O nascer de novo (regeneração) não é um simples despertar espiritual ou uma capacidade para crer. Ela é a criação de um novo ser em Cristo, resultante da obediência ao evangelho. O homem, ao crer, morre com Cristo, é sepultado com Ele e ressuscita em novidade de vida.
O Lavar Regenerador: Nascer de Novo
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“Não pelas obras de justiça que houvéssemos feito, mas segundo a sua misericórdia, nos salvou pela lavagem da regeneração e da renovação do Espírito Santo.” (Tito 3:5).
O Que Significa Nascer de Novo?
A expressão “nascer de novo” é amplamente reconhecida como sinônimo de regeneração. Contudo, muitos ainda não compreendem plenamente essa verdade bíblica. Wayne Grudem, em sua obra Teologia Sistemática, apresenta a seguinte definição:
“Podemos definir regeneração da seguinte maneira: Regeneração é um ato secreto de Deus pelo qual ele nos concede nova vida espiritual. Isso é às vezes chamado de ‘nascer de novo’ (na linguagem de Jo 3.3-8)” (Grudem, Wayne A. Teologia Sistemática. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Vida Nova, 2022).
Grudem descreve a regeneração como uma obra exclusivamente divina e destaca que o cristão não tem nenhuma participação ativa nesse processo, ao contrário do que ocorre na conversão ou na perseverança. Ele fundamenta essa visão em João 1:13:
“Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.”
No entanto, Grudem omite o que é declarado no versículo anterior, João 1:12:
“Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que creem no seu nome.”
Embora seja inegável que o novo nascimento seja obra exclusiva de Deus, a afirmação de que o homem não desempenha nenhuma ação não reflete todo o ensino bíblico. O evangelista João enfatiza que o poder para se tornar filho de Deus é concedido apenas àqueles que recebem a Cristo, ou seja, aos que creem em Seu nome. Sem exercer fé em Cristo, o homem não pode receber o poder divino regenerador.
João é específico ao enfatizar que nascer de novo é uma obra que decorre do poder de Deus. Contudo, para receber esse poder, o homem precisa crer no evangelho, ou seja, receber a Cristo como Senhor e Salvador. A regeneração, embora seja um ato criativo exclusivo de Deus, está intrinsecamente atrelada ao mandamento de crer em Cristo. Portanto, o processo de “nascer de novo” não exclui a ação humana de crer, recebendo a Cristo. Sem crer em Cristo, o homem não recebe de Deus o poder para ser feito um de Seus filhos (João 6:29).
A Relação Entre a Regeneração e a Palavra da Fé
A abordagem do evangelista João em relação ao novo nascimento está intimamente conectada ao questionamento de Isaías:
“Quem deu crédito à nossa pregação? E a quem se manifestou o braço do Senhor?” (Isaías 53:1).
João enfatiza que o resultado final de crer em Cristo é ser feito filho de Deus. Contudo, esse poder concedido por Deus é recebido somente após o homem crer (ou receber a Cristo). E, para crer, é imprescindível que o homem ouça acerca de Cristo, pois ninguém pode crer em quem não conhece.
Essa ideia ressoa no argumento do apóstolo Paulo em sua carta aos romanos:
“Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Romanos 10:14).
Considerando os escritos de João e Paulo, para que alguém possa crer e invocar a Cristo como Senhor (Romanos 10:14), é imprescindível, antes de tudo, ouvir a palavra da fé (Romanos 10:8). Mas o que diz essa palavra da fé pregada pelos apóstolos? Ela declara que é necessário confessar com a boca que Jesus é o Cristo e crer no coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos (Romanos 10:9-10).
O evangelista João, ao enfatizar que é preciso receber a Cristo para ser feito filho de Deus, também aponta, implicitamente, para a necessidade do anúncio prévio do evangelho — a palavra da fé. Conforme Paulo destaca, “aquele que crer em Cristo não será confundido”, pois Deus é rico em graça para todos, judeus e gentios (Romanos 10:11-12).
A questão abordada por João é a mesma tratada por Paulo: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.” Jesus veio primeiramente para os seus, os judeus, mas eles não o receberam. Contudo, a todos quantos o receberam — judeus e gentios — Deus concedeu o privilégio de se tornarem filhos de Deus. Para invocar, no entanto, é necessário crer que Jesus é o Salvador e que tem poder para salvar. Isso nos conduz à lógica apresentada por Paulo:
“Como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar?” (Romanos 10:14).
Paulo esclarece que a “justiça da fé” não depende das obras da lei, consequentemente, não depende de esforços humanos, mas é acessível através da “palavra da fé” (Romanos 10:8), que precisa ser proclamada e recebida. Ele reforça que a salvação exige duas ações: confessar com a boca que Jesus é o Senhor e crer no coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos (Romanos 10:9-10). Essa fé em Cristo resulta em salvação (Romanos 1:16; 3:26; 4:5 e 11), pois Deus não faz distinção entre judeus e gentios:
“Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.” (Romanos 10:13).
Crer e o Novo Nascimento
João e Paulo convergem em suas abordagens sobre o processo que leva à regeneração. Para ser feito filho de Deus, o homem precisa receber a Cristo, e esse recebimento começa com o ouvir a palavra da fé. João declara que Jesus veio para os seus (os judeus), mas eles não o receberam. Contudo, a todos os que o recebem, sejam judeus ou gentios, Deus concede o poder de se tornarem filhos de Deus (João 1:11-12).
