Lembre-se: cada livro da Bíblia foi escrito por um autor e em época diferente. Você estará lendo uma coletânea de 66 ou 73 livros, se for uma Bíblia evangélica/protestante ou católica, respectivamente.


Como ler e interpretar a Bíblia?

“E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: Que convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, e nos profetas e nos Salmos.” (Lucas 24:44).

 

Introdução

Ler a Bíblia parece uma tarefa fácil. Para muitos, para ler a Bíblia basta saber ler. Para outros, seria necessário conhecer os idiomas que os livros foram escritos, como forma de se desvencilhar dos problemas afetos a uma tradução.

Para ler a Bíblia não basta saber ler, ou falar os idiomas hebraico e grego antigo, pois se esses quesitos fossem essenciais, os escribas e fariseus teriam lido, compreendido e reconhecido o Cristo como Senhor.

Mas, como ler e interpretar a Bíblia? É preciso ler a Bíblia sempre considerando o Cristo como a pedra de toque de todos os livros. O Senhor Jesus Cristo mesmo disse aos judeus: “Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam;” (João 5:39), evidenciando que as Escrituras que tanto liam e examinavam para alcançar a vida eterna, na verdade davam testemunho d’Ele.

Para não deixar dúvidas, Jesus afirmou que o grande líder e profeta Moisés havia escrito acerca d’Ele, e se de fato criam em Moisés, teriam que crer n’Ele.

“Porque, se vós crêsseis em Moisés, creríeis em mim; porque de mim escreveu ele. Mas, se não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?” (Lucas 24:46-47).

Nesse sentido, vamos analisar alguns versículos seguindo a seguinte premissa: o que está escrito na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos eram profecias que se cumpriram na pessoa de Jesus de Nazaré, o Cristo.

 

O que você precisa para ler a Bíblia?

A primeira coisa que você precisa é ter uma Bíblia. De preferência para uma Bíblia que a versão traduzida seja fiel aos textos originais. Versões na linguagem de hoje ou ‘contemporizada’ mais compromete a leitura do que auxilia.

Se você se deparar com uma palavra com significado desconhecido, dê preferência a um dicionário secular. Dicionário bíblico pode ser um entrave, vez que os termos são vertidos segundo uma perspectiva doutrinária do lexicógrafo, o que as vezes pode trazer entrave a leitura.

Ao ler a Bíblia, você precisa se desvencilhar de tudo que sabe e conhece do ponto de vista religioso. Pressupostos, conhecimentos, práticas, certezas, etc., deve ser posto de lado e deixe que o texto fale por si só.

A cada livro que você lê, deve ter em mente que se tratam de livros antiguíssimos e que retratam questões da antiguidade, uma realidade bem destinta e estranha a nossa realidade. Não faça uma leitura julgando o que está escrito segundo os valores de hoje, antes procure ver os relatos com os olhos do homem da antiguidade, ou seja, despido tanto do conhecimento cientifico e tecnológico da atualidade, quanto da evolução moral da sociedade.

Lembre-se: cada livro da Bíblia foi escrito por um autor e em época diferente. Você estará lendo uma coletânea de 66 ou 73 livros, se for uma Bíblia evangélica/protestante ou católica, respectivamente.

Por ser uma coletânea de livros com diversos autores, a organização dos livros não é cronológica, e nenhum deles depende do outro para ser lido e compreendido. Começar ler o primeiro livro, Gênesis, e terminar no último, Apocalipse, é a maneira tradicional, mas não precisa ser assim.

Se você conhecer a Bíblia, e não teve nenhum contato, comece pelos livros de compreensão mais fácil, ou seja, os livros que narram uma história, como os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João.

Os Evangelhos narram a história de Jesus Cristo desde o nascimento até a sua morte e ressurreição. O evangelho de Mateus e Marcos tem como público alvos os judeus, já o evangelho de João aborda esses mesmos eventos, porém, o público alvo é a igreja, um misto de povos judeus e gentios.

O livro de Atos, uma continuação do evangelho de Lucas, também é recomendável pela facilidade de leitura, pois narra a história da igreja cristã da perspectiva dos apóstolos de Cristo.

 

Se você já lê a Bíblia, como compreende-la?

