas liberta do pecado, mas também oferece uma esperança viva na nova criação em Cristo (Hebreus 10:20).

 

A Soberania de Deus e o Apelo à Submissão

A soberania de Deus, conforme apresentada nas Escrituras, é inseparável de Sua justiça perfeita e de Sua imparcialidade, pois Deus é fiel à Sua palavra, e não a indivíduos. Isso significa que Deus jamais violaria Sua palavra para salvar alguém sob o pretexto de exercer Sua soberania. Como ensina o apóstolo Paulo:

“Palavra fiel é esta: que, se morrermos com ele, também com ele viveremos; se sofrermos, também com ele reinaremos; se o negarmos, também ele nos negará; se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo.” (2 Timóteo 2:11-13).

Quando a Bíblia exalta a supremacia de Deus, ela não apenas evidencia Seu poder absoluto, mas também ressalta que Ele exerce esse poder com equidade e retidão. Nesse contexto, Deus faz um convite ao homem para que se submeta a Ele de forma voluntária e consciente, demonstrando que Sua soberania não anula nem sobrepuja a vontade humana, pois o que está em voga é a fidelidade de Deus à Sua palavra.

Em Deuteronômio 10:16-17, encontramos um apelo claro e direto:

“Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração e não mais endureçais a vossa cerviz. Pois o Senhor vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção de pessoas nem aceita suborno.”

Esse texto apresenta Deus como o “Deus dos deuses” e o “Senhor dos senhores”, inatingível em poder e majestade. Contudo, Ele se relaciona com Suas criaturas com base em Sua justiça e misericórdia, chamando-as ao arrependimento e à obediência. A fidelidade de Deus à Sua palavra reflete Sua santidade absoluta, evidenciando que Ele não age arbitrariamente, mesmo sendo o detentor de todo o poder. Seu relacionamento com as Suas criaturas é fundamentado na retidão de Suas promessas e na imutabilidade dos seus atributos.

O apelo para “circuncidar o coração” simboliza a necessidade de o homem submeter-se à palavra de Deus, abandonando sua dureza e rebeldia. Esse chamado evidencia que a soberania de Deus não é coercitiva, mas um convite à submissão voluntária, refletindo Seu caráter justo e misericordioso.

A soberania e a justiça de Deus são destacadas também em Jó 37:23:

“Ao Todo-Poderoso não podemos alcançar; grande é em poder; porém a ninguém oprime em juízo e grandeza de justiça.”

Esse versículo sublinha a majestade e o poder incomparável de Deus, mas também ressalta que Ele não exerce Sua autoridade de forma arbitrária ou opressiva. Assim, Deus convida o homem à obediência e à submissão por meio de Sua graça, e não por coerção, reafirmando Seu compromisso com a justiça e a retidão.

Portanto, a soberania divina, como revelada nas Escrituras, não apenas manifesta a inexpugnabilidade de Sua autoridade, mas também evidencia que Deus Se submete à Sua própria palavra, velando para cumpri-la. Ao não poupar Seu Filho unigênito e não retroceder em Sua promessa de redenção, Deus demonstra Sua fidelidade absoluta à Sua palavra (Romanos 8:32; Jeremias 1:12).

Esse ato nos convida a reconhecê-Lo não apenas como o Todo-Poderoso, mas também como o Deus digno de plena confiança, cuja soberania é exercida por meio de Sua palavra fiel e digna de toda aceitação (1 Timóteo 1:15). Assim, a fidelidade de Deus à Sua palavra torna-se um fundamento inabalável para o exercício da nossa fé, resultando em obediência.

Foi o ato de submissão à vontade do Pai que levou Cristo a ser levantado da terra, tornando-se o centro de atração para os pecadores. É por meio de Cristo, o único mediador entre Deus e os homens, que os homens podem ter acesso a Deus (João 12:32). A cruz de Cristo possui um poder suficiente para atrair os pecadores, revelando-lhes que a obediência à vontade de Deus, demonstrada no sacrifício de Jesus, é o caminho para a reconciliação (Hebreus 5:8). Qualquer pessoa que se sujeitar a Deus, crendo que Jesus é o Cristo, encontrará o perdão e será reconciliada com o Pai. Na cruz, a justiça divina e a graça salvadora convergem, revelando o amor de Deus e o caminho para a redenção.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

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