Esse processo de regeneração, portanto, está vinculado à pregação do evangelho. Antes que alguém possa crer, é necessário que a mensagem seja anunciada. Isso é confirmado pela missão tanto dos profetas da Antiga Aliança quanto dos apóstolos da Nova Aliança, e, acima de tudo, pela obra de Cristo, que foi ungido para pregar o evangelho aos pobres e proclamar o ano aceitável do Senhor (Lucas 4:18; Hebreus 1:1-2).
A Sequência Divina para a Regeneração
O plano de Deus para a regeneração segue uma ordem clara:
- Proclamação da Palavra da Fé (evangelho): Deus envia pregadores — profetas, apóstolos e Cristo — para anunciar o evangelho.
- Audição da Mensagem: Aqueles que ouvem o evangelho têm a oportunidade de crer.
- Fé e Confissão: Ao crer com o coração e confessar com a boca, significa que o homem recebeu a Cristo.
- Poder para Ser Filho de Deus: A regeneração acontece após o homem crer em Cristo, pois o poder de Deus só é concedido após receber a Cristo.
Essa sequência demonstra que, embora a regeneração seja obra divina, ela é mediada pela proclamação da palavra, que é o mandamento de Deus, e pela resposta obediente por parte do homem (Romanos 10:16; Tito 1:3). Assim, tanto João quanto Paulo reforçam que a fé vem pelo ouvir, e o ouvir, pela palavra de Deus (Romanos 10:17).
Nesse contexto, a palavra da fé, que é o espírito do Senhor derramado sobre toda a carne, necessariamente precede a regeneração. Antes de ocorrer a regeneração, há o arrependimento, que é a mudança de entendimento (do grego metanoia, mudança de mente), seguido pela conversão, que resulta em crer e invocar o Senhor. O arrependimento e a conversão só são possíveis porque a palavra da fé é digna de toda aceitação.
É importante notar que a expressão “palavra da fé” ou “pregação da fé” refere-se essencialmente ao evangelho (Gálatas 3:2, 5). Sem a “fé manifesta” ou a “palavra manifesta”, que é o “testemunho de Deus” (Tito 1:3; 1 Coríntios 2:1), não há arrependimento nem conversão, e, consequentemente, a pessoa não pode crer nem invocar o Senhor. Sem invocar, a pessoa não recebe poder e, assim, não será regenerada.
Como Cristo é o tema central do evangelho, Ele é anterior à mensagem que fala sobre Ele. Cristo, sendo o Verbo de Deus, é preexistente. Por isso, ao ser anunciado o evangelho primeiramente a Abraão, Cristo já era o Cordeiro de Deus morto desde a fundação do mundo. É nesse sentido que Paulo se refere a Cristo como a fé que haveria de se manifestar (Gálatas 3:23), e Judas descreve o evangelho como a fé entregue aos santos (Judas 1:3; Filipenses 1:27).
“Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar.” (Gálatas 3:23).
O dilema sobre se a fé precede o arrependimento ou se o arrependimento precede o novo nascimento se dissolve ao compreendermos que a fé que havia de se manifestar é Cristo. Ele não apenas precede, mas também é a causa do arrependimento (mudança de entendimento). Sendo assim, a fé manifesta precede o arrependimento, e crer é uma resposta à fé manifesta, que, por sua vez, resulta na regeneração.
A Interpretação do Novo Nascimento à Luz de João 1:12-13
É curioso que Wayne comente o versículo 13 do capítulo 1 do Evangelho de João sem destacar o que foi exposto no versículo anterior. Ele corretamente observa que, no versículo 13, João especifica que “os filhos de Deus são os que nasceram de Deus”. No entanto, a afirmação seguinte de Wayne — “e que a nossa vontade humana (‘a vontade do homem’) não realiza esse tipo de nascimento” — não reflete adequadamente o argumento apresentado pelo apóstolo João.
A essência da abordagem de João está no fato de que seus concidadãos não receberam a Cristo, enquanto qualquer pessoa que o recebesse seria capacitada e feita filho de Deus. O versículo 13 explica por que os judeus contemporâneos de Cristo não o aceitaram: eles confiavam no fato de serem descendentes de Abraão, acreditando que a vontade da carne e a vontade do homem seriam suficientes para gerar filhos de Deus (João 1:13; 8:39, 41).
Embora a vontade humana não seja capaz de produzir o “novo nascimento”, os líderes religiosos de Israel estavam convencidos de que sua descendência carnal de Abraão os tornava automaticamente filhos de Deus. Essa convicção os levou a declarar com orgulho: “Nunca fomos escravos de ninguém” (João 8:33), evidenciando sua confiança equivocada em sua linhagem e tradição, em vez de reconhecerem a necessidade de crer em Cristo para receberem poder para serem feitos filhos de Deus.
Escrituras versus Analogias
Wayne afirma que os cristãos são “passivos na regeneração” e, após citar três referências bíblicas — Tiago 1:18, 1 Pedro 1:3 e João 3:3-8 —, recorre a uma analogia:
“Não escolhemos nascer fisicamente; é algo que nos aconteceu. De forma semelhante, essa analogia nas Escrituras sugere que somos inteiramente passivos na regeneração.” (Idem)
Entretanto, a analogia utilizada por Wayne não reflete a verdade das Escrituras. Embora ninguém escolha nascer, foi Deus, segundo o conselho de Sua vontade, quem criou o homem para cumprir Seu propósito, estabelecido em Si mesmo na pessoa de Cristo (Efésios 3:10-11).