Se você já lê a Bíblia, talvez pareça mais fácil compreendê-la, mas talvez não seja tão fácil assim.

O apóstolo Paulo era fariseu, e lia as Escrituras desde tenra idade. Para que ele lesse e compreendesse as Escrituras, teve que considerar toda a sua bagagem de conhecimento e práticas segundo o judaísmo como esterco, senão não teria como alcançar a Cristo.

“E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como escória, para que possa ganhar a Cristo,” (Filipenses 3:8).

Esse é um grande entrave para aqueles que já leram a Bíblia segundo a perspectiva de alguma doutrina ou dogma. Se esvaziar de todo o conhecimento adquirido e passar a ler e compreender a Bíblia por ela mesma. O importante é jamais se afastar deste princípio: a Bíblia se explica por si mesma!

Por causa de saberes e conhecimentos diversos, em especial as questões judaicas, é que o apóstolo Paulo dá o seguinte alerta:

“E, se alguém cuida saber alguma coisa, ainda não sabe como convém saber.” (1 Coríntios 8:2).

Os judeus tinham conhecimento (Romanos 10:2-3), mas não era segundo a revelação das Escrituras, e por isso as Escrituras protestavam contra eles dizendo:

“Deus olhou desde os céus para os filhos dos homens, para ver se havia algum que tivesse entendimento e buscasse a Deus. Desviaram-se todos, e juntamente se fizeram imundos; não há quem faça o bem, não, nem sequer um. Acaso não têm conhecimento os que praticam a iniquidade, os quais comem o meu povo como se comessem pão? Eles não invocaram a Deus.” (Salmo 53:2-4).

Inúmeras pessoas leem a Bíblia, mas persistem em olha-la segundo a perspectiva que herdaram de seus pais, ou segundo a concepção religiosa que seguiam. Se desvencilhar e qualquer e toda concepção religiosa ou filosófica é essencial à compreensão das Escrituras.

“Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo;” (Colossenses 2:8).

Quando achamos que conhecemos a Bíblia, geralmente não nos damos ao trabalho de pelo menos ler todo o livro quando achamos um texto interessante. Pior ainda, quando temos uma concepção acerca de algum tema, e tão somente vamos até a Bíblia para confirmá-lo. Como a concepção que temos fala mais alto, qualquer versículo será pretexto para confirmar o que já entendemos acerca do assunto.

 

Cristo, o cumprimento das Escrituras

Quando Jesus anuncia aos judeus que veio cumprir a lei, e não a destruir, o primeiro entendimento é de que Ele veio obedecer a tradição dos pais. Muito do que se entende de cumprir a lei, na verdade não passa de mandamentos de homens.

“Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir.” (Mateus 5:17);

“Porque o Senhor disse: Pois que este povo se aproxima de mim, e com a sua boca, e com os seus lábios me honra, mas o seu coração se afasta para longe de mim e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, em que foi instruído;” (Isaías 29:13).

Jesus não veio abolir a lei, antes Ele era o cumprimento da lei, pois convinha que tudo o que estava escrito acerca d’Ele se cumprisse!

“E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: Que convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, e nos profetas e nos Salmos.” (Lucas 24:44).

Através desse registro da fala de Cristo fica evidenciado que na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos há várias profecias acerca de Cristo. Não só as profecias messiânicas, mas também os registros históricos, os enigmas, o cuidado para com Israel, etc., tudo apontava para Cristo. Os belos cânticos dos Salmos com seus enigmas, símiles e parábolas essencialmente são profecias acerca de Cristo.

Basta uma pequena nuance para verificar que os Salmos são profecias acerca do descendente prometido a Davi:

“E ele lhes disse: Como dizem que o Cristo é filho de Davi? Visto como o mesmo Davi diz no livro dos Salmos: Disse o SENHOR ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés. Se Davi lhe chama Senhor, como é ele seu filho?” (Lucas 20:41-44).

Um pequeno detalhe na poesia do canto evidencia que o Salmo 110 é messiânico, e que, portanto, Davi era profeta (Atos 2:30; 2 Samuel 23:2-3; Marcos 12:36). Davi se declarou profeta, e Cristo e os apóstolos também afirmaram ser Ele um profeta.

