As cem ovelhas, as dracmas e o filho pródigo: uma exortação

Uma leitura apressada poderia sugerir que as dracmas intactas e as noventa e nove ovelhas simbolizam os crentes “bem-comportados” e seguros no aprisco. Mas não é isso que Jesus ensina. Na lógica das duas parábolas, o foco recai sobre o que estava perdido: a mulher acende a lâmpada e varre a casa para achar a dracma extraviada; o pastor abandona as noventa e nove no deserto para buscar a ovelha desgarrada. Em ambos os quadros, o objeto encontrado representa o pecador que, ao ouvir o evangelho, se arrepende e é restaurado — motivo de júbilo no céu.


As cem ovelhas, as dracmas e o filho pródigo: uma exortação

“Vede, não desprezeis algum destes pequeninos, porque eu vos digo que os seus anjos nos céus sempre veem a face de meu Pai que está nos céus. Porque o Filho do homem veio salvar o que se tinha perdido. Que vos parece? Se algum homem tiver cem ovelhas, e uma delas se desgarrar, não irá pelos montes, deixando as noventa e nove, em busca da que se desgarrou? E, se porventura achá-la, em verdade vos digo que maior prazer tem por aquela do que pelas noventa e nove que não se desgarraram. Assim, também, não é vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se perca.” (Mateus 18:10-14).

O objetivo de uma parábola

Jesus, o Mestre por excelência, ensinava por meio de parábolas — histórias aparentemente simples, mas carregadas de significado, destinadas a revelar os mistérios do Reino de Deus. Nem todas, porém, tinham apenas a função de instruir; algumas foram contadas para confrontar interpretações equivocadas de grupos específicos.

No capítulo 15 de Lucas, três dessas parábolas aparecem reunidas com um mesmo propósito: responder à crítica dos escribas e fariseus e mostrar o que realmente alegra o coração de Deus. São elas: a parábola das cem ovelhas, a das dez dracmas e a do filho pródigo.

Muitos já ouviram sermões emocionantes sobre essas passagens, ressaltando o amor incondicional do Pai; inúmeros hinos celebram a ovelha perdida nos ombros do Bom Pastor. Mas será que, de fato, entendemos a mensagem que Jesus quis transmitir?

O contexto das parábolas

“Chegavam-se a Ele todos os publicanos e pecadores para O ouvir” (Lucas 15:1). Essa cena bastou para que fariseus e escribas começassem a murmurar: “Este homem recebe pecadores e come com eles” (v. 2). Foi justamente para responder a essa queixa que Jesus contou as três parábolas.

O alvo não eram os pecadores dispostos a ouvi-Lo, mas os religiosos que se julgavam justos e desprezavam os demais. A pergunta que introduz a parábola das cem ovelhas não é mera retórica; é um confronto direto: “Qual de vós…?” (Lucas 15:4). Assim, Jesus interpela os fariseus e escribas — homens que confiavam em sua própria justiça e rejeitavam a doutrina do Cristo.

As noventa e nove deixadas no deserto

Com frequência, toda a atenção recai sobre a ovelha perdida; no entanto, o ponto-chave da parábola são as noventa e nove que ficaram no deserto. Jesus destaca que elas foram deixadas num lugar de escassez e prova — o mesmo deserto que Deus usou para ensinar a Israel que “nem só de pão viverá o homem” (Deuteronômio 8:3). Permanecer ali não é elogio, mas denúncia: elas simbolizam quem se considera justo e, por isso, acha que não precisa de arrependimento.

“Haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.” (Lucas 15:7)

Esses “justos” são os que rejeitaram o batismo de João, fechando os ouvidos ao conselho de Deus (Lucas 7:30). Continuam no deserto justamente porque recusam a instrução divina e não admitem a própria condição de perdidos.

Portanto, é equívoco ler as noventa e nove como crentes fiéis já perto de Deus. O texto não sugere que o pastor — figura de Cristo — as deixou em segurança; antes, mostra-as presas à sua suposta retidão, longe da graça que salva.

A ênfase de Jesus recai sobre a ovelha encontrada — isto é, os publicanos e pecadores que se achegavam para ouvir-Lhe a voz. Para esses, o amor do Pai se revela com festa, porque reconheceram a chegada do Reino e se arrependeram (Mateus 3:2).

A ovelha encontrada — essência da igreja

É notável que a única ovelha buscada, achada e carregada nos ombros pelo pastor simbolize, em última análise, a própria igreja: homens e mulheres que ouviram o evangelho, reconheceram sua condição de pecadores e se renderam a Cristo. A alegria no céu não brota de uma moral impecável, mas da mudança de entendimento — metanoia — produzida pela mensagem do Reino.

O próprio Senhor afirmou:

“Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.” (Mateus 15:24).

Ele veio “buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19:10). Publicanos e pecadores entenderam isso e admitiram estar perdidos; os fariseus, porém, consideravam-se sãos por causa das obras da Lei.