Adão, de fato, não escolheu ser criado; ele foi formado do pó da terra. Poderia Adão questionar a Deus sobre o motivo de sua criação? Evidentemente, não (Isaías 45:9). Adão não participou de sua criação, mas houve um evento em que ele atuou ativamente: sua ofensa ao mandamento dado no Éden. Por meio dessa desobediência, o pecado entrou no mundo e, com ele, a morte.
Foi Deus quem trouxe a morte sobre Adão? Não! Deus deu plena liberdade a Adão para comer de todas as árvores do jardim, alertando, porém, sobre as consequências de comer de uma única árvore. Adão desobedeceu e pecou, e o poder contido no mandamento — “Certamente morrerás” — afetou sua natureza, tornando-o morto para Deus e vivo para o pecado.
Assim como Adão, todos os seus descendentes não escolhem nascer e são, nesse sentido, passivos. Contudo, embora ninguém escolha nascer, o nascimento envolve um processo ativo: para uma pessoa nascer, é necessário ser gerada pelos pais através do sangue, o que envolve a vontade da carne e do homem. O nascituro não escolhe nascer, mas seus pais decidiram ter relação sexual, e é por meio dessa deliberação somado ao poder existente no corpo de ambos, que uma nova vida surge no mundo.
Os pais não possuem “poder” criativo para trazer à existência uma criança a partir do nada, pois somente Deus detém esse poder. Da mesma forma, os pais não têm controle direto sobre a concepção de um novo ser, mas participam ativamente do processo através do ato sexual. Embora a formação da criança no ventre seja inteiramente obra de Deus, o ato inicial de concepção exige a participação humana.
Como afirma a Escritura:
“Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas.” (Eclesiastes 11:5)
Desde a criação, Deus concedeu ao homem domínio sobre a face da terra e plena liberdade, tendo em vista Seu eterno propósito, estabelecido em Cristo, de torná-lo primogênito entre muitos irmãos. Para que muitos filhos fossem conduzidos à glória de Deus, concretizando Seu eterno propósito, o Senhor concedeu ao homem e à mulher o dom exclusivo de procriar, conforme revelado em Romanos 8:29 e Hebreus 2:10. Esse privilégio não foi concedido sequer aos seres celestiais, que, embora maiores em poder, não receberam tal dádiva.
A concepção de uma vida, ainda que natural e terrena, depende da anuência do homem, somada ao poder concedido por Deus. No entanto, com a queda de Adão, a semente humana tornou-se corruptível. Assim, todos os que entram no mundo através dessa semente corruptível de Adão, a “porta larga”, estão num caminho que conduz à perdição.
Portanto, a analogia de Wayne apresenta uma falha importante. Embora ninguém escolha nascer, os pais deliberam e participam ativamente desse processo. Ao comparar o nascimento físico ao nascimento espiritual, é inadequado ignorar a participação ativa e deliberada dos pais na geração da vida natural.
A analogia falha de Wayne ignora que os homens terrenos e naturais são a “matéria-prima” — a massa — para a obra da nova criação, conforme indicado em Romanos 9:21. A sequência dos eventos criativos entre o homem natural e o espiritual é bem definida nas Escrituras:
“Assim está também escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o SENHOR, é do céu. Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial.” (1 Coríntios 15:45-49).
Wayne utiliza essa analogia para sustentar a tese teológica calvinista do “chamado eficaz”, à qual é signatário. A preocupação não é interpretar o texto respeitando o contexto, mas encontrar justificativas para afirmar que a regeneração precede a fé em Cristo. Ao defender esse posicionamento, Wayne altera a definição inicial de regeneração como “novo nascimento” e a redefine como “uma obra de Deus que penetra no nosso coração para produzir uma resposta absolutamente certa — ainda que respondamos de modo voluntário” (Idem).
Apesar de reconhecer que não compreende plenamente o processo de regeneração ou o que exatamente Deus faz, Wayne tenta dar uma definição:
“O que exatamente ocorre na regeneração é um mistério para nós. Sabemos que de algum modo nós, que estivemos espiritualmente mortos (Ef 2:1), fomos vivificados para Deus e, num sentido muito verdadeiro, ‘nascemos de novo’ (Jo 3:3,7; Ef 2:5; Cl 2:13). Mas não entendemos como isso ocorre ou o que exatamente Deus faz para nos conceder essa nova vida espiritual. (…) Com base nos versículos citados acima, definimos a regeneração como o ato de Deus de despertar a vida espiritual dentro de nós, trazendo-nos da morte espiritual para a vida espiritual. Com base nessa definição, é natural entender que a regeneração ocorre antes da fé salvadora. Na verdade, é essa obra de Deus que nos concede a capacidade espiritual para responder a Deus com fé.” (Idem).
Se a regeneração é um mistério, por que Wayne tenta defini-la? A contradição torna-se evidente quando ele afirma que a regeneração é “um ato de Deus de despertar a vida espiritual em nós”. Contudo, se o pecador está separado de Deus, tanto que foi necessário o envio de um mediador, Jesus Cristo-Homem, como seria possível Deus agir diretamente no pecador sem o mediador, despertando nele uma vida espiritual?
