Parede branqueada

Os elementos reunidos neste estudo demonstram que chamar o sumo sacerdote de “parede branqueada” não foi um destempero de Paulo. O apóstolo não “entrou na carne”, como alguns supõem, nem agiu por qualquer problema de visão. Estava no exercício legítimo de sua defesa e não tinha por que se submeter a injúria real. Ao ancorar-se na Escritura, não havia razão para desculpar-se, sobretudo porque não atacou o caráter ou a moral de Ananias; censurou, isto sim, a conduta do sacerdote no exercício do julgamento, denunciando a incoerência de quem se assenta para julgar segundo a Lei e, contra a própria Lei, manda ferir o réu.


Parede branqueada

“Então Paulo lhe disse: Deus te ferirá, parede branqueada; tu estás aqui assentado para julgar-me conforme a lei, e contra a lei me mandas ferir?”(Atos 23:3).

A repreensão de Paulo ao sumo sacerdote: destempero ou defesa legítima?

Qual foi a real intenção do apóstolo Paulo ao chamar o sumo sacerdote Ananias de “parede branqueada”? Teria sido um destempero momentâneo? Como dizem alguns: Seria um surto de “carnalidade”? Uma recaída em sua antiga ira farisaica? Ou talvez um problema de visão, como alguns cogitam? E o reconhecimento posterior de Paulo minimizará sua conduta? Essas perguntas têm sido levantadas por muitos intérpretes, mas é necessário analisar o contexto com atenção e à luz das Escrituras.

O episódio ocorreu diante do Sinédrio — o supremo tribunal e legislativo de Israel — no momento em que Paulo exercia sua própria defesa. O apóstolo estava cercado por homens versados na Lei, pertencentes a dois grupos religiosos influentes do judaísmo: fariseus e saduceus. Como profundo conhecedor da Lei e das Escrituras — especialmente dos Salmos e dos profetas —, Paulo tinha plena consciência do cenário em que se encontrava e sabia exatamente como se posicionar.

Ele usou um termo duro: “parede branqueada”, composto por um substantivo e um adjetivo. Trata-se de uma expressão de origem profética, que denuncia a hipocrisia daqueles que, apesar de aparentarem santidade por fora, escondem corrupção por dentro — uma crítica semelhante à que Jesus dirigiu aos fariseus (cf. Mt 23:27). Paulo, portanto, não atacava a moral ou o caráter de Ananias de modo pessoal ou gratuito, mas apontava a ilegalidade e hipocrisia de sua conduta, já que o sacerdote havia mandado agredi-lo fisicamente sem qualquer julgamento ou sentença formal.

O mais grave é que ninguém naquela assembleia — que deveria zelar pelo cumprimento da Lei — se opôs à ilegalidade cometida por Ananias. O próprio Paulo, conhecendo profundamente a Lei, estava no pleno direito de questionar tal violação. Sua fala, longe de ser um destempero, estava alinhada com o espírito profético que denuncia a injustiça mesmo entre os que ocupam as mais altas posições religiosas.

Assim, compreender a fala de Paulo exige considerar todo o contexto legal, religioso e escriturístico da cena. Ele não agiu por impulso, mas em firme e legítima defesa, apontando a contradição de um sistema que, embora se dissesse guardião da Lei, violava-a flagrantemente sem qualquer constrangimento.

 

Parede branqueada: uma estrutura sem segurança

“Até quando maquinareis o mal contra um homem? Sereis mortos todos vós, sereis como uma parede encurvada, e uma sebe pouco segura” (Salmos 62:3).

Para compreendermos adequadamente o episódio em que o apóstolo Paulo, diante do Sinédrio, chama o sumo sacerdote Ananias de “parede branqueada”, é essencial analisarmos não apenas o contexto jurídico do episódio, mas também suas referências bíblicas implícitas — especialmente à luz do Salmo 62.

Nos dois primeiros versículos do salmo, o salmista — inspirado pelo Espírito — antecipa profeticamente a confiança que o Messias depositaria em Deus como sua única rocha, salvação e defesa:

“A minha alma espera somente em Deus; dele vem a minha salvação.
Só ele é a minha rocha e a minha salvação; é a minha defesa; não serei grandemente abalado” (Salmos 62:1–2).

