Paulo destaca que o pecado, como condição que separa o homem da vida que há em Deus, é anterior ao advento da lei mosaica. Isso levanta questões fundamentais: se o pecado estava no mundo antes da lei, como sustentar que o pecado não é imputado sem a presença de uma lei?
Como o Pecado Entrou no Mundo?
Conteúdo do artigo
O Éden e a Cruz
O comentário de Paulo em Romanos 5:1-11 destaca a transformação radical na vida dos cristãos: de uma condição de inimizade com Deus para a reconciliação por meio de Cristo. Ele argumenta que, enquanto ainda éramos inimigos, Deus demonstrou Seu amor ao enviar Cristo para morrer pelos pecadores, proporcionando justificação e paz com Deus (Romanos 5:10-11).
Nos versículos 12 a 19, Paulo retrocede no tempo para explicar a origem dessa inimizade e a restauração da paz. Ele remonta ao Éden, onde, por meio de Adão, o pecado e a morte entraram no mundo, afetando toda a humanidade. Em contraste, é através de Cristo, o último Adão, que a graça, a justiça e a vida eterna são concedidas. Essa seção explica como o estado de inimizade foi herdado de Adão e como a reconciliação é estabelecida por meio da obra redentora de Cristo (Romanos 5:1).
Embora Paulo não cite diretamente nenhuma passagem específica da Escritura em Romanos 5, a explicação está profundamente enraizada nos eventos do Éden e da cruz. Esses dois marcos são fundamentais para compreender tanto a queda da humanidade quanto a provisão divina para a redenção, ilustrando como a paz com Deus, mencionada em Romanos 5:1, é obtida por meio de Cristo.
A ofensa de Adão
12 Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram.
Através da desobediência de Adão, o pecado entrou no mundo, e, pelo pecado, veio a morte. Adão, por si só, não possuía o poder de alterar sua natureza de comunhão com Deus para uma de separação. Esse poder estava potencialmente presente no mandamento dado por Deus no Éden, que continha a autoridade divina para estabelecer a consequência de sua transgressão.
O alerta de Deus foi claro: Adão tinha liberdade para comer de todas as árvores do jardim, inclusive da Árvore da Vida e da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Contudo, Deus advertiu que, no dia em que comesse do fruto da Árvore do Conhecimento, certamente morreria.
A palavra de Deus, criadora e poderosa, continha em si a capacidade de transformar a condição espiritual de Adão. Ao desobedecer, Adão não apenas revelou sua falta de confiança em Deus, mas também rompeu a comunhão com Ele. A consequência imediata foi a separação de Deus, o que significava morte espiritual. A partir daquele momento, Adão passou a viver para o pecado, sujeitando-se ao domínio da desobediência e à natureza corrompida que seria herdada por toda a humanidade.
“…dela não comerás, pois no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gênesis 2:17).
Adão desobedeceu, e, por meio dele, o pecado entrou no mundo. Isso significa que Adão ficou aquém do padrão perfeito estabelecido por Deus, tornando-se impróprio para o propósito eterno para o qual foi criado. Como consequência do pecado, a morte também entrou no mundo, e o seu domínio sujeitou todos os seus descendentes. Quando se afirma que “todos os homens pecaram”, a ideia central é que a natureza de todos foi corrompida, não por atos ou omissões individuais contrários à moral, mas porque todos passaram à condição de mortos para Deus.
A resposta para a pergunta de como todos os homens se tornaram pecadores está explícita nesse versículo. Paulo já havia apresentado anteriormente o conceito de que “todos pecaram” (Romanos 3:23), mas aqui ele revela como e onde isso ocorreu. Este versículo, portanto, complementa e aprofunda a ideia exposta no capítulo 3.
Por meio de Adão, tanto o pecado quanto a morte entraram no mundo, e, como ele é a cabeça da humanidade, todos os seus descendentes compartilham dessa mesma condição. Assim, todos são pecadores e estão destituídos da glória de Deus, isto é, da vida que há em Deus.
A condenação decorrente do pecado de Adão teve um impacto universal: a morte, como consequência inevitável, passou a todos os homens. Essa condição não se refere ao estado físico, antes diz da separação espiritual de Deus, que deixou toda a humanidade sob o domínio do pecado e preso à morte.