Voltemos à analogia de Wayne. Embora ele afirme que o homem não participa da regeneração, o homem é, de fato, participante ativo ao tomar a cruz de Cristo. Wayne descreve a regeneração como um despertar de Deus, mas ignora que Deus não desperta aqueles que estão mortos em delitos e pecados; ao contrário, Ele conduz o pecador “morto em delitos e pecados” à morte.
Para o nascimento natural, é necessária a vontade do homem e a semente corruptível; para o nascimento espiritual, é imprescindível a vontade de Deus e a semente incorruptível, que é a palavra do evangelho. Assim como, para trazer uma criança ao mundo, os pais se unem em um ato que envolve vontade e a inserção da semente do homem na mulher, para que Deus gere filhos para Si, considerando Seu propósito eterno, é necessária a Sua vontade e a semente incorruptível — a palavra da verdade.
“Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como primícias das suas criaturas.” (Tiago 1:18);
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, (…) Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre. (…) Mas a palavra do SENHOR permanece para sempre. E esta é a palavra que entre vós foi evangelizada.” (1 Pedro 1:3 e 23 e 25).
“Jesus respondeu: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito.” (João 3:5-6).
O homem não é parte ativa na regeneração, mas é participante ativo na morte com Cristo — uma condição que só se torna possível através do evangelho. O evangelho oferece vida eterna, mas, para alcançá-la, é necessário, antes, satisfazer a justiça de Deus. Por isso, antes da regeneração, o pecador precisa morrer e ser sepultado com Cristo.
A proposta do evangelho é que o homem participe de Cristo por meio de Sua carne e sangue, recebendo assim a vida.
“Jesus, pois, lhes disse: Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos.” (João 6:53).
A regeneração é uma obra divina realizada exclusivamente por Deus, mas ela é precedida pela aceitação do evangelho, que conduz o homem à morte com Cristo e, posteriormente, ao novo nascimento pela vontade de Deus e por meio da palavra da verdade.
Quando Jesus declarou ser o pão vivo que desceu do céu, afirmando que Sua carne era verdadeira comida e Seu sangue verdadeira bebida, isso causou murmuração entre os judeus e escândalo entre muitos de Seus seguidores. Vários motivos levaram os ouvintes a rejeitarem Sua mensagem, como o fato de saberem que Ele era filho de José e Maria ou a afirmação de que o pão que oferecia era superior ao maná dado no deserto (João 6:42, 60-61).
Mas como, então, ser participante da carne e do sangue de Cristo? A resposta foi dada pelo próprio Jesus, um pouco antes de declarar que Sua carne e sangue eram alimento e bebida:
“E Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede.” (João 6:35).
Os pecadores são descritos nas Escrituras como pobres, necessitados, famintos e sedentos. Eles só podem ser plenamente satisfeitos ao receberem a Cristo, ou seja, ao crerem n’Ele. Crer em Cristo é o mandamento de Deus para a vida eterna, e obedecer a esse mandamento é essencial. Apenas aqueles que se sujeitam a Cristo como servos, obedecendo ao evangelho, creem verdadeiramente n’Ele (Romanos 6:17).
Crer no evangelho implica apresentar-se como servo para obedecer. Somente assim o homem é libertado do pecado e passa a servir à justiça (Romanos 6:16). Ao prometer descanso e alívio às almas cansadas e oprimidas, Jesus exigiu sujeição total a Ele como Senhor:
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas.” (Mateus 11:28-29).
No entanto, o homem só se torna verdadeiramente servo de Cristo quando toma sua cruz e segue após Ele, para que o velho homem seja crucificado e morto. Morrer com Cristo significa ser batizado na Sua morte. Somente após a morte do corpo do pecado o homem é sepultado com Cristo no batismo e, então, liberto do pecado (Romanos 6:3-7).
Essa mesma verdade é reiterada aos cristãos de Colossos por meio de duas figuras: o batismo e a circuncisão:
“Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos.” (Colossenses 2:12).
Ser participante da carne e do sangue de Cristo não é apenas um conceito simbólico; trata-se de um compromisso que exige sujeição à doutrina de Cristo, conduzindo o homem a participar de Sua morte, sepultamento e ressurreição.
A crucificação e a morte com Cristo são descritas como a “circuncisão de Cristo”, que consiste no despojar do “corpo da carne”. Essa circuncisão é distinta daquela instituída pela lei de Moisés, que removia apenas a carne do prepúcio (Colossenses 2:11).
A teoria calvinista, que afirma que a regeneração é uma vida espiritual que capacita o homem a crer em Cristo, falha ao ignorar o fato de que é imprescindível o homem morrer com Cristo para então ressurgir com Ele. Essa necessidade está claramente presente na doutrina bíblica da regeneração.
Considere o argumento apresentado por Wayne:
“À medida que o evangelho vem a nós por meio do chamado externo, Deus fala por intermédio dele para nos chamar a si mesmo (chamado eficaz) e para nos dar nova vida espiritual (regeneração) a fim de que sejamos capacitados a responder em fé.” (Idem).
No entanto, essa visão não considera o ensinamento bíblico de que a regeneração não é um simples despertar de vida espiritual, mas envolve a morte do velho homem com Cristo. Somente por meio dessa identificação com Sua morte é que o homem pode participar da ressurreição e, finalmente, receber a nova vida espiritual que o capacita a viver para Deus.