É notável que, em Atos 23, Paulo estivesse justamente exercendo sua própria defesa diante de autoridades religiosas. E é neste contexto que ele denuncia a hipocrisia do sumo sacerdote Ananias — que ordenou que Paulo fosse agredido ilegalmente — utilizando a expressão “parede branqueada”, ecoando a linguagem profética e poética das Escrituras.

No versículo 3 do salmo, lemos:

“Até quando maquinareis o mal contra um homem? Sereis mortos todos vós, sereis como uma parede encurvada, e uma sebe pouco segura”.

O salmista, ao prever a oposição injusta que o Messias enfrentaria, denuncia aqueles que perverteriam o direito por meio de mentira, suborno, extorsão e roubo (vv. 4 e 9–10). Eles seriam como uma “parede encurvada” — expressão metafórica que indica instabilidade, falsidade, hipocrisia e colapso iminente. Paulo, ao dizer “parede branqueada”, alude ao mesmo princípio: alguém que se apresenta externamente como justo, mas internamente está corrompido — imagem também usada por Jesus contra os fariseus (cf. Mateus 23:27).

Ao confrontar Ananias com essa expressão, Paulo não demonstra destempero, falta de domínio próprio ou arrependimento posterior no sentido moral, como muitos sugerem. Pelo contrário, ele faz uso legítimo das Escrituras para denunciar uma quebra evidente da Lei por parte de quem deveria defendê-la. A própria estrutura do salmo aponta que a confiança está em Deus como defesa, contrastando com a injustiça de homens que deveriam representar o direito e a retidão.

Portanto, a referência ao Salmo 62 ajuda a esclarecer que Paulo não estava apenas se defendendo, mas proclamando, com autoridade profética, a condenação divina contra aqueles que, como Ananias, perverteram a justiça e maquinaram o mal contra o “homem” — o Messias.

A relação entre “parede encurvada” (Salmo 62:3) e “parede branqueada” (Atos 23:3) é, portanto, mais que linguística: é teológica. Ambas representam a denúncia de uma religiosidade hipócrita, sustentada por aparências, mas destituída de justiça verdadeira. O salmista antecipou essa oposição ao Messias, e Paulo, como seguidor e proclamador d’Aquele que é a Rocha, firmou sua defesa nas mesmas Escrituras.

 

Justiça, parede e queda: o ensino profético de Isaías

<style=”text-align: center;”>“Pelo que assim diz o Santo de Israel: visto que rejeitais esta palavra, e confiais na opressão e na perversidade, e sobre isso vos estribais, esta maldade vos será como a brecha de um muro alto, que, formando uma barriga, está prestes a cair, e cuja queda vem de súbito, num instante” (Isaías 30:12 -13).

O texto de Isaías 30:12-13 revela um princípio espiritual profundo ao associar a imagem de um muro alto, prestes a ruir, à perversão da justiça. Segundo o profeta, aqueles que rejeitam a palavra do Santo de Israel e confiam na opressão e na perversidade estarão apoiando-se em uma estrutura instável — uma parede com uma barriga prestes a cair. A queda dessa parede, que simboliza a falsa segurança que provém da injustiça, virá repentinamente, num instante.

Essa figura da parede ou do muro é recorrente nas Escrituras e, com frequência, representa a justiça — ou, pelo menos, aquilo que deveria ser justo. Muro, parede e sebe são símbolos de proteção, limites e segurança, o que é próprio à justiça. Quando um homem ergue um muro ao redor de sua propriedade, ele está exercendo um direito legal, estabelecendo limites com base na lei. Assim também, no sentido espiritual e social, a justiça deveria ser esse espaço seguro, onde as causas seriam acolhidas com retidão e equidade.

Contudo, o que Isaías denuncia é o completo abandono desses princípios. Os tribunais de Israel, em vez de sustentarem a justiça conforme a lei de Deus, apoiavam-se na opressão, no suborno e na perversidade. A justiça havia se tornado uma estrutura corrupta. A profecia não apenas condena os amorais — aqueles que confiam na opressão — mas também os morais, que confiam em suas próprias obras, rejeitando igualmente a palavra de Deus. Ambos os grupos, apesar de se apresentarem de formas diferentes, partilham da mesma cegueira espiritual.