Foi a eles que Jesus direcionou parábolas como a das cem ovelhas e, mais tarde, a do fariseu e do publicano:

“Disse também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e desprezavam os outros…” (Lucas 18:9-14)

O contraste é claro:

Fariseu (autossuficiente)Publicano (arrependido)
Agradece por não ser “como os demais”Bate no peito clamando por misericórdia
Apresenta seu currículo religioso (jejuns, dízimos)Reconhece-se pecador
Sai do templo não justificadoVolta para casa justificado

Jesus conclui:

“Quem se exalta será humilhado; quem se humilha será exaltado.”

Assim, a parábola das cem ovelhas ecoa a mesma lição: não há festa no céu por justiça própria, mas por arrependimento genuíno. A igreja é composta por ex-perdidos que se deixaram encontrar — carregados nos ombros do Bom Pastor, não pelo seu mérito, mas pela graça que os alcançou.

Um chamado à metanoia

A mensagem é contundente: quem se considera justo por conta própria não se achega a Cristo, mas aquele que reconhece sua miséria encontra nos braços do Bom Pastor o descanso prometido. Isso é metanoia — mudança profunda de entendimento. Não se trata apenas de ajustar o comportamento externo; é permitir que a luz de Cristo revele quem somos e quem Ele é.

Nas Escrituras, arrepender-se não significa listar falhas diárias, mas voltar-se para Jesus, reconhecendo-O como Senhor e Cristo. Enquanto confiavam no privilégio de descender de Abraão, os seguidores do judaísmo julgavam-se salvos; porém, com a chegada do Filho de Deus, precisavam abandonar essa falsa segurança e crer n’Ele.

O erro dos fariseus foi confiar numa justiça fabricada pelas obras da Lei; o equívoco de muitos pregadores hoje é transformar a parábola num apelo meramente moral, em vez de anunciar a necessidade de crer no Redentor. Eles ignoram que, ao impor mandamentos de homens em nome da Lei, não purificavam o coração.

“Condutores cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo!… Limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de rapina e intemperança… Sois semelhantes a sepulcros caiados: por fora, formosos; por dentro, cheios de ossos e imundícia. Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e iniquidade.” (Mateus 23:24-28).

O evangelho não chama à autopromoção religiosa, mas a uma rendição sincera: abandonar a própria justiça, reconhecer-se perdido e deixar-se carregar nos ombros do Pastor que salva.

A Parábola das Dez Dracmas

 “Ou qual a mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma dracma, não acende a candeia, e varre a casa, e busca com diligência até a achar?” (Lucas 15:8-10).

Depois da parábola das cem ovelhas, Jesus apresenta imediatamente outra história com o mesmo objetivo: responder à crítica dos fariseus e escribas por Ele acolher publicanos e pecadores.

Desta vez, Ele descreve uma mulher que possui dez dracmas e perde uma. Determinada, ela acende a candeia, varre a casa e procura com diligência até encontrá-la. Quando a moeda reaparece, ela chama amigas e vizinhas para celebrar.

O ponto se repete: há alegria no céu por um único pecador que se arrepende. Jesus declara que há regozijo diante dos anjos de Deus quando isso acontece — resposta direta à murmuração dos religiosos.

Podemos enxergar a mulher samaritana (João 4) como uma “dracma perdida” que foi achada: desprezada pelos judeus, mas recebida por Cristo e transformada. Já o jovem rico (Lucas 18), preso à própria religiosidade que o impediu de abrir mão das suas posses, ilustra as “nove dracmas que não se perderam”: ele pensa estar seguro, porém recusa a oferta de seguir Jesus.

Como na parábola anterior, o alvo não é convencer “pecadores notórios” a voltarem a padrões morais; o alvo é expor os que se consideram “justos” — mas continuam longe de Deus porque rejeitam o propósito do evangelho.

A Parábola do Filho Pródigo

Talvez a parábola mais célebre de Jesus, o Filho Pródigo retoma o mesmo fio das duas histórias anteriores, agora com detalhes ainda mais profundos e explícitos.

Dois filhos, dois caminhos

  • O filho mais novo, ao exigir sua herança e partir para uma terra distante, representa o pecador alienado da comunhão com Deus perdido em delitos e pecados (Efésios 2:1).
  • O filho mais velho, que permanece com o pai, mas se recusa a participar da festa pelo retorno do irmão, representa os fariseus e escribas que não querem a graça de Deus revelada em Cristo para se salvarem, mas que murmuram pela graça estendida aos “pecadores”.

A ênfase da parábola repousa no choque entre a graça generosa do pai — que corre, abraça, restaura e celebra — e a dureza do filho mais velho, que contabiliza méritos, nutre ressentimento e se recusa a participar da alegria do evangelho. Assim, Jesus revela que o maior perigo não é estar longe em pecado manifesto, e sim perto em aparência, mas com o coração distante da graça que salva (Lucas 15:11-32).

O arrependimento (metanoia)

O texto afirma que o filho pródigo, “caindo em si”, decide voltar ao pai com uma atitude completamente nova: não reivindica direitos, mas suplica misericórdia. Essa mudança de mentalidade — metanoia — é o arrependimento genuíno: reconhecimento da própria ruína e confiança na bondade do Pai, ainda que seja apenas para servi-Lo.

“E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e moveu-se de íntima compaixão, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.” (Lucas 15.20)

A resposta do pai é imediata e transbordante: ele corre, abraça, beija, restaura a dignidade do filho e ordena uma celebração. Aqui se revela o coração de Deus, cheio de graça e compaixão — em nítido contraste com a frieza do irmão mais velho, que permanece do lado de fora, incapaz de participar da alegria do Pai.

O filho mais velho

A indignação do filho mais velho revela sua completa incompreensão da graça. Ele não discerne a fidelidade do pai — reflexo da fidelidade de Deus ao cumprir a promessa feita a Abraão, enviando o Cristo. Seu argumento é: “Eu te sirvo há tantos anos…”, como se o pai lhe devesse algo; contudo, a reconciliação não se fundamenta no desempenho passado do filho, mas na misericórdia do pai.  A relação reatada entre pai e filho tem por base  o mérito do pai, e não as ações passadas do filho.

Ao recusar-se a entrar na festa, ele retrata os fariseus: vivem perto das coisas sagradas, mas, por confiarem em seus próprios méritos, permanecem longe do coração do Pai.

Um mesmo ensino em três parábolas

Essas três parábolas (a ovelha, a dracma e o filho) não são três mensagens diferentes. São três formas de um único ensinamento:

Deus se alegra em restaurar o que estava perdido. E o maior obstáculo à restauração não está na imoralidade, mas na justiça própria.

  • As noventa e nove ovelhas representam os filhos de Israel que andavam dispersos (Mateus 10:5-6);
  • A ovelha perdida refere-se ao seu povo e a outro rebanho, de modo a congregar, em um só corpo, judeus e gentios (Jeremias 50:6; Ezequiel 34:4; João 10:16);
  • A dracma perdida representa a ovelha perdida, da mesma forma que as nove dracma representam as noventa e nove ovelhas; essa repetição das parábolas tem o condão de evitar distorções do registrado.
  • O filho pródigo representa os pecadores que se achegaram a Cristo para o ouvir, o que antecede o arrependimento;
  • O filho mais velho, por sua vez, é o retrato dos religiosos do judaísmo, que mesmo fazendo parte da nação de Israel, não comungam da alegria do evangelho.

Portanto, o apelo de Jesus é: abandone a justiça própria. Reconheça a sua necessidade. Arrependa-se. E venha para a festa proporcionada pela boas novas de salvação.

“Jesus dizia, pois, aos judeus que criam nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão, e nunca servimos a ninguém; como dizes tu: Sereis livres?  Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado.” (João 8:31-34).

Aplicação devocional

Jesus advertiu que ouvir a mensagem do Reino sem compreendê-la permite que o maligno roube a semente do coração (cf. Mateus 13:19). Se isso acontece com quem ouve, imagine o risco de ler mal o texto bíblico: interpretações distorcidas podem gerar falsos profetas — até mesmo anticristos.

“Filhinhos, esta é a última hora. Como ouvistes que o anticristo vem, muitos anticristos já têm surgido… Saíram do nosso meio, mas não eram dos nossos.” (1 João 2:18-19).

Os escribas e fariseus se opunham a Cristo porque seguiam mandamentos de homens. A parábola das cem ovelhas foi contada justamente para mostrar a esses religiosos que os “pecadores” que eles desprezavam eram, na verdade, o alvo do ministério de Jesus: evangelizar os pobres em espírito (Isaías 61:1).

“Em vão Me honram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens.” (Marcos 7:7-8)

As noventa e nove deixadas no deserto

Uma má leitura poderá afirmar que as noventa e nove ovelhas representam os fiéis na igreja, “bem-comportados” e seguros. Não é isso que Jesus ensina. O Pastor deixa as noventa e nove no deserto para buscar a ovelha perdida — os pecadores que se arrependem quando ouvem o evangelho. Por isso, a verdadeira igreja não é formada por “justos” à moda farisaica, mas por ovelhas encontradas, carregadas nos ombros do Bom Pastor.

Um convite

Se você ainda não conhece a Cristo, deixe-Se encontrar. Creia que Ele é o Cristo, o Filho de Deus. Há alegria no céu quando alguém reconhece sua condição de pecador e se entrega aos cuidados do Pastor, encontrando descanso para a alma (Mateus 11:29-30).

Fuja da religiosidade dos escribas e fariseus, que confia em boas obras. A única obra que Deus requer é esta: crer naquele que Ele enviou (João 6:29) — e receber, pela fé, a justiça que vem do alto.

“Pois, não reconhecendo a justiça que vem de Deus e buscando estabelecer a sua própria, não se submeteram à justiça de Deus. Porque o fim da Lei é Cristo, para justificação de todo o que crê.” (Romanos 10:3-4).

 

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