A argumentação apresentada por Wayne é falha. Como Deus poderia conceder “vida espiritual” a alguém que está “morto em delitos e pecados” para que este pudesse crer, se o que satisfaz a justiça de Deus é o homem conformar-se com Cristo na Sua morte? Tal conformidade é alcançada através do ato de crer em Cristo. De acordo com o apóstolo Pedro, os cristãos, segundo a misericórdia de Deus, foram regenerados pela ressurreição de Cristo dentre os mortos. Isso implica que, antes de serem regenerados, tiveram que morrer com Ele (1 Pedro 1:3).
Em Colossenses 2:12, fica evidente que o sepultamento com Cristo no batismo de Sua morte ocorre antes da ressurreição com Cristo, que é o verdadeiro significado da regeneração, também conhecida como “novo nascimento”. A ressurreição com Cristo acontece pela fé no evangelho, que é o poder de Deus. Não há um intervalo de tempo entre o sepultamento com Cristo e a ressurreição; portanto, o ato de crer precede tanto a morte quanto o sepultamento com Cristo (Colossenses 2:12).
Dessa forma, surge a indagação: quando essa “vida espiritual” é concedida? Se a regeneração for apenas uma capacidade para crer, então o que é a ressurreição com Cristo?
Ao interpretar 1 Pedro 1:3, Wayne atribui a ressurreição com Cristo à regeneração. No entanto, não há como a nova criação — que Deus faz em verdadeira justiça e santidade — ser reduzida a uma mera capacidade para crer. Essa abordagem desvirtua o significado da regeneração, que ora é apresentada por Ele como uma simples capacidade, ora como uma influência completa sobre o ser, ora como uma nova vida.
De acordo com as Escrituras, a regeneração envolve um processo completo: o homem, ao crer no evangelho, morre com Cristo, é sepultado com Ele, e, pelo poder que há no evangelho, ressuscita em novidade de vida. Reduzir esse processo a uma simples capacidade ou influência contradiz o propósito central da obra redentora de Cristo e o verdadeiro significado do novo nascimento.
No que consiste a regeneração?
A resposta para essa pergunta pode ser compreendida a partir da queda do homem no Éden.
Quando Deus declarou: “Façamos o homem conforme a nossa imagem e semelhança” (Gênesis 1:26), o cumprimento desse projeto não deve ser visto em Adão, o homem formado do pó da terra, mas na pessoa do Cristo ressurreto, que é a expressa imagem do Deus invisível (Colossenses 1:15). Assim, como o apóstolo Paulo ensina, primeiro vem o homem terreno, e somente depois o homem celestial (1 Coríntios 15:46). Deus criou o homem natural e terreno com uma natureza adequada ao propósito eterno que Ele estabeleceu na pessoa de Cristo.
Com a ofensa de Adão, porém, o pecado entrou no mundo, e com ele a morte. O pecado deve ser entendido como um senhor que exerce domínio, tendo a morte como seu aguilhão. A morte, que consiste na separação de Deus, comprometeu a natureza do homem, tornando-o incapaz de alcançar o propósito divino.
Como consequência do pecado de Adão, a morte alcançou toda a sua descendência. Por isso, é dito que todos os homens pecaram. Essa afirmação não se refere a erros de conduta ou a ações contrárias à moral humana, mas à incapacidade do homem de reverter as consequências do ato de Adão.
A impossibilidade dessa reversão está no fato de que os descendentes de Adão não possuem o poder necessário para corrigir sua condição. Esse poder teria que ser equivalente ao poder contido no mandamento dado no Éden, cuja violação resultou na separação de Deus. Além disso, mesmo que esse poder estivesse disponível, apenas alguém em uma condição idêntica à de Adão antes da queda poderia acessá-lo para remediar a situação.
O que mudou em Adão após a queda?
A relação de Adão com Deus foi drasticamente afetada. Ele perdeu a comunhão com o Criador, e, além disso, adquiriu o conhecimento do bem e do mal, tornando-se “como Deus” nesse aspecto (Gênesis 3:22). Contudo, é necessário um esclarecimento: o problema do homem não está no conhecimento em si adquirido por meio do fruto. O maior problema do homem não é o mal, e o bem por si só não é a solução para a sua condição.
O verdadeiro problema está na separação de Deus causada pela desobediência. O bem e o mal, por mais que sejam aspectos importantes, não resolvem a questão central da natureza humana caída. Apenas a regeneração, que restaura o homem à comunhão com Deus e o conforma à imagem de Cristo, pode cumprir o propósito original de Deus na criação.
A sujeição ao pecado não alterou a memória, a percepção ou a inteligência de Adão. Seu corpo físico permaneceu o mesmo, sem qualquer modificação imediata. O retorno ao pó era uma característica intrínseca da humanidade de Adão, tanto antes quanto depois da queda; essa realidade apenas foi compreendida por ele quando Deus o informou durante o castigo e a expulsão do Éden (Gênesis 3:19). O homem natural não foi criado para viver eternamente, pois essa condição é exclusiva do homem espiritual, que receberá um corpo glorioso (Hebreus 2:9; Apocalipse 13:8). Nesse sentido, Cristo, o Cordeiro morto desde a fundação do mundo, evidencia que a natureza humana, embora inicialmente longeva, não era eterna.
O propósito eterno de Deus é fazer de Cristo o primogênito entre muitos irmãos. Para isso, Cristo foi introduzido no mundo como o unigênito de Deus, sem pecado, porque não nasceu da semente corruptível do homem. Por essas características, Ele é identificado como o último Adão. Cristo é o eleito de Deus para o propósito eterno, e todos aqueles que são gerados pela vontade de Deus, por intermédio da semente incorruptível, tornam-se parte da geração eleita, alçados ao propósito de Deus em Cristo.