Antes da Lei o Pecado já Oprimia
13 Porque até à lei estava o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado, não havendo lei.
Paulo destaca que o pecado, como condição que separa o homem da vida que há em Deus, é anterior ao advento da lei mosaica. Isso levanta questões fundamentais: se o pecado estava no mundo antes da lei, como sustentar que o pecado não é imputado sem a presença de uma lei? Além disso, como poderia a justificação se basear nas obras da lei, se o pecado precede a própria lei? E como foram justificados os patriarcas, como Noé, Jó e Abraão, antes da lei, considerando que o pecado entrou no mundo no Éden?
A resposta está no princípio estabelecido por Paulo no início do capítulo:
“Sendo, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo” (Romanos 5:1).
A justificação sempre foi pela fé, pois esta é anterior à lei, assim como o Autor da fé é anterior à entrada do pecado no mundo. A justiça não é obtida pelas obras da lei, mas pela confiança no Deus que promete e cumpre, como exemplificado na vida de Abraão (Romanos 4:3).
No versículo 13, Paulo explica que o pecado já estava presente no mundo antes da lei, mas, como ele conclui no versículo 20, a lei veio para evidenciar e multiplicar a ofensa:
“Porque até à lei estava o pecado no mundo, mas não é imputado o pecado, não havendo lei (…) Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse…” (Romanos 5:13, 20).
Paulo introduz no versículo 13 uma pergunta reflexiva:
“…mas não é o pecado imputado, não havendo lei?”
Embora a lei mosaica não estivesse presente, a penalidade do pecado — a morte — foi aplicada. A morte reinou de Adão até Moisés, demonstrando que a ofensa de Adão trouxe condenação a toda a humanidade, mesmo na ausência de uma lei formal como a mosaica.
Paulo ressalta que, antes do advento da lei mosaica, dada sob maldição, houve um mandamento anterior, entregue a um único homem, Adão. Esse mandamento, dado a Adão, não exigia a realização de obras sob ameaça de maldição. Antes, era um alerta amoroso destinado a preservar sua vida e comunhão com Deus. A ordem de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal não demandava esforços ou ações extraordinárias; bastava que Adão confiasse na palavra de Deus (Gálatas 3:10).
O centro do mandamento estava na fé e na obediência. Adão não precisava realizar algo para merecer a vida, pois ela já lhe fora concedida. A única exigência era permanecer na confiança na palavra de Deus, reconhecendo a soberania e bondade divina. Ao escolher desobedecer, Adão não apenas ignorou o alerta, mas rompeu a confiança no Criador, trazendo sobre si as consequências anunciadas: morte e separação de Deus.
A advertência divina era clara e enfática:
“No dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gênesis 2:17).
As consequências dessa transgressão seriam graves e irreversível por parte do homem. Ao desobedecer, Adão não apenas perdeu sua comunhão com Deus, mas trouxe a morte ao mundo. Esse evento demonstra que, mesmo antes da lei mosaica, a relação do homem com Deus já estava sujeita à obediência a Sua Palavra, e a transgressão dessa ordem resultava em morte.
Esse aspecto ressalta a natureza relacional entre Deus e o homem desde o princípio, baseada na confiança e não em obras. O mandamento era uma expressão da graça de Deus, que visava proteger e preservar a criação, e sua transgressão revelou a falta de fé no caráter e nas promessas divinas.
Assim, Paulo demonstra que o pecado e sua penalidade existiram antes da lei mosaica. A justificação, desde o princípio, sempre foi pela fé no Deus que salva, independentemente de boas ações à semelhança das obras decorrentes da lei. Este princípio permanece constante, tanto para os patriarcas antes da lei como para os que agora são justificados em Cristo.
Os versículos 14 a 19 formam um adendo explicativo, descrevendo as consequências dos eventos do Éden e da cruz para a humanidade.
A Humanidade e a Transgressão de Adão
14 No entanto, a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não tinham pecado à semelhança da transgressão de Adão, o qual é a figura daquele que havia de vir.
Este versículo de Romanos 5 apresenta uma argumentação lógica com base nos elementos expostos anteriormente. Paulo indaga: se o pecado não é imputado na ausência da lei, como explicar que a morte reinou desde Adão até Moisés, antes da existência da lei mosaica?
Desde a expulsão do Éden até a entrega da lei por meio de Moisés, a morte exerceu domínio sobre todos os homens. Esse domínio da morte não estava vinculado a comportamentos individuais, regras legais ou questões morais. Independentemente das ações ou omissões humanas, a morte atingiu a todos, inclusive aqueles que não transgrediram de forma semelhante à desobediência de Adão.