Essa é uma nuance que quem lê as Escrituras devem estar atentos. Muito do que os profetas falaram se refere a pessoa de Cristo, o descendente de Abraão e Davi (Mateus 1:1).

Agora vamos avançar um pouco mais nesse aspecto das Escrituras: profecia acerca de Cristo.

 

Você pode ler a Bíblia acessando esse link

 

O testemunho de Deus acerca de seu Filho

É significativo o fato de que Jesus veio ao mundo para que se cumprisse tudo o que estava escrito nas Escrituras acerca d’Ele.

O apóstolo Paulo destaca essa mesma verdade, que Cristo, o Filho de Deus, nasceu da descendência de Davi e ressurgiu pelo poder de Deus, conforme foi prometido por Deus através dos profetas nas Escrituras.

“PAULO, servo de Jesus Cristo, chamado para apóstolo, separado para o evangelho de Deus. O qual antes prometeu pelos seus profetas nas santas escrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor,” (Romanos 1:1-4).

O apóstolo Pedro faz a mesma declaração, de que Cristo foi entregue aos judeus, conforme as profecias, para ser prezo e crucificado, mas que Deus o ressuscitaria dentre os mortos:

“Homens israelitas, escutai estas palavras: A Jesus Nazareno, homem aprovado por Deus entre vós com maravilhas, prodígios e sinais, que Deus por ele fez no meio de vós, como vós mesmos bem sabeis; A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos; Ao qual Deus ressuscitou, soltas as ânsias da morte, pois não era possível que fosse retido por ela; Porque dele disse Davi: Sempre via diante de mim o Senhor, Porque está à minha direita, para que eu não seja comovido;” (Atos 2:22-25).

Novamente disse o apóstolo Pedro:

“Mas Deus assim cumpriu o que já dantes pela boca de todos os seus profetas havia anunciado; que o Cristo havia de padecer.” (Atos 3:18).

É assunto pacificado entre os cristãos que Cristo foi morto segundo as profecias, isto conforme os tipos presentes na lei e o predito pelos profetas e nos Salmos (Salmo 22; Isaias 53).

Mas, algo tão simples começa a ficar complicado quando uma palavra é mau compreendida. Por exemplo: como entender os termos ‘conselho’ e ‘presciência’ em Atos 2, verso 23 de Atos:

“A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos;”

O que seria o ‘conselho’ de Deus? O primeiro erro pode estar em pesquisar a questão em uma ferramenta de busca na internet. Depois que o leitor das Escrituras é atingido por varias definições, dificilmente se desvencilhará delas, caso não o que realmente significa.

Fazer esse tipo de busca aleatória é perigoso para quem quer ler e compreender a Bíblia, e por isso recomendo: se socorra da própria Bíblia. Se o leitor não tiver pressa em responder suas questões, e deixa-las anotadas para serem avaliadas posteriormente, durante as suas leituras achará um versículo que reza assim:

“Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade;” (Efésios 1:11).

Ou esse:

“Por isso, querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade do seu conselho aos herdeiros da promessa, se interpôs com juramento;” (Hebreus 6:17).

Ou melhor ainda:

“Porque verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; Para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer.” (Atos 4:27-28).

O conselho de Deus deriva da sua boa vontade, que é perfeita (Filipenses 2:13)! Foi da vontade de Deus que Cristo viesse ao mundo morrer para salvar a humanidade, pois é na vontade de Deus que os homens são santificados.

“E, indo segunda vez, orou, dizendo: Pai meu, se este cálice não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua vontade.” (Mateus 26:42);

“Então disse: Eis aqui venho (No princípio do livro está escrito de mim), Para fazer, ó Deus, a tua vontade. (…) Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez.” (Hebreus 10:7 e 10).

Sorte ir aos buscadores da internet ou nos robôs de inteligência artificial e não encontrar uma resposta para a pergunta formulada, pois o leitor poderá se dar por satisfeito com a resposta por presumir que quem postou o texto ou a resposta na internet teve o capricho de se ater ao texto e ao contexto bíblico para dar a resposta.

De outro modo, se a resposta encontrada através de buscadores foi dada por alguém que se intitula pastor, doutor, mestre, padre, bispo, teólogo, etc., o leitor pode se impressionar com a formação o titulo de quem escreveu a resposta, e a autoridade dessa pessoa suplantará o que o texto bíblico de fato diz.

Isso já acontecia à época de Jesus, pois aqueles que sabiam ler (escribas) e os doutores da lei (anciões, fariseus, saduceus), se assentavam como mestres na cadeira de Moisés, mas o que ensinavam não passava de preceitos de homens.

“ENTÃO falou Jesus à multidão, e aos seus discípulos, dizendo: Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus. Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem;” (Mateus 23:1-3).

Mas, uma pesquisa despretensiosa pode complica ainda mais o leitor! Se ao pesquisar, o leitor se deparar com textos teológicos, cujos mestres citam termos na língua grega e hebraica para enfatizar o que afirmam, tal prática autenticará o texto como sendo verdadeiro. E, muitas das vezes, o leitor não terá como verificar se quem explica o texto e cita termos em grego e hebraico preserva o sentido secular dos termos, vez que podem sutilmente transmutar o sentido das palavras com pequenas nuances para dar a entender o que afirmam.

O médico amado, Lucas, ao escrever o sermão do apóstolo Pedro, faz uso do verbo grego προκαταγγέλλω (prokataggelló), que significa ‘anunciar de antemão’, ou seja, um ‘vaticínio’ ou ‘previsão’. O irmão Lucas faz uso de algumas variações do termo em Atos 3:18; 3:24 e Atos 7:52, ao registrar o Sermão do apostolo Pedro e Estevam, evidenciando que Deus onisciente antecipou eventos futuros aos seus profetas que ocorreriam segundo a sua vontade (conselho) no tempo determinado.

Entretanto, no primeiro discurso do apostolo Pedro no evento da festa de Pentecostes registrado por Lucas, e na introdução da primeira epístola do apóstolo Pedro, o substantivo grego πρόγνωσις (prognósis) é utilizado , no sentido de ‘determinado anteriormente’, ou seja, ‘premeditado’, ‘pré-arranjado’, conforme transcrito abaixo:

“A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos;” (Atos 2:23);

“PEDRO, apóstolo de Jesus Cristo, aos estrangeiros dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia; eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: Graça e paz vos sejam multiplicadas.” (1 Pedro 1:1-2).

Ora, Cristo foi entregue aos judeus, que o mataram por mãos dos Romanos conforme a vontade (conselho) e segundo o que havia determinado e anunciado aos profetas (presciência), ou seja, Cristo foi entregue segundo a sua vontade e como havia antecipado aos seus santos profetas.

“Mas Deus assim cumpriu o que já dantes pela boca de todos os seus profetas havia anunciado; que o Cristo havia de padecer.” (Atos 3:18).

Observe:

“Da qual salvação inquiriram e trataram diligentemente os profetas que profetizaram da graça que vos foi dada, indagando que tempo ou que ocasião de tempo o Espírito de Cristo, que estava neles, indicava, anteriormente testificando os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e a glória que se lhes havia de seguir. Aos quais foi revelado que, não para si mesmos, mas para nós, eles ministravam estas coisas que agora vos foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho; para as quais coisas os anjos desejam bem atentar.” (1 Pedro 1:10-12).

Observe que os profetas (anjos, mensageiros) queriam compreender (desejam bem atentar) a graça dada aos cristãos, pois pelo espirito de Cristo (profecia), foi lhes testificado os sofrimentos de Cristo e a glória a ser revelada. O que foi testificado aos profetas acerca dos sofrimentos de Cristo e a glória que haveria em seguida se refere à presciência de Deus, ou seja, o conhecimento de coisas futuras que foi antecipado aos profetas da antiguidade.

Observe que o termo utilizado pelo apóstolo Paulo ao pregar à multidão de judeus e todos que residiam em Jerusalém durante a festa do pentecostes não possuía um sentido teológico rebuscado ou complicado de entender, vez que seria incompreensível aos ouvintes.

Quando Deus disse acerca de Abraão: “Ocultarei eu a Abraão o que faço…” (Gênesis 18:17), Deus antecipou a Abraão o seu conselho (vontade) e presciência (conhecimento de antemão). Nesse sentido, presciência não é um atributo divino como são onisciência, onipresença e onipotência. Presciência é um ato divino, pelo qual ele antecipa aos homens eventos futuros. Entender que presciência se refere a Deus antever eventos futuros é um reducionismo de um dos seus atributos, a onisciência.

O que foi dito no verso 23, do livro dos Atos, capítulo 2, é repetido no verso 18, do capítulo 3, e no verso 28, capítulo 4 do mesmo livro, evidenciando que a ideia apresentada nos dois sermões é idêntica, bem como o que foi dito entre os discípulos.

“Porque verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; Para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer.” (Atos 4:27-28).

Nesse sentido, o apóstolo Pedro quando escreve a sua primeira epístola, nomeia os seus destinatários como os eleitos (ἐκλεκτοῖς), embora estivessem exilados (estrangeiros), e dispersos pelas cidades do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia.

“Πέτρος ἀπόστολος Ἰησοῦ Χριστοῦ ἐκλεκτοῖς παρεπιδήμοις διασπορᾶς Πόντου Γαλατίας Καππαδοκίας Ἀσίας καὶ Βιθυνίας…” Stephanus Textus Receptus (1550, with accents).

Os cristãos convertidos dentre os judeus eram eleitos de acordo com o que foi anunciado anteriormente, ou seja, segundo a presciência de Deus. A presciência diz da graça concedida aos cristãos conforme profetizado pelos profetas: os sofrimentos de Cristo e a gloria que haveria a seguir (1 Pedro 1:10-12).

“… κατὰ πρόγνωσιν θεοῦ πατρός ἐν ἁγιασμῷ πνεύματος εἰς ὑπακοὴν καὶ ῥαντισμὸν αἵματος Ἰησοῦ Χριστοῦ χάρις ὑμῖν καὶ εἰρήνη πληθυνθείη” Stephanus Textus Receptus (1550, with accents).

Os cristãos são designados eleitos por terem sido gerados de novo em Cristo, o último Adão, de modo que fazem parte da geração eleita. Cristo é o eleito de Deus, e os cristãos são eleitos n’Ele, a partir do momento que creem na mensagem do evangelho e são gerados de novo pela palavra da verdade (Tiago 1:18; 1 Pedro 1:3 e 23).

“Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz;” (1 Pedro 2:9);

“Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor;” (Efésios 1:4).

O sequestro doutrinário de versículos

Pois bem, a leitura bíblica tem desses entraves: posicionamentos doutrinários antagônicos se apossam de determinados versículos para defenderem as suas ideias, e o texto, bem como o contexto são transformados em pretexto para suas elocubrações.

Consultar a internet, ou se socorrer de dicionários bíblicos e teológicos pode enredar os neófitos na fé (evangelho) a seguir por caminhos vários e estranhos ao evangelho de Cristo.

Não é porque um sistema doutrinário expõe inverdades de outros sistemas doutrinários que deva estar correto e em consonância com as Escrituras. Muitas das vezes alguns sistemas doutrinário e teológico pode se tratar de faces de uma mesma moeda, a exemplo dos escribas e fariseus. Ambos estão equivocados e se digladiam sobre questões de somenos importância, e acabam entretendo incautos.

É comum dicionários teológicos atribuírem o significado ‘conhecer de antemão’ ao termo presciência. Daí uma possível leitura do verso 23, do capitulo 2, de Atos: Cristo foi entregue aos judeus pelo seu determinado conselho e o que Deus conheceu de antemão que aconteceria com Cristo, ou Cristo foi entregue aos judeus pelo seu determinado conselho e segundo o conhecimento que Deus antecipou aos seus profetas?

É um equivoco entender que Deus antevê eventos futuros, pois todas as coisas estão nuas e patentes aos seus olhos: presente, passado, futuro, bem como os eventos da eternidade (Hebreus 4:13).

Nesse sentido, os arminianos, dissidentes dos calvinistas, acreditam que algumas pessoas foram eleitas (escolhidas) para serem salvas com base na presciência de Deus, ou seja, que Deus anteviu quais pessoas creriam no evangelho por ser presciente e as escolheu para serem salvas.

Esse pensamento não coaduna com as Escrituras, pois a salvação se dá por meio do evangelho (fé) segundo a graça de Deus revelada em Cristo (Efésios 1:13). O evangelho é anunciado hoje, porque hoje é o dia sobremodo aceitável e oportuno de salvação, e não eventos futuros que não pertence ao homem.