Antes, porém, de serem chamados ao propósito eterno, os homens precisam nascer de novo. Para nascerem de novo, é necessário, primeiramente, que morram para o pecado — o senhor que domina todos os nascidos da semente corruptível de Adão.
Como ocorre esse processo?
A pessoa sujeita ao pecado, ao ouvir a mensagem do evangelho — que é o mandamento e o poder de Deus — e crer, torna-se participante da morte de Cristo. Essa pessoa, que estava morta para Deus por causa da ofensa de Adão, mas viva para o pecado, ao morrer com Cristo, morre para o pecado, habilitando-se a ressuscitar com Cristo e viver para Deus.
Assim como Adão, ao morrer para Deus, não experimentou uma mudança perceptível aos sentidos humanos, da mesma forma, quando o homem morre para o pecado, nada visível ou imediato parece alterar-se. Suas lembranças, sentimentos, emoções, memórias e desejos permanecem. Até mesmo o conhecimento do bem e do mal — que tornou o homem como Deus — continua.
Portanto, o novo nascimento, embora seja resultado de uma nova criação, não altera de imediato os aspectos perceptíveis da natureza humana. Essa transformação se concretiza plenamente quando da adoção, ou seja, a redenção do corpo que visa a concretização do propósito eterno de Deus. Quando da recepção do corpo glorioso, Cristo será o primogênito entre muitos irmãos semelhantes a Ele.
Mesmo não sendo perceptível aos sentidos humanos, algo de fato acontece na regeneração: o corpo do pecado é desfeito, pois foi crucificado, morto e sepultado com Cristo. O pecado perde seu domínio, já que o corpo ao qual pertencia a ele deixa de existir. A morte, que antes separava o homem de Deus, não pode reter aqueles que morrem com Cristo. Isso ocorre porque o mesmo poder que ressuscitou Cristo dentre os mortos opera sobre os que creem, ressuscitando-os e fazendo-os assentar-se nas regiões celestiais em Cristo (Efésios 1:19-20; 1 Pedro 1:3).
No Éden, o mandamento de Deus visava preservar a vida do homem, mas este desobedeceu e morreu. Já o mandamento do evangelho exige obediência, cujo resultado é a morte com Cristo. Por isso, Jesus afirmou:
“Quem quiser preservar a sua vida, perdê-la-á, mas quem a perder por amor de mim, salvá-la-á.” (Lucas 9:24).
No Éden, a ordem de Deus era clara: “Não coma, para que não morra.” Na plenitude dos tempos, a ordem foi transformada: “Seja participante da carne e do sangue, para que tenha vida.”
No Éden, o homem estava vivo para Deus, mas ao desobedecer, morreu espiritualmente. Agora, ao tornar-se participante da carne e do sangue de Cristo, o homem morre para o pecado e é vivificado para Deus.
Essa inversão reflete o propósito redentor de Deus, onde a obediência ao evangelho conduz o homem à morte com Cristo, para que, em Sua ressurreição, ele possa viver plenamente para Deus.
Externamente, nada muda no cristão. Ele continua o mesmo após morrer e ressurgir com Cristo, de forma semelhante a Adão, que, após pecar e morrer espiritualmente, aparentemente não experimentou nenhuma mudança física. Contudo, algo crucial muda: o entendimento. Por meio do conhecimento contido no evangelho, o cristão abandona as concepções equivocadas que tinha sobre Deus e passa a crer que Jesus é o enviado de Deus. Esse processo é chamado de arrependimento (metanoia), uma transformação do entendimento.
Essa mudança de entendimento é operada pela revelação do evangelho, de modo que o crente em Cristo passa a ter o verdadeiro conhecimento do Santo. Isso contrasta com os judeus, que, embora tivessem zelo por Deus, careciam desse conhecimento essencial (Romanos 10:2).
Qualquer mudança comportamental, de caráter ou moral, depende da transformação pela renovação do entendimento. Para que os cristãos possam agir de acordo com a verdade do evangelho, exige-se que “cingam os lombos do entendimento” ou que “se transformem pela renovação da mente”, como ensinam as Escrituras (Romanos 12:2; 1 Pedro 1:13).
Um exemplo significativo disso é encontrado na vida do apóstolo Pedro. Após a morte e ressurreição de Jesus, Pedro só entrou na casa de gentios quando foi arguido por Deus através de uma visão. A questão em pauta não envolvia uma moral reprovável, mas sim a acepção de pessoas, que contraria a essência do evangelho e a verdade revelada por Deus.
O novo homem, gerado em Cristo, é livre de condenação e culpa, sendo plenamente justo e santo diante de Deus. No entanto, isso não significa que o cristão esteja isento de cometer erros ou de realizar ações contrárias à moral humana (Tiago 3:2). Esses erros decorrem da própria natureza humana, mas isso não significa que o crente esteja sujeito ao domínio do pecado. O crente pode tropeçar por ser humano, mesmo após a regeneração, porém continua sob a égide da justiça de Deus. Sua posição em Cristo o torna justo e santo diante de Deus, mesmo que, por ser humano, ainda cometa erros.