A transgressão de Adão foi singular, pois estava relacionada a uma determinação específica dada por Deus: não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Contudo, mesmo na ausência de um mandamento explícito semelhante, a morte continuou a reinar sobre a humanidade.
Isso demonstra que a morte não é apenas o resultado de atos pecaminosos individuais, mas da condição herdada de Adão. A sua desobediência trouxe o pecado e, com ele, a morte, que passou a todos os seus descendentes, independentemente da existência de uma lei escrita ou de transgressões diretas. Essa explicação fundamenta o argumento de que o problema do pecado e da morte é universal e só pode ser resolvido por meio da justificação em Cristo, o último Adão.
Considerações sobre Adão
O apóstolo Paulo, ao afirmar que Adão é “a figura daquele que havia de vir” (Romanos 5:14), estabelece uma conexão teológica profunda entre Adão e Cristo. O substantivo grego τύπος, traduzido como “figura”, carrega significados variados, incluindo “modelo”, “cópia” ou “tipo”. Nesse contexto, Adão é apresentado como um “tipo de Cristo”, ou seja, uma pessoa que prefigura outra pessoa futura, no caso, o próprio Cristo.
Adão, como cabeça da raça humana, é um tipo de Cristo em vários aspectos. Contudo, neste versículo específico, Paulo enfatiza a relação de Adão como imagem de Cristo, destacando a semelhança física que é característica dos descendentes de Adão. Essa perspectiva sugere que, ao criar Adão, Deus já estava antecipando a encarnação do Verbo eterno.
O Verbo eterno, que habita na luz inacessível (1 Timóteo 6:16), manifestou-se de maneira teofânica no Éden para formar o homem do pó da terra. Essa manifestação divina, ao moldar Adão e soprar em suas narinas o fôlego da vida (Gênesis 2:7), não apenas deu origem à vida humana, mas também conferiu a Adão a forma física que o Verbo assumiria ao encarnar no mundo.
Essa relação de transmissão de imagem é claramente evidenciada na passagem de 1 Coríntios 15:45-49, onde o apóstolo Paulo faz uma distinção entre o primeiro e o último Adão. Ele ressalta que Adão foi feito “alma vivente”, enquanto Cristo, o último Adão, foi constituído “espírito vivificante”. A sequência apresentada por Paulo demonstra que o natural veio primeiro, seguido pelo espiritual, enfatizando a ordem divina na redenção.
Ao criar Adão, o Verbo eterno concedeu-lhe uma imagem física que Ele mesmo assumiria ao vir ao mundo. Nesse ato criativo, toda a humanidade foi predestinada a carregar a imagem do primeiro homem, Adão, que é terreno. Quando Cristo se manifestou em carne, Ele compartilhou dessa mesma imagem física, identificando-se plenamente com a humanidade que Ele veio redimir.
“Assim está também escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o SENHOR, é do céu. Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial.” (1 Coríntios 15:45-49).
Paulo aponta que, assim como todos carregamos a imagem do terreno (Adão), em Cristo, somos chamados a carregar a imagem do celestial, ou seja, do Cristo ressurreto. Essa é a predestinação dos membros do corpo de Cristo, a Igreja: serem conformados à imagem de Cristo glorificado, como Paulo também declara em Romanos 8:29:
“Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.”
Portanto, a criação de Adão, a encarnação de Cristo e a ressurreição do Senhor apontam para o propósito eterno de Deus: conformar os redimidos à imagem de Seu Filho glorificado. Essa predestinação revela a unidade do plano de Deus para a humanidade, desde a criação até a redenção final. Assim como em Adão todos herdamos a imagem terrena, em Cristo herdaremos a imagem celestial, refletindo plenamente a glória de Deus.
Assim, a criação de Adão não foi apenas um ato criativo, mas também um ato prefigurativo. Adão recebeu a semelhança física daquele que, na plenitude dos tempos, seria o Salvador da humanidade. Essa conexão entre Adão e Cristo reforça a unidade do plano redentor de Deus, que desde o princípio apontava para a manifestação do Verbo em carne.