Isaías 59:10 reforça essa imagem ao afirmar: “Apalpamos as paredes como cegos; como os que não têm olhos, andamos apalpando…”. Guiar-se pela justiça humana é como tatear nas trevas, ainda que esteja ao meio-dia. Mesmo cercado por luz natural, tropeça por não andar na verdadeira luz (João 12:35). Ao confiar na letra da lei, e não no espírito dela, caminha para o erro. A confiança em sistemas legais e normas morais, por mais elevados que sejam, não garante comunhão com Deus. Quando levados às “regiões da morte” — expressão que evoca o juízo e a separação de Deus — revelam-se como mortos espirituais: “nos lugares escuros somos como mortos” (Isaías 59:10).

O ensino do profeta é claro: quem deposita sua confiança em qualquer tipo de justiça que não proceda de Deus está abrigando-se à sombra de uma parede encurvada, prestes a desabar. Não está alicerçado na rocha firme da salvação, mas em estruturas artificiais. O verdadeiro descanso, a verdadeira segurança, provêm apenas de Deus, como afirma o Salmo 62:1 — “Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa; dele vem a minha salvação.”

Isaías denuncia, portanto, não apenas a falência institucional dos juízos de Israel, mas a falência de toda tentativa humana de edificar justiça sem Deus. Essa era a condição do povo de Israel:

“O melhor deles é como um espinho; o mais reto é pior do que a sebe de espinhos; veio o dia dos teus vigias, veio o dia da tua punição; agora será a sua confusão.” (Miquéias 7:4).

E com isso, aponta profeticamente para a necessidade da justiça que vem de Deus, que só se realiza plenamente em Cristo.

A justiça humana como parede instável: uma reflexão profética

O profeta Isaías, ao afirmar que “apalpamos as paredes como cegos; como os que não têm olhos, andamos apalpando” (Isaías 59:10), oferece uma poderosa imagem da condição espiritual de um povo que se guia pela justiça humana. A parede, o muro e a sebe aparecem nas Escrituras como símbolos que delimitam espaço e transmitem a ideia de proteção e segurança. No contexto jurídico, essas imagens remetem aos limites estabelecidos pela lei e às garantias dela decorrentes.

Quando alguém ergue um muro ao redor de sua propriedade, está invocando a autoridade da lei para definir e preservar direitos. Da mesma forma, o ser humano tenta apoiar-se na justiça dos homens — um sistema de normas, códigos e regras — para orientar sua conduta. Como cegos, tateiam pelas paredes em busca de direção. No entanto, mesmo que se esforcem para viver à altura dessas exigências morais e legais, permanecem tropeçando, porque tais sistemas não têm o poder de conduzir à verdadeira retidão.

A Escritura, representando a luz de Deus, deveria ser a guia do povo. Mas, ao desconsiderarem seu espírito e se apegarem apenas à letra da lei, os israelitas seguiam por seus próprios caminhos e tropeçavam mesmo ao meio-dia, quando a luz deveria ser plena. Confiavam na lei, mas, quando fossem confrontados com a realidade espiritual — descrita como “lugares escuros”, ou regiões da morte — sua condição se revelaria: estavam mortos perante Deus, destituídos da vida que vem d’Ele. Isaías resume essa situação dizendo:

“Tropeçamos ao meio-dia como nas trevas, e nos lugares escuros somos como mortos” (Isaías 59:10).

A profecia deixa claro que todos em Israel, indistintamente, estão debaixo da maldade — pois não há quem faça o bem — e que, ao confiarem em suas próprias iniquidades, esses homens repousam à sombra de uma parede encurvada, deformada e prestes a ruir (cf. Isaías 30:13). Essa parede simboliza uma falsa sensação de segurança, sustentada por opressão, suborno, legalismo vazio e perversão do juízo. Ela não representa a verdadeira justiça, mas uma caricatura dela, construída com preceitos de homens.