Nesse sentido, o salvo em Cristo é um novo ser, um nascido de novo, plenamente regenerado. Por ter sido regenerado, ele está em um novo tempo, de modo que tudo o que era velho passou. Embora a pessoa aparentemente continue a mesma, sua relação com Deus é agora de plena comunhão. A “massa” utilizada para criar a nova criatura é a mesma do velho homem, mas sua natureza e condição são completamente diferentes. A nova criatura é participante da natureza divina, livre do pecado e servo da justiça.
Dessa forma, a regeneração é uma nova vida, resultante do novo nascimento. É o ressurgir com Cristo dentre os mortos. As definições de regeneração apresentadas por Wayne, como “uma nova vida espiritual que capacita o homem a crer” ou “o despertar de uma vida espiritual no interior do pecador”, não encontram base no que a Bíblia ensina.
A ideia de que a regeneração consiste no “despertar da vida espiritual” em alguém morto, trazendo-o da morte espiritual para a vida espiritual, não é bíblica. Segundo a mensagem do evangelho, o morto em delitos e pecados não é “despertado”; ele é levado à morte para que uma nova vida seja criada. A seguinte declaração de Wayne exemplifica essa inconsistência:
“… definimos a regeneração como o ato de Deus de despertar vida espiritual dentro de nós, trazendo-nos da morte espiritual para a vida espiritual.” (Idem).
Essa teoria ignora que quem está morto para Deus está vivo para o pecado, e vice-versa. O pressuposto de que basta Deus conceder vida a quem está morto desconsidera a questão da justiça divina. Deus não pode justificar alguém que não seja justo sem comprometer Sua própria natureza.
Quando Paulo afirma que Deus é justo e justificador, ele enfatiza que Deus executa Sua justiça quando o pecador morre com Cristo. Ele é o justificador daqueles que ressurgem com Cristo, pois são novas criaturas:
“Para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus.” (Romanos 3:26).
Portanto, a regeneração não é simplesmente um “despertar”, mas uma transformação profunda e completa que ocorre quando o pecador, ao crer no evangelho, morre com Cristo, ressuscita em novidade de vida e é declarado justo diante de Deus.
O argumento de Wayne de que, com base na definição de regeneração como “o ato de Deus de despertar vida espiritual dentro de nós”, seria “natural entender que a regeneração ocorre antes da fé salvadora” carece de fundamento bíblico. Em primeiro lugar, o entendimento “natural” não pode substituir a revelação das Escrituras. Em segundo lugar, há um equívoco fundamental sobre o que constitui a “fé salvadora”.
Para Wayne, a “fé salvadora” seria uma capacidade dada ao homem para crer em Cristo. No entanto, do ponto de vista bíblico, a “fé salvadora” não é uma capacitação, mas a própria verdade do evangelho. Não é o ato de acreditar que salva, mas sim a pregação da fé que possui o poder de salvar. Quando a Bíblia declara que somos salvos pela fé, ela aponta para o evangelho como a fonte dessa salvação. O evangelho é a fé que salva, em contraste com a doutrina dos judaizantes, que apresentavam uma fé incapaz de salvar.
O erro está em inferir que a fé salvadora é uma capacidade ou dom concedido para crer, enquanto a Bíblia claramente ensina que o verdadeiro dom de Deus é Cristo. Ele é o autor e consumador da fé, sendo Ele mesmo a fé que havia de se manifestar (Gálatas 3:23).
Wayne cita vários versículos para sustentar sua posição, mas falha em respeitar seus contextos. Por exemplo, ele utiliza Romanos 3:11 — “Não há quem entenda, não há quem busque a Deus” — para afirmar que crer é resultado de uma capacidade concedida pelo novo nascimento. Contudo, ele não considera que Paulo está citando o Salmo 53, no qual Deus protesta contra os judeus. Esses judeus acreditavam que, por meio dos ritos da lei, buscavam e entendiam a Deus, mas estavam, na verdade, na mesma condição dos gentios. Por isso, é dito que “ninguém” busca a Deus.
Se os judeus efetivamente buscassem ou tivessem entendimento, o salmista certamente teria incluído uma ressalva. Ignorar esse contexto e a continuação do argumento de Paulo é distorcer o significado da epístola. Paulo esclarece, ao citar vários versículos dos Salmos e dos profetas, que tudo o que a lei diz, fala àqueles que estão debaixo da lei — ou seja, aos judeus:
“Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado.” (Romanos 3:19-20).
Portanto, o argumento de Wayne não apenas falha em respeitar os contextos bíblicos, mas também distorce a essência do evangelho. A fé salvadora não é uma capacidade humana concedida pela regeneração; é o evangelho de Cristo, o dom de Deus, que tem o poder de salvar todos os que creem (Efésios 1:13; Romanos 1:16).
Aplicar Romanos 3:1-20 à humanidade em geral é um equívoco interpretativo, pois o contexto trata especificamente dos judeus. Isso é reiterado em Romanos 10:2, onde Paulo explica que o zelo de Israel por Deus era inútil, pois não estava fundamentado em um conhecimento verdadeiro, pleno e completo. Embora Israel possuísse a lei, o propósito da lei era conduzir os judeus a Cristo, que veio revelar o Pai. A lei era apenas uma sombra do verdadeiro conhecimento que Cristo, o Mediador, trouxe ao declarar ao homem o que é justo (Jó 33:23; 1 João 5:20).