Considerando Adão como tipo de Cristo e a igreja como a noiva de Cristo — um mistério revelado no evangelho —, o apóstolo Paulo destaca a fragilidade da “sombra”, ou seja, aquilo que não é a imagem exata das coisas celestiais, mas apenas um reflexo ou antecipação delas. Essa fragilidade fica evidente ao compreender que a condenação veio através de Adão, uma figura daquele que havia de vir (Cristo). Se a condenação pôde ocorrer na “sombra” (Adão como tipo), quanto mais podemos confiar na obra perfeita realizada por Cristo, que é a substância e a imagem exata de Deus.
A carta aos Hebreus reforça essa ideia ao afirmar:
“Porque a lei, tendo a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem a cada ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam” (Hebreus 10:1).
Assim como Adão era um tipo imperfeito de Cristo, a lei também era uma sombra, incapaz de trazer a perfeição e a comunhão plena com Deus. Adão apontava para o Cristo que haveria de vir, e a lei, com seus rituais e sacrifícios, apontava para o sacrifício único e definitivo de Cristo na cruz. Contudo, nem Adão nem a lei poderiam oferecer a plenitude que só Cristo, o verdadeiro e perfeito antítipo, pode proporcionar.
A condenação que veio por meio de Adão, sendo ele apenas uma figura, revela a gravidade e universalidade do pecado. Por outro lado, a lei, que também é uma sombra, expõe o pecado, mas não oferece a solução definitiva. Isso evidencia a insuficiência de confiar naquilo que é transitório ou imperfeito.
Portanto, se a condenação foi estabelecida em uma “figura”, como poderia a lei, que também é uma sombra, justificar o homem? A resposta encontra-se em Cristo, que é a substância, a imagem exata das coisas celestiais (Hebreus 1:3). Ele cumpre e supera tanto a figura de Adão quanto as sombras da lei, trazendo reconciliação e plenitude aos que estão n’Ele.
A graça de Deus
15 Mas não é assim o dom gratuito como a ofensa. Porque, se pela ofensa de um morreram muitos, muito mais a graça de Deus, e o dom pela graça, que é de um só homem, Jesus Cristo, abundou sobre muitos.
Quando Paulo afirma que “o dom gratuito não é como a ofensa” (Romanos 5:15), ele está conectando essa declaração ao que expôs no versículo anterior, onde ressalta que “a morte reinou desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão”. Ou seja, a morte, resultado da ofensa de Adão, atingiu indistintamente todos os homens. No entanto, o dom gratuito não funciona da mesma maneira: para recebê-lo, é necessário crer individualmente em Jesus Cristo.
A negativa inicial — “Mas não é assim o dom gratuito como a ofensa” — parece à primeira vista contradizer o desenvolvimento do argumento, especialmente pela introdução de uma equiparação com “Porque, se pela ofensa de um morreram muitos…”. Contudo, essa estrutura tem a função de contrastar os efeitos universais e automáticos da ofensa com a exclusividade e condicionalidade do dom gratuito, que é recebido por meio da fé.
O versículo 15 é construído de forma semelhante ao versículo 13, onde a frase inicial poderia ser interpretada como uma interrogação retórica, destacando o contraste entre a ofensa e o dom gratuito: “Mas não é assim o dom gratuito como a ofensa?” A divisão em versículos, que não existia no texto original, pode influenciar a leitura, levando a uma interpretação desconexa. Na verdade, a negativa “Mas não é assim o dom gratuito como a ofensa” refere-se ao versículo 14, conectando-se à ideia de que a morte reinou sobre todos os homens, mesmo sobre aqueles que não transgrediram à semelhança de Adão.
O ponto central é que a ofensa comprometeu toda a humanidade automaticamente, enquanto o dom gratuito, que é a vida eterna em Cristo, exige uma resposta de fé. A vida não reina sobre todos indistintamente, mas apenas sobre aqueles que creem em Jesus Cristo. Esse contraste é reiterado no versículo 17:
“Se pela ofensa de um só a morte reinou por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, Jesus Cristo.”
Portanto, o contraponto entre a ofensa e o dom gratuito é claro:
- A ofensa: Trouxe condenação e morte para todos os homens, automaticamente, mesmo sobre aqueles que não cometeram uma transgressão específica como a de Adão (Romanos 5:12,14).
- O dom gratuito: Concede justificação e vida, mas não passa automaticamente a todos. Ele é recebido mediante a fé em Cristo.
Essa diferença destaca a natureza universal e incondicional da queda em Adão e a oferta graciosa, mas condicional, da salvação em Cristo, que é acessada individualmente pela fé.