“(Porque diz: Ouvi-te em tempo aceitável E socorri-te no dia da salvação; Eis aqui agora o tempo aceitável, eis aqui agora o dia da salvação).” (2 Coríntios 6:2).

A má leitura acerca do que é a eleição e a predestinação levou a esses equívocos, pois é dito que Deus elegeu os cristãos para serem santos e irrepreensíveis, ou seja, eleição é de quem crê, e não de descrentes para salvação. A eleição se refere a nova geração em Cristo, e não à velha geração em Adão, e por isso é dito que somos a geração eleita.

Quem é gerado de novo é uma nova criatura, portanto, isento de culpa e condenação: santo e irrepreensível. A questão a ser tratada na eleição não é a salvação, e sim, a ausência de culpa.

“Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor;” (Efésios 1:4).

Primeiro Deus salva por meio do evangelho, que é poder de Deus para salvação, e depois o salvo é eleito, ou seja, chamado com santa vocação, pois ser santo e irrepreensível diz das riquezas que é segundo o propósito eterno que Deus estabeleceu em Cristo antes da fundação do mundo:

“Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso SENHOR, nem de mim, que sou prisioneiro seu; antes participa das aflições do evangelho segundo o poder de Deus, que nos salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos;” (2 Timóteo 1:8-9).

“A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada esta graça de anunciar entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo, e demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo; Para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos céus, segundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso Senhor,” (Efésios 3:8-11).

O mesmo equivoco se dá com relação a predestinação, que não se refere a salvação, e sim, a uma das riquezas incompreensíveis, pois se refere à semelhança que os salvos irão herdar de Cristo quando forem revestidos de glória. Há uma grande diferença entre salvação e ser conforme a imagem de Cristo, pois a salvação é por graça e ser conforme a imagem de Cristo é segundo o propósito estabelecido em Cristo.

“E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.” (Romanos 8:28-29).

Deus chama ao seu propósito estabelecido em Cristo aqueles que amam a Deus, ou seja, aqueles que creram em Cristo por intermédio do evangelho. O objetivo da predestinação é que os que creem em Cristo sejam conforme a imagem de Cristo, pois só assim Cristo se torna o primogênito de Deus entre MUITOS irmãos.

Mas, para ser chamado ao proposito, primeiro é necessário amar a Deus, ou seja, crer que Jesus é o Cristo:

Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele. Disse-lhe Judas (não o Iscariotes): SENHOR, de onde vem que te hás de manifestar a nós, e não ao mundo? Jesus respondeu, e disse-lhe: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada. Quem não me ama não guarda as minhas palavras; ora, a palavra que ouvistes não é minha, mas do Pai que me enviou.” (João 14:21-24).

Os calvinistas, por sua vez, afirmam que a salvação não se dá pela presciência, e sim pela soberania divina. Segundo esse posicionamento doutrinário, como é todo-poderoso e soberano, Deus escolheu desde a eternidade quem seria salvo, ou seja, o tempo da salvação também não é hoje, mas um evento do passado (2 Coríntios 6:2).

Os calvinistas contestam o uso que os arminianos fazem do termo presciência, e o termo grego πρόγνωσις, deixa de ser uma palavra para se tornar duas: atribuem significados a um prefixo e o seu sufixo, como se presciência fosse ‘pré-conhecimento’ (πρό-γνωσις).

Questionam o uso do termo ‘conhecimento’ no Antigo Testamento, vez que não há termo similar a presciência. Como só aparece o termo ‘conhecer’ no Antigo Testamento cujo significado é determinado pelo contexto na qual foi empregado, algumas vez pode ser compreendido como um saber, e outras vezes, diz de comunhão intima ou relação sexual.

Quando lemos: “E conheceu Caim a sua mulher, e ela concebeu, e deu à luz a Enoque; e ele edificou uma cidade, e chamou o nome da cidade conforme o nome de seu filho Enoque;” (Gênesis 4:17), o significado é determinado pelo contexto: relação sexual.

Nesse contexto, temos ‘conhecer’ como ‘saber’:

“E não o conheceu, porquanto as suas mãos estavam cabeludas, como as mãos de Esaú seu irmão; e abençoou-o.” (Gênesis 27:23).

Ou, nesse contexto, de uma relação especial:

“Rebeldes fostes contra o Senhor desde o dia em que vos conheci.” (Deuteronômio 9:24).

No Novo Testamento o termo ‘conhecer’ possui os mesmos contornos do Antigo Testamento:

“Conheceu, pois, Jesus que o queriam interrogar, e disse-lhes: Indagais entre vós acerca disto que disse: Um pouco, e não me vereis, e outra vez um pouco, e ver-me-eis?” (João 16:19);

“E não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito; e pôs-lhe por nome Jesus.” (Mateus 1:25);

“Mas, se alguém ama a Deus, esse é conhecido dele.” (1 Coríntios 8:3).

Esse último versículo evidencia que, para ser ‘conhecido’ de Deus é necessário amar a Deus. E como amar a Deus? Obedecendo ao mandamento de Deus, como expresso nos versos 21 a 24, de João 14.

“E o seu mandamento é este: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o seu mandamento. E aquele que guarda os seus mandamentos nele está, e ele nele. E nisto conhecemos que ele está em nós, pelo Espírito que nos tem dado.” (1 João 3:23-24).

O que é conhecer a Deus ou ser conhecido d’Ele? É estar em Deus e Deus na pessoa, como se lê:

“Qualquer que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus está nele, e ele em Deus.” (1 João 4:15);

“Mas agora, conhecendo a Deus, ou, antes, sendo conhecidos por Deus, como tornais outra vez a esses rudimentos fracos e pobres, aos quais de novo quereis servir?” (Gálatas 4:9).

Com base no que vimos acima, é possível ler o seguinte versículo:

“E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porque os que dantes conheceu também os predestinou…” (Romanos 8:28-29).

Ama a Deus aquele que obedece ao Seu mandamento e se torna conhecido d’Ele, ou antes é conhecido d’Ele.  Quem são as pessoas que Deus conheceu? Aquelas que amam a Deus, ou seja, que obedecem ao Seu mandamento.

Mas, os calvinistas não leem essas passagens bíblicas desse modo, antes procuram ressignificar o sentido das palavras segundo o posicionamento doutrinário que defende.

O versículo que acabamos de ler, que Cristo foi “…  entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus (Atos 2:23), os calvinistas dão o significado ‘decreto’ ao termo ‘conselho’, que na verdade significa vontade, e o termo presciência ganha o significado de ‘pre-conhecimento’.

Segundo a teologia calvinista, Deus conhece alguns de antemão (presciência) porque Ele mesmo decretou (conselho) que assim seria. Segundo esse pensamento, Deus conhece algumas pessoas para salvação uma vez que Ele decretou que essas pessoas seriam salvas.

Enquanto a Bíblia é clara em dizer que Deus conhece aqueles que o amam, e que por isso foram chamados ao propósito eterno que Deus estabeleceu em Cristo, que é congregar todas as coisas em Cristo, os calvinistas tão somente se silenciam dizendo que não sabem por que Deus escolheu os que Ele escolheu.

Tanto a concepção calvinista quanto a arminiana restam equivocadas, pois Deus salva os homens por intermédio do evangelho, e se os homens não se sujeitarem ao seu mandamento para crer que Jesus é o Cristo, não serão salvos.

Deus não salva pela sua soberania e nem por presciência. O evangelho é mandamento, e se o homem não se humilhar a si mesmo se fazendo servo de Cristo, não será salvo. Crer em Cristo não é ato meritório por parte do crente, pois é um ato de humilhação, visto que o homem que crê se sujeita ao Seu Senhor, ou seja, toma sobre si o jugo e o fardo de Cristo.

“Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas.” (Mateus 11:29).

Obedecer ao evangelho é um ato de sujeição e voluntário, portanto, qualquer jactância é excluída se alguém crê em Cristo por meio do evangelho, a palavra da fé. Não há mérito em crer em uma palavra fiel e digna de toda aceitação.

Se você quer ler a Bíblia, leia a Bíblia. Ela é suficiente para que você alcance a salvação e prossiga em conhecer as riquezas insondáveis de Cristo. Adquira uma Bíblia sem nota de rodapé ou Bíblia de Estudos. No máximo de preferencia a Bíblia que tenham referencias no rodapé, sem notas explicativas.

 

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

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