Wayne critica os “evangélicos” que, fundamentados nas Escrituras, afirmam que a regeneração só ocorre após o homem crer em Cristo. Ele argumenta que essa concepção é equivocada e que os evangélicos pensam assim porque observam mudanças comportamentais somente após a fé. Contudo, ele sustenta que a regeneração não é algo visível ou que possa ser constatado pelos sentidos humanos.
Aqui está o ponto crucial: a regeneração não precisa ser visível aos sentidos humanos. O crente sabe que é regenerado porque recebeu o espírito de Deus, ou seja, as Escrituras, que testifica que somos filhos de Deus por crermos em Cristo. Esse fundamento firme não depende de evidências externas, mas do testemunho das Escrituras (Romanos 8:16; 1 João 4:13).
Da mesma forma, os discípulos de Jesus não precisavam ver fisicamente o Pai, pois, ao verem Cristo, viam o Pai. O mesmo ocorre com a regeneração: ela não precisa ser percebida sensorialmente, pois é confirmada pela mensagem do evangelho que nos foi dada.
O termo grego πνεῦμα (pneuma), traduzido como “espírito” em João 3:8, pode ser compreendido no sentido de “palavra”, uma vez que as palavras de Cristo são espírito e vida (João 6:63). O argumento de que não é possível identificar quem é nascido do Espírito não se sustenta, pois o fruto produzido por essa pessoa permite reconhecê-la como gerada de Deus. Isso fica evidente quando entendemos que o fruto se refere à confissão de Cristo (1 João 4:2, 15; Hebreus 13:15).
Citar João 3:8 para defender que não é possível identificar quem é nascido de Deus demonstra uma leitura equivocada do texto. Nesse versículo, Jesus cita uma passagem de Eclesiastes para confrontar Nicodemos, um mestre em Israel. Nicodemos estava intrigado com a ideia de nascer de novo, ao ponto de perguntar se seria possível voltar ao ventre materno. Após Jesus explicar que o nascido da carne é carne e o nascido do Espírito é espírito, Ele concluiu Sua explicação com uma referência ao texto de Eclesiastes, destacando que é Deus quem realiza o novo nascimento, pois Ele faz todas as coisas, até mesmo controla o caminho dos ventos:
“Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas.” (Eclesiastes 11:5).
Além disso, Wayne ignora o ensino do apóstolo Pedro, que associa a purificação das almas à obediência à verdade do evangelho:
“Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor fraternal, não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração puro;” (1 Pedro 1:22).
É importante notar que o termo “espírito” não aparece em muitos manuscritos. A leitura do texto, portanto, seria: a purificação dos cristãos (almas) ocorre por meio da obediência à verdade, isto é, ao evangelho. Contudo, caso o termo “espírito” faça parte do texto original, como sugere alguns manuscritos, a leitura seria: a purificação dos cristãos (almas) é realizada por meio do Espírito (isto é, o evangelho) na obediência à verdade (obediência ao evangelho).
Em ambos os casos, o foco recai sobre o papel do evangelho como o meio de purificação, deixando claro que o novo nascimento não é algo oculto ou indefinível, mas um processo que resulta no fruto audível, o fruto dos lábios, que confessam a Cristo.
Essa leitura está em conformidade com 1 Pedro 1:2:
“Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: Graça e paz vos sejam multiplicadas.”
Os cristãos são descritos como eleitos segundo o que Deus antecipou aos Seus santos profetas (a presciência de Deus), santificados pelo evangelho (espírito), que requer obediência para a aspersão do sangue de Cristo. Em ambos os versículos, a ênfase está na obediência ao mandamento de Deus dado em Cristo. Como crer em Cristo é a obediência exigida, essa obediência precede a regeneração. Em outras palavras, a regeneração é a consequência da obediência ao evangelho.
O apóstolo Paulo também ensina essa verdade aos cristãos de Filipos:
“De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor;” (Filipenses 2:12).
A salvação é alcançada por meio da obediência (tremor) à palavra de Deus (temor). Esse é o significado de “servir” a Deus, conforme o salmista expressa:
“Servi ao SENHOR com temor, e alegrai-vos com tremor.” (Salmos 2:11; Isaías 66:2).
Conclusão
A Suma da exposição é: a regeneração não é uma nova vida espiritual dada a quem está morto em delitos e pecados. A regeneração refere-se à ressurreição com Cristo após o homem ser sepultado com Ele no batismo de Sua morte. A velha natureza não é aproveitada ou meramente purificada; ao contrário, ela é completamente descartada na morte com Cristo. Assim, o novo ser que surge é como se fosse gerado de novo:
“Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como primícias das suas criaturas.” (Tiago 1:18)
O termo grego ἀποκυέω (apokueó), utilizado por Tiago, é específico e técnico, sendo uma palavra comum no contexto da medicina. Ele refere-se ao ato de gerar uma criança, particularmente ao nascimento, ou seja, ao término de uma gestação. Esse termo corrobora com o entendimento inicial de Nicodemos ao ouvir o ensino de Jesus sobre nascer de novo: “Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, tornar a entrar no ventre de sua mãe e nascer?” (João 3:4). Esse termo reforça que a regeneração não comporta a ideia de ser uma “capacidade dada a um morto para crer” ou o “despertar de uma nova vida espiritual” em quem está morto.
A regeneração, portanto, é a criação de um novo ser em Cristo, resultante da obediência ao evangelho, que conduz o homem à morte com Cristo e à ressurreição em novidade de vida.