O versículo 15 de Romanos 5 introduz uma nova linha de argumentação:
“Porque, se pela ofensa de um morreram muitos, muito mais a graça de Deus, e o dom pela graça, que é de um só homem, Jesus Cristo, abundou sobre muitos.”
A introdução do versículo remete a uma possível pergunta implícita, alinhada ao contraste entre a ofensa e o dom gratuito já exposto anteriormente (v. 14). No entanto, Paulo agora apresenta as bases para abordar uma nova questão: enquanto um único homem (Adão) trouxe a ofensa que resultou na morte de muitos (toda a humanidade), o dom da graça, oferecido por meio de um só homem, Jesus Cristo, é mais poderoso, pois concede salvação graciosa a muitos.
Nesse aspecto da graça, o apóstolo Paulo ressalta em sua carta a Tito:
“Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens” (Tito 2:11).
A manifestação da graça de Deus em Cristo Jesus é a concretização da promessa feita a Abraão, de que em sua descendência seriam abençoadas todas as famílias da terra (Gênesis 12:3). Cristo trouxe salvação de forma graciosa, tornando-a acessível a toda a humanidade.
No entanto, essa graça, embora oferecida a todos, é eficaz apenas na vida daqueles que creem. Como Paulo declara:
“Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna por Cristo Jesus nosso Senhor” (Romanos 6:23).
Assim, Cristo não apenas trouxe a salvação a todas as famílias da terra, mas concede, a todos que depositam sua fé n’Ele, o dom inestimável da vida eterna. Essa graça é universal em sua oferta, mas individual em sua aplicação, reafirmando o caráter amoroso e justo de Deus, que chama todos ao arrependimento e à fé para que possam participar da plenitude da vida em Cristo.
Análise do Argumento:
- A Ofensa e a Morte
A ofensa de Adão impôs a morte a toda a humanidade. Paulo reforça que essa consequência foi universal e inevitável, alcançando a todos sem distinção, mesmo sobre aqueles que não transgrediram diretamente como Adão (v. 14). - A Graça e a Vida
Em contraste, a graça de Deus é apresentada como “muito mais” poderosa. Enquanto a ofensa trouxe condenação automática, a graça é uma oferta abundante e efetiva de salvação, destinada a muitos, mas acessível apenas por meio da fé em Cristo. - Superabundância da Graça
Paulo destaca a superioridade da graça em relação à ofensa. O impacto do pecado de Adão foi devastador, mas a graça de Deus, por meio de Cristo, não apenas repara o dano causado pela ofensa, mas supera em abundância, oferecendo vida eterna.
Reflexão:
A comparação entre Adão e Cristo envolve aspectos profundos relacionados à desobediência e à obediência, bem como ao impacto dessas ações na natureza humana e no alcance de suas consequências. Por meio da desobediência de Adão, a ofensa trouxe a morte como uma consequência inevitável da violação do mandamento. Em contraste, o dom da graça, oferecido por Cristo, é acessível a todos os que obedecem ao mandamento da fé, exigindo uma resposta ativa para que o poder dessa graça se efetive.
Cristo, sendo o último Adão, supera a obra do primeiro. Sua obra não apenas repara o dano causado por Adão, mas transcende completamente. A nova criação em Cristo não é meramente uma restauração da condição original da humanidade no Éden; ela vai além, concedendo uma nova natureza celestial e a vida eterna. Essa nova criação é descrita por Paulo como uma participação na própria natureza divina (2 Pedro 1:4), algo que não estava presente na condição anterior de Adão.
“Para que, sendo justificados pela sua graça, sejamos feitos herdeiros segundo a esperança da vida eterna.” (Tito 3:7).
Paulo utiliza essa comparação para destacar a superioridade do dom da graça em relação à ofensa. Ele enfatiza que a salvação em Cristo não se limita a restaurar a comunhão perdida com Deus. A obra de Cristo transforma os redimidos em novas criaturas, que não apenas desfrutam da reconciliação, mas também participam de uma realidade celestial e eterna em Cristo.
Essa verdade reafirma que o plano redentor de Deus não é apenas remediador, mas gloriosamente transformador. Por meio de Cristo, os salvos não voltam ao estado original no Éden; eles avançam para uma condição superior, como filhos de Deus, participantes da glória divina e herdeiros da vida eterna.
O Juízo e o Dom Gratuito
16 E não foi assim o dom como a ofensa, por um só que pecou. Porque o juízo veio de uma só ofensa, na verdade, para condenação, mas o dom gratuito veio de muitas ofensas para justificação.