Essa condição é diametralmente oposta à firmeza que provém de Deus. Enquanto a justiça humana é como uma parede instável, Deus é apresentado no Salmo 62 como a verdadeira rocha e defesa: “Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa; dele vem a minha salvação” (Salmo 62:1). A segurança real não se encontra nos tribunais humanos nem nas obras da lei, mas na graça do Deus que salva e justifica aquele que n’Ele confia.

Assim, Isaías denuncia não apenas a falência da justiça institucional de Israel, mas também a ilusão da autossuficiência moral e legal dos homens. A mensagem do profeta aponta para a necessidade de uma justiça que não é construída por mãos humanas, mas que desce do alto, firme como uma rocha eterna — justiça essa revelada em Cristo.

O boi que debulha

“Pois na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi que debulha. É de bois que Deus tem cuidado?” (1 Coríntios 9:9).

Ao escrever aos coríntios, o apóstolo Paulo cita a Lei de Moisés: “Não atarás a boca ao boi que debulha” (1 Coríntios 9:9), aplicando-a em sua própria defesa. O objetivo de Paulo não era motivar os cristãos à contribuição, como frequentemente se interpreta, mas afirmar o seu direito legítimo como apóstolo. Ele mesmo esclarece:

“Mas eu de nenhuma destas coisas usei. E não escrevi isto para que assim se faça comigo. Melhor me fora morrer, do que alguém fazer vã esta minha glória” (1 Coríntios 9:15).

Paulo, portanto, não reivindicava auxílio material, mas utilizava a Escritura para sustentar a legitimidade de seu apostolado, especialmente diante daqueles que o questionavam. Ele declara explicitamente: “Esta é a minha defesa para com os que me condenam” (1 Coríntios 9:3). Ao menos para os coríntios, Paulo era de fato apóstolo (v. 2).

Esse mesmo princípio se aplica ao episódio em que Paulo comparece diante do Sinédrio e é injustamente espancado por ordem do sumo sacerdote Ananias. Diante dessa violação flagrante da Lei, Paulo reage com a expressão: “Deus te ferirá, parede branqueada” (Atos 23:3). Longe de ser uma injúria gratuita ou fruto de destempero emocional, essa declaração tem fundamento teológico e jurídico.

Ao evocar a expressão “parede branqueada”, Paulo remete a imagens das Escrituras que associam paredes, muros e sebes à justiça e ao direito. No Salmo 62:3, lemos: “Sereis como uma parede encurvada, e uma sebe pouco segura”, onde os que pervertem o direito são denunciados como instáveis e falsos. A referência à “parede branqueada” também encontra eco em Ezequiel 13, onde profetas mentirosos são denunciados por erguerem muros frágeis e os cobrirem com cal, ocultando sua fragilidade com aparência de legitimidade.

A acusação de Paulo é, portanto, uma denúncia profética: Ananias, que deveria zelar pelo cumprimento da Lei, estava na verdade pervertendo-a ao ordenar que Paulo fosse agredido antes de qualquer condenação formal. Isso violava frontalmente a própria Lei que deveria aplicar. Segundo Deuteronômio 25:1–3, o castigo só podia ser administrado após um julgamento justo. Além disso, a Lei prescrevia o uso do açoite nas costas, e não ferimentos no rosto, o que agrava ainda mais a irregularidade da ação de Ananias.

Assim, ao dizer “Deus te ferirá, parede branqueada”, Paulo não faz uma injúria no sentido jurídico da palavra — que é denegrir injustamente a reputação de alguém. Ele apenas revela a hipocrisia de um juiz que se apresenta como justo, mas cuja conduta revela iniquidade. Paulo, ao agir assim, não está movido por ira ou falta de domínio próprio, mas por zelo pela justiça. Sua fala evoca as Escrituras, e resulta em advertência ao tribunal de que aquele que julga injustamente está debaixo do juízo de Deus, como diz o Salmo: “Sereis mortos todos vós…” (Salmo 62:3).

Portanto, tanto diante dos coríntios quanto diante do Sinédrio, Paulo utiliza a Lei não como instrumento de autopromoção ou vantagem pessoal, mas como base legítima para sua defesa, reafirmando seu compromisso com a justiça que procede de Deus, e não com aparências legais que ocultam iniquidade.

Sepulcros caiados

O apóstolo Paulo tinha plena consciência de que Ananias era o sumo sacerdote. Isso fica evidente ao reconhecer que ele estava assentado na posição de juiz: “Tu estás aqui assentado para julgar-me…”. Ademais, Paulo também sabia que havia sido injustamente agredido por afirmar que, até aquele momento, havia vivido com boa consciência diante de Deus (Atos 23:1). Sua resposta ao insulto não foi fruto de ignorância ou impulso emocional.

Quando Paulo o chama de “parede branqueada”, está empregando uma expressão com profundo significado bíblico e profético. A palavra “branqueada” (ou “caiada”) é um adjetivo que denota um processo externo — algo que denota reforma ao tornar branco por fora, mas que pode ocultar sujeira por dentro. À época, esse branqueamento era feito com cal, com o propósito de dar aparência de pureza a algo que, de fato, poderia estar deteriorado.

Chamar Ananias de “parede branqueada” equivalia a dizer que sua posição de autoridade e aparência de justiça eram apenas fachada. Diante dos olhos dos presentes no Sinédrio, Ananias parecia um homem justo: sumo sacerdote, juiz e mestre em Israel. No entanto, sua atitude revelava o contrário. Mesmo diante de uma transgressão clara da lei — mandar ferir alguém antes de ser condenado —, Ananias ainda era tido como justo pelos demais, e isso se devia unicamente ao status que ocupava.

“Entonces Paulo lhe diffe: Ferir teha Deus, parede caiada…” Novo Testamento das India Oriental, Amsterdam, 1681.

Paulo, ao utilizar tal expressão, ecoa a denúncia feita por Jesus contra os escribas e fariseus: “Ai de vós… sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia” (Mateus 23:27-28). O paralelismo entre os “sepulcros caiados” e a “parede branqueada” reforça a crítica à hipocrisia religiosa — àqueles que, ocupando posições de liderança e juízo, transgridem a própria lei que proclamam defender.

Portanto, ao dizer “Deus te ferirá, parede branqueada”, Paulo não proferiu uma injúria no sentido jurídico, que seria um ataque à honra ou moral do ofendido sem fundamento. Sua fala foi uma denúncia profética, uma acusação fundamentada na Escritura contra a hipocrisia e injustiça de quem deveria zelar pelo direito e agir conforme a Lei.

No entanto, ao mencionar a lei (“Não dirás mal de uma autoridade do teu povo”), Paulo esperava que os presentes apoiassem a verdade e a justiça. Surpreendentemente, eles se voltaram contra ele, dizendo: “Ousas insultar o sumo sacerdote de Deus?” (Atos 23:4). Ficou claro, então, que o tribunal era parcial e tendencioso. A defesa de Paulo, por mais sólida que fosse, seria infrutífera num ambiente dominado por alianças políticas e religiosas. Percebendo isso, Paulo estrategicamente lançou mão de um argumento que dividisse o conselho: “Sou fariseu, filho de fariseus…” (Atos 23:6), provocando um conflito entre os fariseus e os saduceus.

Quanto à afirmação: “Não sabia, irmãos, que ele é sumo sacerdote” (At 23:5), trata-se de uma ironia. Paulo certamente sabia quem era Ananias, pois reconhecia sua posição no tribunal. Ele não se referiu a quem o esbofeteou, mas àquele que ordenou o golpe. A ironia está no fato de que, por sua conduta injusta, Ananias desqualificava a si mesmo como sumo sacerdote, não sendo digno de reconhecimento. Assim, não foi por deficiência visual que Paulo “não o reconheceu”, como alguns supõem, mas por uma recusa implícita em legitimá-lo enquanto autoridade espiritual e judicial diante de Deus.

Concluímos que:

Quando o apóstolo Paulo declarou ao sumo sacerdote Ananias: “Deus há de ferir-te, parede branqueada”, sua intenção não foi impulsiva, nem um ato irrefletido ou carnal, como alguns alegam. Ao contrário, tratava-se de uma resposta precisa diante da flagrante violação da Lei e da distorção de seus direitos legais. No contexto do julgamento, Paulo estava exercendo sua autodefesa, e sua fala está alinhada ao modelo escriturístico utilizado em outras ocasiões, como quando citou: “Não atarás a boca ao boi que debulha” (1 Coríntios 9:9), em defesa de sua autoridade apostólica. Nesse caso, a citação da lei de Moisés serviu para fundamentar um direito, mesmo que Paulo tenha optado por não usufruí-lo. De modo semelhante, a menção à “parede branqueada” é uma referência implícita ao Salmo 62, especialmente ao verso 3, onde lemos: “Sereis mortos todos vós, sereis como uma parede encurvada…”. Esta era uma denúncia bíblica contra os que pervertem a justiça.

A associação entre a figura da “parede encurvada” do Salmo e a expressão “parede branqueada” utilizada por Paulo remete a um mesmo princípio: a hipocrisia institucionalizada daqueles que detêm o poder do juízo, mas agem contra a retidão da Lei. O branqueamento da parede — prática comum da época com o uso de cal — era utilizado para ocultar a sujeira, proporcionando aparência de limpeza e integridade. Da mesma forma, o sepulcro caiado, imagem usada por Jesus em Mateus 23:27-28, revela essa dissonância entre aparência e essência: por fora, beleza; por dentro, corrupção e morte.

Paulo, ao empregar tal linguagem, não apenas denunciava a injustiça do ato de Ananias — que mandou feri-lo sem julgamento — como também invocava o juízo divino sobre tal conduta. Sua fala foi profética, e não uma injúria pessoal. Injuriar, no sentido estrito, seria ofender a honra sem fundamento; no entanto, o comportamento de Ananias revelava que ele não agia como um verdadeiro juiz de Israel. A Lei estabelecia que apenas após condenação haveria punição, e mesmo assim, os castigos eram regulamentados (Deuteronômio 25:1-3). Ananias transgrediu essas normas, ferindo Paulo no rosto sem julgamento prévio.

A resposta de Paulo não visava atacar a pessoa de Ananias, mas sim confrontar sua conduta enquanto juiz. Por isso, Paulo disse: “Tu estás aqui assentado para julgar-me segundo a lei, e contra a lei mandas ferir-me?” (Atos 23:3). Sua fala revelava a hipocrisia de um sistema em que o próprio guardião da Lei a transgredia diante de todos. Ao perceber que a plateia — composta por membros do Sinédrio — nada fazia para corrigir aquela injustiça, Paulo entendeu que não poderia contar com a imparcialidade dos presentes. Foi nesse contexto que ele disse: “Não sabia, irmãos, que ele era o sumo sacerdote” (Atos 23:5), não por ignorância ou limitação visual, mas de forma irônica, revelando que um verdadeiro sumo sacerdote jamais agiria daquela maneira.

A declaração de Paulo, “Deus te ferirá”, está de acordo com o escopo profético das Escrituras. Como se lê em Provérbios 27:12, “O avisado vê o mal e esconde-se; mas os simples passam e sofrem a pena.” Ananias fora advertido, mas a execução do juízo caberia a Deus. A fala de Paulo encontra paralelo com a postura do arcanjo Miguel em Judas 1:9, que, diante do diabo, não proferiu maldição, mas disse: “O Senhor te repreenda”. Da mesma forma, Paulo não amaldiçoa Ananias, mas profetiza sua sorte diante de Deus.

Por fim, o apóstolo demonstra que conhece e respeita a Lei — mesmo quando ironiza o comportamento de Ananias. Sua citação de Êxodo 22:28 (“Não falarás mal de uma autoridade do teu povo”) é uma reafirmação da validade da Lei, ainda que o homem que ocupasse o cargo estivesse agindo em total desacordo com ela. Diante da parcialidade do tribunal e da indiferença dos presentes quanto à justiça, Paulo compreende que seria inútil apelar à legalidade. Por isso, opta por dividir a assembleia ao mencionar sua filiação farisaica (At 23:6), usando da sabedoria para preservar sua vida diante de uma corte cega e perversa.

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