Embora a ofensa e o dom gratuito não sejam idênticos em sua natureza e alcance, há uma semelhança na paridade das pessoas envolvidas: um único homem trouxe a ofensa (Adão), e um único homem trouxe o dom da graça (Cristo). Assim, a ofensa veio por meio de um só que pecou, e o dom da graça veio por meio de um só que obedeceu. Essa simetria ressalta tanto a gravidade da queda quanto a grandiosidade da redenção.
Paulo destaca que o juízo de Deus já foi estabelecido como consequência da ofensa de Adão, resultando em condenação para toda a humanidade. Essa condenação não exige transgressões individuais semelhantes à de Adão, pois todos os homens nascem sob os efeitos de sua desobediência. No entanto, o dom gratuito de Deus, oferecido por meio de Cristo, transcende a gravidade da ofensa. Ele se manifesta, não apenas para anular a culpa de uma única transgressão, mas para justificar os pecadores de “muitas ofensas” (Romanos 5:16).
Essa diferença é crucial: enquanto a ofensa de Adão trouxe condenação universal, o dom da graça é poderoso para justificar, transformando pecadores em justos, mesmo diante de uma multidão de transgressões. Isso reflete o caráter redentor de Cristo, que não apenas corrige o erro original, mas supera abundantemente os efeitos do pecado, trazendo reconciliação e vida eterna.
Essa verdade é reforçada por João:
“Quem nele crê não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.” (João 3:18).
Portanto, enquanto o juízo e a condenação estão estabelecidos pela ofensa de Adão, o dom gratuito de Deus em Cristo oferece justificação e vida eterna para todos os que creem, demonstrando a supremacia da graça sobre o pecado.
A Abundância da Graça
17 Porque, se pela ofensa de um só, a morte reinou por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça, e do dom da justiça, reinarão em vida por um só, Jesus Cristo.
A graça de Deus manifesta-se de forma extraordinariamente abundante, destacando o contraste entre o reinado da morte por causa da ofensa de Adão e o reinado dos salvos em vida por meio de Cristo. Pela ofensa de um único homem, a morte dominou sobre toda a humanidade. Em contrapartida, em Cristo, aqueles que, pela fé, recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida.
Esse contraste é verdadeiramente notável: a morte reinou sozinha sobre toda a humanidade devido à transgressão de um único ofensor, Adão. Contudo, em Cristo, também um só homem, a graça não apenas anula os efeitos do pecado, mas também eleva os redimidos à gloriosa posição de reinarem com Ele, pois são membros de Seu corpo, a Igreja.
Os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça não apenas escapam do domínio da morte, mas são transformados e elevados a uma nova posição espiritual, sendo feitos semelhantes ao Altíssimo. Essa semelhança não implica igualdade com Deus em essência, mas reflete a glória do Cristo ressurreto. Além de serem participantes da natureza divina (2 Pedro 1:4) e desfrutam do direito à vida eterna, herdarão um corpo glorioso em tudo semelhante ao corpo glorificado de Cristo, o que concede a posição se semelhante a Cristo.
Nesta posição exaltada, os redimidos não apenas vivem, mas também reinam em vida com Cristo, participando de Seu reino eterno. Essa promessa reafirma que, enquanto a transgressão de Adão trouxe condenação e morte universal, a obediência de Cristo oferece não apenas reconciliação, mas também uma herança gloriosa e eterna para todos os que creem. Como Paulo afirma:
“Assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial” (1 Coríntios 15:49).
Portanto, a graça de Deus manifesta-se de forma abundante e transformadora, conferindo aos redimidos uma posição gloriosa no reino de Cristo, onde reinam em vida e participam de Sua glória eterna.
Paulo reforça essa ideia em sua carta a Timóteo:
“Se sofrermos, também com ele reinaremos; se o negarmos, também ele nos negará.” (2 Timóteo 2:12).
Esse versículo reafirma que o reinado em vida é uma promessa para aqueles que permanecem firmes na fé e compartilham do sofrimento de Cristo. A morte reinou universalmente por meio de um único homem, mas agora, por meio da obediência de Cristo, muitos são chamados a reinar com Ele, como participantes da abundante graça de Deus. Assim, o dom da graça não apenas restaura, mas concede uma posição gloriosa e eterna para os que creem.
A abundância da graça refere-se ao privilégio de ser feito coerdeiro com Cristo, participando de Sua herança eterna e compartilhando com Ele todas as coisas, conforme está escrito:
“E, se somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo; se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.” (Romanos 8:17).
Por outro lado, o dom da justiça diz respeito à condição transformadora daquele que é gerado de novo em Cristo. Este é recriado em verdadeira justiça e santidade, uma nova natureza que reflete a própria santidade de Deus. Essa condição decorre do fato de que os nascidos de Deus são participantes da natureza divina, como afirma Pedro:
“Pelas quais ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.” (2 Pedro 1:4).
Essa transformação é possível porque a “semente de Deus” permanece naqueles que são regenerados, conforme João escreve:
“Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a sua semente permanece nele; e não pode pecar, porque é nascido de Deus.” (1 João 3:9).
Portanto, a abundância da graça assegura aos crentes a gloriosa herança com Cristo, enquanto o dom da justiça os estabelece como novas criaturas, criadas em verdadeira justiça e santidade (Efésios 4:24), aptas para viver em comunhão plena com Deus e participar de Sua glória eterna.
O Juízo da Humanidade já Ocorreu
18 Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação de vida.
O versículo 17 de Romanos 5 é argumentativo, convidando o leitor a refletir sobre as implicações do que está sendo comunicado. Já os versículos 18 e 19 são expositivos e comparativos, apresentando afirmações que estabelecem um equilíbrio entre o juízo decorrente da ofensa e a justiça proveniente da graça. O versículo 19, em particular, explica o motivo da exposição feita no versículo 18.
Paulo destaca que uma única ofensa, a desobediência de Adão, trouxe o juízo de Deus sobre todos os homens, resultando em condenação universal. Todos foram considerados culpados em Adão, herdando uma natureza contrária à natureza divina. A condenação trouxe consigo a morte como penalidade.
De maneira semelhante, a graça de Deus também opera por meio de um único ato de justiça — a obediência de Cristo. Este ato concede justificação a todos os homens que, pela fé, recebem a vida que está em Cristo. Enquanto a condenação resultou na morte, a justificação resulta na vida eterna, demonstrando que a justificação decorre de um ato criativo de Deus que trás um novo ser a existência. Na justificação, o homem é recriado, recebendo uma nova natureza herdada de Deus, a natureza divina (2 Pedro 1:4), e é declarado justo por Deus por causa da nova condição concedida em Cristo.
Paulo contrapõe os seguintes elementos:
- Ato de ofensa e ato de justiça: A desobediência de Adão trouxe condenação; a obediência de Cristo trouxe justificação.
- Juízo e graça: O juízo resultou na declaração de culpa que recaí sobre o velho homem; a graça trouxe a declaração de justiça que recaí sobre o novo homem.
- Condenação e justificação: A condenação trouxe morte; a justificação trouxe vida.
A justiça de Deus, perfeita e imutável, exige substituição de ato: a desobediência de Adão, como cabeça da raça humana terrena, só poderia ser reparada por meio de um ato de obediência. Porém, essa obediência não poderia vir de qualquer homem, mas de um novo cabeça de raça, que fosse celestial e sem pecado — Jesus Cristo.
Adão, como o primeiro cabeça da humanidade, agiu como representante de toda a raça humana. Sua transgressão trouxe o pecado e a morte a todos os seus descendentes (Romanos 5:12). Da mesma forma, para que a justiça divina fosse satisfeita, era necessário um novo representante, um segundo Adão, que agisse em favor da humanidade com plena obediência à vontade de Deus. Esse papel só poderia ser cumprido por Cristo, o cabeça da nova criação.
Cristo, sendo o Verbo eterno encarnado, assumiu a natureza humana para obedecer em todos os aspectos onde Adão falhou. Ele é descrito como o “Senhor do céu” (1 Coríntios 15:47) e como o “espírito vivificante” (1 Coríntios 15:45), contrastando diretamente com Adão, o homem terreno. Sua obediência perfeita, até a morte de cruz, satisfez plenamente as demandas da justiça divina:
A obediência de Cristo é, portanto, essencialmente substitutiva e eficaz. Sua obediência foi suficiente não apenas para reparar a desobediência de Adão, mas também para inaugurar uma nova criação, na qual Ele é o cabeça de todos os que estão n’Ele pela fé. Em Cristo, os redimidos recebem a nova natureza celestial, tornando-se participantes de Sua justiça e vida eterna.
Portanto, a justiça de Deus não apenas exige obediência como reparação da desobediência, mas estabelece essa obediência em um representante perfeito e celestial — Cristo, o cabeça da nova humanidade redimida.
Para reverter os efeitos da ofensa de Adão, Cristo teve que obedecer plenamente. Para livrar o homem do juízo, a graça de Deus se manifestou em Cristo, o espírito vivificante. Assim, enquanto a condenação declara o homem culpado e separado de Deus, a justificação declara o homem justo e reconciliado com Deus, com base na nova vida recebida em Cristo.
Paulo reforça que ambas as declarações — de culpa na condenação e de justiça na justificação — são efetivas e baseadas em condições reais. Deus não declara culpado alguém que é justo, nem declara justo alguém que permanece injusto. A justiça de Deus é perfeitamente consistente, e Suas declarações refletem a realidade transformadora do evangelho em Cristo. Isso significa que Deus não simplesmente “trata” o pecador como justo por causa de Cristo, como se fosse uma justiça imputada apenas externamente. Em vez disso, Deus declara justa a nova criatura que foi gerada em Cristo, alguém que foi verdadeiramente transformado pela obra regeneradora do Espírito Santo.
Essa justificação não é meramente um ato legal ou formal; ela está fundamentada na realidade da nova criação em Cristo. O pecador, ao ser regenerado, recebe uma nova natureza — a natureza divina (2 Pedro 1:4) — e é criado em verdadeira justiça e santidade (Efésios 4:24). Assim, a declaração de justiça feita por Deus reflete a transformação genuína operada pela graça.
A justiça de Cristo, portanto, não é algo apenas atribuído ao crente de maneira externa, mas é efetivamente comunicada a ele por meio da união com Cristo. Essa união é tão profunda que o crente é visto como estando “em Cristo”, compartilhando de Sua vida, Sua justiça e Sua posição diante de Deus.
Paulo reforça essa verdade ao dizer:
“Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo.” (2 Coríntios 5:17).
Portanto, Deus não faz de conta que o pecador é justo; Ele declara justa a nova criatura porque, em Cristo, houve uma mudança real e completa de natureza.
O Alcance da Desobediência e da Obediência
19 Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão feitos justos.
Paulo esclarece os fundamentos da exposição anterior, afirmando que, pela desobediência de um único homem, Adão, muitos foram “feitos” pecadores, enquanto, pela obediência de um único homem, Cristo, muitos são “feitos” justos (Romanos 5:19). O uso do verbo “fazer” aqui carrega um sentido profundo e abrangente, associado à ação sobrenatural de Deus em criar novas criaturas.
Esse uso é comparável ao que João declara:
“Mas a todos os que o receberam, àqueles que creem no seu nome, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus” (João 1:12).
Em ambos os casos, o termo “fazer” implica mais do que uma mudança de posição ou status. Trata-se de uma transformação essencial e criativa operada pelo poder de Deus, que gera uma nova realidade espiritual. Essa transformação está presente em outras passagens que ilustram o agir sobrenatural de Deus, como:
- Efésios 1:11:“Nele, digo, em quem também fomos feitos herança.”
Aqui, ser “feito” herança não é apenas um título, mas uma realidade concedida por Deus, que nos inclui em Seu propósito eterno estabelecido em Cristo. - Efésios 1:6:“…pela qual nos fez agradáveis para si no Amado.”
A ação divina nos torna aceitáveis diante de Deus em Cristo, evidenciando uma nova condição e uma nova realidade operada por Sua graça. - 1 Pedro 2:5:“Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo…”
Nesse caso, os crentes são “feitos” parte de uma construção espiritual, com um propósito elevado de ser morada de Deus em espírito.
Essas passagens reforçam que o ato de “fazer” mencionado em Romanos 5:19 refere-se a uma obra criativa que traz a existência um novo ser. Pela desobediência de Adão, os homens foram “feitos” pecadores, ou seja, criados em uma nova condição de natureza caída, distantes de Deus. Da mesma forma, pela obediência de Cristo, os que creem são “feitos” justos, transformados em uma nova criação, participantes da natureza divina e reconciliados com Deus.
Essa “fabricação” ou “criação” divina evidencia o poder de Deus em agir sobrenaturalmente, tanto na condenação em Adão quanto na justificação em Cristo, estabelecendo uma nova condição para aqueles que estão n’Ele.
20 Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça;
21 Para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor.