Regeneração

A conversão precede a regeneração

A conversão ocorre quando o homem se arrepende (metanoia), ou seja, muda seu entendimento por causa de Cristo, o reino dos céus entre os homens, e crê que Jesus é o Cristo.


A conversão precede a regeneração

“E uma certa mulher, chamada Lídia, vendedora de púrpura, da cidade de Tiatira, e que servia a Deus, nos ouvia, e o SENHOR lhe abriu o coração para que estivesse atenta ao que Paulo dizia.” (Atos 16:14).

 

A fé comum a todos salvos

“Trazendo à memória a fé não fingida que em ti há, a qual habitou primeiro em tua avó Lóide, e em tua mãe Eunice, e estou certo de que também habita em ti.”  (2 Timóteo 1:5).

Ao escrever a Timóteo, seu amado filho na fé, o apóstolo Paulo recorda a mesma fé que habitava em Lóide, avó de Timóteo, e em sua mãe, Eunice. Essa fé não se refere simplesmente à disposição interna de Timóteo, Eunice e Lóide para crer no evangelho, mas ao próprio evangelho em si – a fé transmitida aos santos (Judas 1:3; Filipenses 1:27; 2 Pedro 1:1).

Essa fé concedida aos crentes não representa uma “centelha de vida” implantada que habilitaria o perdido a crer em Cristo – conceito que os calvinistas associam à graça preveniente, isto é, o meio pelo qual Deus capacita o homem a responder ao chamado da salvação. Em vez disso, essa fé refere-se à fé comum, compartilhada igualmente entre todos os cristãos, inclusive o próprio apóstolo Paulo. Essa fé é Cristo, o dom de Deus, revelado aos homens na plenitude dos tempos.

“A Tito, meu verdadeiro filho, segundo a fé comum: Graça, misericórdia, e paz da parte de Deus Pai, e da do Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador.” (Tito 1:4);

“Isto é, para que juntamente convosco eu seja consolado pela fé mútua, assim vossa como minha.” (Romanos 1:12);

“Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar.” (Gálatas 3:23).

Nestes versículos, a “fé” personifica Cristo, o autor e consumador da fé e tema central do evangelho. Representa a “fé” inabalável dos crentes – a esperança do evangelho que ouviram e que é pregado a toda criatura:

“Se, na verdade, permanecerdes fundados e firmes na fé, e não vos moverdes da esperança do evangelho que tendes ouvido, o qual foi pregado a toda criatura que há debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, estou feito ministro.” (Colossenses 1:23).

Essa fé comum, compartilhada por Timóteo, Eunice e Lóide, também alcançou Lídia, a comerciante de púrpura de Tiatira, quando ela ouviu o apóstolo Paulo. Ao ouvir a esperança do evangelho, pregada a toda criatura, o entendimento de Lídia, tocado pelo poder da Palavra de Deus, tornou-se receptivo ao que Paulo anunciava.

 

A compreensão do evangelho

Ao considerar 2 Timóteo 1:5, tanto calvinistas quanto arminianos, cada qual a seu modo, argumentam que Deus concedeu uma graça irresistível ou que Ele agiu diretamente no coração de Lídia para que ela pudesse crer na mensagem. Contudo, o que levou a vendedora de púrpura a crer foi a própria “pregação da fé”, que revela as virtudes de Deus como fiel, verdadeiro e imutável, tornando Sua Palavra digna de plena confiança. A segurança no poder e na integridade de Deus cria uma base sólida para a disposição interna do indivíduo acreditar, pois diante de Sua garantia, crer se torna uma resposta natural (1 Timóteo 1:15; 1 Pedro 2:9).

As Escrituras indicam que nada é infundido previamente no coração humano para que ele possa ouvir a mensagem, nem demonstram a existência de uma graça irresistível. Deus chama os homens por meio do Seu “conhecimento” (evangelho), conforme a Sua glória e virtude (2 Pedro 1:2-4; 2:20; Filipenses 3:8).

A parábola do semeador ilustra que a semente – a Palavra de Deus – é lançada em diversos tipos de terrenos: à beira do caminho, entre pedras, entre espinhos e em boa terra. Observa-se que a ação divina está na semente, e não no solo onde ela cai:

“E falou-lhe de muitas coisas por parábolas, dizendo: Eis que o semeador saiu a semear. E, quando semeava, uma parte da semente caiu ao pé do caminho, e vieram as aves, e comeram-na; E outra parte caiu em pedregais, onde não havia terra bastante, e logo nasceu, porque não tinha terra funda; Mas, vindo o sol, queimou-se, e secou-se, porque não tinha raiz. E outra caiu entre espinhos, e os espinhos cresceram e sufocaram-na. E outra caiu em boa terra, e deu fruto: um a cem, outro a sessenta e outro a trinta.” (Mateus 13:3-8).

O poder de germinar está na semente, e não no terreno, embora só o solo propício – a boa terra – permita que a semente cresça e frutifique. Deus não intervém diretamente no tipo de terreno; ao contrário, a semente lançada encontra resistência ou aceitação de acordo com a disposição do solo, ou seja, do coração humano. Nos pensamentos calvinista e arminiano sobre a graça – respectivamente, irresistível e preveniente – haveria uma espécie de “correção do solo” para permitir a resposta ao evangelho. No entanto, a parábola sugere que o poder da salvação e a intervenção divina estão restritos à semente, que contém em si mesma o poder de germinar, enquanto o terreno permanece dependente da própria condição para receber ou resistir à palavra.

Tanto a concepção calvinista da graça irresistível—na qual o Espírito Santo convence e infunde a fé salvadora nos crentes— quanto a arminiana da graça preveniente—em que Deus capacita o homem para atender ao chamado da salvação—não refletem o testemunho das Escrituras. Essas interpretações sugerem uma barreira adicional entre os homens e o Mediador enviado por Deus, quando, na verdade, a única barreira real é aquela que impede a comunhão do homem com Deus devido às consequências do pecado de Adão. Por essa razão, Deus enviou Seu Filho unigênito como Mediador para reconciliar a humanidade consigo.

O que atrai os homens a Cristo é a mensagem da cruz, a pregação da fé. O evangelho, que é a fé entregue aos santos (Filipenses 1:27; Judas 1:3), é também conhecido como o “pão da vida”. Qualquer pessoa que se aproxima de Cristo não terá fome, pois n’Ele encontra-se o alimento espiritual que concede comunhão com Deus.

“E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim.” (João 12:32).

“E Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede. Mas já vos disse que também vós me vistes, e contudo não credes. Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora.” (João 6:35-37).

Os homens precisam apenas de fome e sede para irem a Cristo, que é o pão da vida e a água viva. A resposta é ouvir a Palavra e aceitá-la. Como afirma Isaías:

“Ó VÓS, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me atentamente, e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura.” (Isaías 55:1-2).

Jesus não podia dar testemunho de Si mesmo (João 5:31-32), então apontou para as Escrituras: “Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim.” (João 6:45). Somente os que se permitem ser instruídos pelo Senhor, manso e humilde, podem ir a Cristo, ou seja, são aqueles o Pai deu a Cristo:

“E todos os teus filhos serão ensinados do SENHOR; e a paz de teus filhos será abundante.” (Isaías 54:13);

“Eis-me aqui, com os filhos que me deu o SENHOR, por sinais e por maravilhas em Israel, da parte do SENHOR dos Exércitos, que habita no monte de Sião.”  (Isaías 8:18).

Assim, apenas aqueles que se deixam instruir pelo Senhor, manso e humilde de coração, podem ir a Cristo. E como se permitir essa instrução? Submetendo-se ao senhorio de Cristo, tornando-se servos. Na condição de servos, tornam-se aqueles que o Pai deu ao Filho: propriedade para uso exclusivo.

Tudo quanto o Pai tem é meu; (João 16:15).

A mensagem de Cristo, conforme registrada pelo evangelista João, não sustenta a ideia calvinista da dupla predestinação, que envolve tanto a salvação quanto a condenação. Em vez disso, aponta que Deus concede a Cristo aqueles que se humilham a si mesmos, fazendo-se servos (Mateus 23:12). Aqueles que se recusam a se submeter à Sua vontade – crer em Cristo – não serão dados a Cristo, pois não assumem a condição de servos.

“Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas.   Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”  (Mateus 11:28-30).

Uma leitura parcial do texto poderia sugerir que Deus escolheu e capacitou alguns para irem a Cristo. No entanto, Deus estabeleceu que os pobres, famintos e sedentos de justiça, cansados e oprimidos, são aqueles que pertencem a Cristo. Isso significa que Deus não preordena indivíduos específicos para serem conduzidos a Cristo. Em vez disso, Ele anunciou de antemão qual a postura diante da mensagem que determinaria quem seria conduzido a Cristo. Aqueles que se encontram em humildade, com coração contrito – os pobres e oprimidos – são os que Deus conduz a Cristo. Já os ricos e autossuficientes, que não reconhecem sua necessidade, não seriam conduzidos a Ele.

“Os que o Pai deu a Cristo” são os crentes, diferentes dos incrédulos (João 6:36). Deus deseja salvar os crentes e escolheu a “loucura da pregação” como o meio, ou a “semente” lançada no solo, que é o poder de Deus (1 Coríntios 1:18):

“Porquanto a vontade daquele que me enviou é esta: Que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia.” (João 6:40);

“Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.” (1 Coríntios 1:21).

Embora o poder para a salvação resida na “loucura da pregação” – a palavra da cruz – essa semente só germina em um solo fértil. Em outras palavras, apenas aqueles que são pobres e necessitados, ou seja, os que têm fome e sede de justiça, são capazes de lançar mão do pão e da água ofertados por Cristo.

Se o indivíduo não crer, jamais será salvo, pois, embora a palavra da cruz seja o poder de Deus para a salvação, somente aqueles que creem estarão sob Sua proteção. Essa realidade não sustenta a ideia de que Deus escolhe alguns e lhes concede a capacidade de crer; na verdade, Deus concede a Cristo aqueles que tem uma disposição sincera em ouvir e responder à Palavra viva.

“De sorte que foram batizados os que de bom grado receberam a sua palavra; e naquele dia agregaram-se quase três mil almas,” (Atos 2:41);

“Ora, estes foram mais nobres do que os que estavam em Tessalônica, porque de bom grado receberam a palavra, examinando cada dia nas Escrituras se estas coisas eram assim.” (Atos 17:11).

 

A graça de Deus

O pensamento calvinista acerca da regeneração é de que se trata de uma centelha de vida concedida ao pecador que lhe permite crer. Deste modo, Deus primeiro regenera e, então, o homem crê. Sob o pretexto de dar toda glória a Deus pela conversão do homem, argumentam que o voltar-se para Deus é obra da sua graça, que para todos é uma graça geral ou comum, e para os escolhidos para serem salvos, é uma graça irresistível. Ou segundo os armenianos, uma graça preveniente.

A Bíblia evidencia que uma só é a graça de Deus, e que ela foi manifesta trazendo salvação indistintamente a todos os homens. Considerando o contexto das Escrituras, Cristo é a graça de Deus, o descendente prometido a Abraão, em quem todas as famílias da terra seriam benditas.

“Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens,” (Tito 2:11).

Por isso o evangelho foi anunciado primeiramente a Abraão, como bem destacado pelo apóstolo Paulo:

“Ora, tendo a Escritura previsto que Deus havia de justificar pela fé os gentios, anunciou primeiro o evangelho a Abraão, dizendo: Todas as nações serão benditas em ti.” (Gálatas 3:8).

Cristo, a graça de Deus manifesta, é o cumprimento da previsão anunciada a Abraão. Essa graça também recebe o nome de “fé”, pois é dom de Deus.

“Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar.” (Gálatas 3:23);

“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus.” (Efésios 2:8).

É por meio de Cristo que os homens são salvos (“pela graça sois salvos”), através do evangelho (“por meio da fé”), que é o poder de Deus. Pois não há outro nome pelo qual os homens possam ser salvos, e o evangelho é a mensagem de salvação (Efésios 1:13; Atos 4:12).

“Mas não é assim o dom gratuito como a ofensa. Porque, se pela ofensa de um morreram muitos, muito mais a graça de Deus, e o dom pela graça, que é de um só homem, Jesus Cristo, abundou sobre muitos.” (Romanos 5:15).

Na história da humanidade, há inúmeros registros de tentativas do homem em alcançar a divindade e várias maneiras de imaginar o sagrado. No entanto, é impossível ao homem alcançar a Deus por conta própria, ainda que a intenção seja honesta. Até mesmo os filhos de Israel, que possuíam as Escrituras, cometeram abominações por falta do verdadeiro conhecimento de Deus. Como Paulo explica em Romanos 10:1-3, eles tinham zelo por Deus, mas esse zelo não estava baseado em um conhecimento adequado. Em vez de submeter-se à justiça de Deus, buscaram estabelecer sua própria justiça, ignorando a verdadeira justiça que vem de Deus.

Sobre essa questão, o Livro de Jó, considerado cronologicamente o primeiro livro da Bíblia, traz um ensinamento do jovem Eliú sobre a condição difícil do homem e como é possível conhecer a Deus. Eliú afirma:

“E a sua alma se vai chegando à cova, e a sua vida aos que trazem a morte. Se com ele, pois, houver um mensageiro, um intérprete, um entre milhares, para declarar ao homem a sua retidão, Então terá misericórdia dele, e lhe dirá: Livra-o, para que não desça à cova; já achei resgate. Sua carne se reverdecerá mais do que era na mocidade, e tornará aos dias da sua juventude. Deveras orará a Deus, o qual se agradará dele, e verá a sua face com júbilo, e restituirá ao homem a sua justiça. Olhará para os homens, e dirá: Pequei, e perverti o direito, o que de nada me aproveitou. Porém Deus livrou a minha alma de ir para a cova, e a minha vida verá a luz. Eis que tudo isto é obra de Deus, duas e três vezes para com o homem, Para desviar a sua alma da perdição, e o iluminar com a luz dos viventes.” (Jó 33:22-30).

Eliú descreve a condição do homem sob o aguilhão do pecado, que é a morte (Jó 33:22), e aponta para a necessidade de um mensageiro, um mediador que possa revelar ao homem a justiça de Deus, de modo que Deus possa se compadecer e resgatá-lo (Jó 33:23-24).

Sem esse mediador que anuncia ao homem o caminho a seguir, não há como alcançar a misericórdia de Deus, pois a obra da redenção deve ser revelada ao homem.

Com a chegada do mediador, que declara a retidão de Deus, o homem que estava à beira da cova, ao ser resgatado, experimenta um novo nascimento. Por sua confiança em Deus, ele encontra o favor divino (verá a face de Deus), sendo justificado diante d’Ele.

Após essa transformação, esse homem voltará aos seus semelhantes para testemunhar, reconhecendo que havia pecado, mas que Deus o livrou da condenação e o salvou. Eliú enfatiza que toda essa obra de redenção e restauração é exclusivamente obra de Deus.

A intervenção de Cristo como mediador representa a graça de Deus concedida a todos os homens. Por isso, as Escrituras afirmam que “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito.” (João 3:16). Esse ato de enviar Seu Filho para a reconciliação da humanidade é a expressão da graça divina, estendida a todos, manifestando a retidão, a justiça e a fidelidade de Deus à Sua promessa feita a Abraão.

Como o amor de Deus é expresso em mandamento, Cristo foi dado para que o homem creia n’Ele e não pereça, encontrando assim a vida eterna (1 João 4:9-10). Esse amor demanda uma resposta de fé (crer), oferecendo a todos a oportunidade de participar da vida que há em Cristo, de acordo com a vontade redentora de Deus (1 Timóteo 2:4).

“E Jesus, olhando para ele, o amou e lhe disse: Falta-te uma coisa: vai, vende tudo quanto tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, toma a cruz, e segue-me.” (Marcos 10:21).

“Sê tu a minha habitação forte, à qual possa recorrer continuamente. Deste um mandamento que me salva, pois tu és a minha rocha e a minha fortaleza.” (Salmo 71:3).

A graça de Deus permite que o homem se torne Seu servo, e, por isso, a mensagem da graça é, em essência, um mandamento que exige obediência. Primeiramente, é dado um mandamento segundo a verdade do evangelho, que demanda do ouvinte uma resposta de obediência. A graça, portanto, envolve a oferta de Cristo, que traz consigo uma convocação à submissão voluntária à vontade de Deus.

“Mas a seu tempo manifestou a sua palavra pela pregação que me foi confiada segundo o mandamento de Deus, nosso Salvador;” (Tito 1:3);

“Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens,” (Tito 2:11).

A graça de Deus manifesta-se em Cristo, que é o tema central da mensagem pregada – o próprio mandamento de Deus. O mandamento precede a obediência, e a conversão, que resulta da obediência ao mandamento, precede a regeneração.

Esse mandamento é: crer no nome de Jesus, o Cristo. Consequentemente, aquele que crê passa a estar em Cristo, e Cristo, nele, tornando-se, assim, uma nova criatura.

“E o seu mandamento é este: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o seu mandamento. E aquele que guarda os seus mandamentos nele está, e ele nele. E nisto conhecemos que ele está em nós, pelo Espírito que nos tem dado.” (João 3:23-24).

Thomas R. Schreiner, pastor e teólogo calvinista, ao explicar passagens da primeira epístola de João, afirma que certos versículos indicam que a regeneração precede a fé. No entanto, sua leitura é enviesada, pois interpreta o texto a partir de uma perspectiva calvinista, sem considerar plenamente o contexto da carta joanina.

Quando o apóstolo João escreveu: “Se sabeis que ele é justo, reconhecei também que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele.” (1 João 2:29), seu objetivo era alertar os cristãos sobre aqueles que tentavam enganá-los. Infiltrados na igreja, esses indivíduos negavam que Jesus era o Cristo (1 João 2:18-23). João não estava ensinando que a regeneração precede a fé; ao contrário, ele estava enfatizando que é essencial reconhecer que aquele que confessa que Jesus é o Cristo – o que João considera a verdadeira prática da justiça – é nascido de novo. Assim, João distingue os verdadeiros cristãos, que confessam a Cristo, dos anticristos, que negam essa verdade fundamental.

O objetivo do versículo é instruir os cristãos sobre como identificar quem realmente pertence ao evangelho, distinguindo-os dos anticristos. O critério de avaliação é este:

“Qualquer que nega o Filho, também não tem o Pai; mas aquele que confessa o Filho, tem também o Pai” (1 João 2:23).

Se alguém nega o Filho, essa pessoa também não tem o Pai e é considerada um anticristo. Por outro lado, aquele que confessa a Cristo possui também o Pai e é um verdadeiro irmão na fé. Para concluir seu argumento, João acrescenta: se sabemos que Jesus é justo, então devemos reconhecer que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele. Em outras palavras, se alguém confessa que Jesus é o Cristo, esse, por consequência, pratica a justiça e é nascido de Cristo. Esse é o critério que João oferece para identificar os verdadeiros cristãos, contrastando-os com aqueles que negam a Cristo.

“Filhinhos, ninguém vos engane. Quem pratica justiça é justo, assim como ele é justo.” (1 João 3:7).

Contrariando a interpretação de Schreiner, o evangelista João, desde o início de sua epístola, demonstra que a “fé” como mandamento precede a regeneração. João escreve:

“E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu conheço-o, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade. Mas qualquer que guarda a sua palavra, o amor de Deus está nele verdadeiramente aperfeiçoado; nisto conhecemos que estamos nele.” (1 João 2:3-5).

Primeiro, o mandamento é anunciado, possibilitando ao homem responder com obediência. Através do mandamento – a pregação da fé – ocorre a metanoia (mudança de compreensão ou entendimento, que é o arrependimento) e, então, a conversão.

Conforme Pedro exorta:

“Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados, e venham assim os tempos do refrigério pela presença do SENHOR” (Atos 3:19).

Diante da mensagem proclamada por Pedro – a pregação da fé – os ouvintes são chamados a mudar sua concepção (arrependimento) e a se converterem ao Senhor Jesus. Somente então, seus pecados são apagados, indicando a morte com Cristo.

Para que a regeneração ocorra, é necessário que o homem primeiro morra com Cristo, sendo assim justificado do pecado. Após essa morte e sepultamento com Cristo, acontece a regeneração, que é a ressurreição com Cristo, momento em que Deus declara o homem justo. A regeneração é, portanto, o ato de Deus que confere nova vida ao homem, uma nova existência em união com Cristo.

Vale destacar aqui o segundo versículo citado por Schreiner para afirmar que a regeneração precede a conversão:

“Todo aquele que é nascido de Deus não peca; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode pecar, porque é nascido de Deus.” (1 João 3:9).

Neste versículo, o apóstolo João enfatiza a nova condição dos filhos de Deus. Ao dizer que os nascidos de Deus não pecam, João está destacando que eles não são mais escravos do pecado. Somente aqueles que permanecem servos do pecado e pertencem ao diabo continuam a pecar, como ele afirma:

“Quem comete o pecado é do diabo, porque o diabo peca desde o princípio.” (1 João 3:8).

“Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado.” (João 8:34).

O apóstolo João está abordando a nova natureza dos filhos de Deus, que, ao morrerem e ressuscitarem com Cristo, são libertos do domínio do pecado. Como Paulo escreve:

“Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado.” (Romanos 6:6).

Os últimos dois versículos citados por Schreiner, no contexto da epístola de João, têm o objetivo de alertar os cristãos sobre os falsos profetas, aqueles que negavam que Jesus veio em carne (1 João 4:1-2). João está instruindo os crentes a discernirem os verdadeiros filhos de Deus, que refletem a natureza de Cristo, daqueles que negam a encarnação de Jesus, mostrando que esses últimos não compartilham da nova vida em Cristo.

“Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.” (1 João 4:7);

“Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido.” (1 João 5:1).

Para entender plenamente esses dois versículos, é necessário primeiro compreender o significado do verbo ἀγαπάω (agapaó), que denota submissão, obediência.

“Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom.” (Mateus 6:24);

“Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.” (João 14:21).

O verbo ἀγαπάω (agapaó) era usado para descrever a relação entre senhor e servo, onde o amor está relacionado aos papéis que ambos desempenham: o servo, ao amar, obedecia às ordens de seu senhor, enquanto o senhor, ao amar o servo, lhe prescrevia o que fazer.

Assim, quando João afirma: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus.” (1 João 5:1), isso significa que a pessoa obedeceu ao mandamento de Deus, demonstrando amor por Cristo e por Deus, que o enviou. Em outras palavras, aquele que obedece a Cristo está também obedecendo a Deus, e vice-versa. João, então, destaca que a verdadeira fé em Cristo é uma expressão de obediência (submissão) tanto a Cristo quanto ao Pai.

 

O evangelho precede o crer

A regeneração bíblica significa que alguém “nasceu de novo” ou “nasceu do alto” (João 3:3, 5, 7, 8). Este novo nascimento é uma obra de Deus, em que todo aquele que é nascido de novo é “nascido do espírito” e, portanto, da palavra de Deus (João 3:8). Jesus afirma: “O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos disse são espírito e vida.” (João 6:63). Sendo Ele o último Adão, o espírito vivificante, nascer de novo é, essencialmente, nascer do evangelho.

O apóstolo Pedro destaca que é Deus, “segundo a sua muita misericórdia, quem nos regenerou para uma viva esperança.” (1 Pedro 1:3). Deus usa o evangelho como meio para conceder essa nova vida, pois os crentes são “regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, que vive e é permanente.” (1 Pedro 1:23; cf. Tiago 1:18).

Contudo, antes da regeneração, há um evento igualmente significativo: a circuncisão com Cristo, que representa a união com Ele na morte, ou seja, o sepultamento com Cristo (Colossenses 2:11-12). A circuncisão com Cristo refere-se à morte do “corpo que pertence ao pecado”, indicando que o velho eu é sepultado. Somente após morrer e ser sepultado com Cristo pelo batismo em Sua morte, é possível o novo nascimento pelo poder que há no evangelho, que traz a existência um novo ser criado em verdadeira justiça e santidade.

“Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida.” (Romanos 6:3-4).

Assim como a regeneração ou o nascer de novo é um evento sobrenatural, a morte com Cristo também é um acontecimento sobrenatural. Da mesma forma que o ser humano não pode fazer nada para nascer fisicamente – isso ocorre sem sua intervenção –, também não é possível ao homem por si mesmo nascer de novo.

Neste ponto, o homem se depara com o impossível: salvar-se a si mesmo. Mas, o que é impossível ao homem, é possível para Deus.

“Os seus discípulos, ouvindo isto, admiraram-se muito, dizendo: Quem poderá pois salvar-se? E Jesus, olhando para eles, disse-lhes: Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível.” (Mateus 19:25-26).

Não é sem motivo que Deus, em diversas ocasiões, requereu do homem o impossível, colocando diante dele exigências que revelam a sua incapacidade de cumprir plenamente por si só. Em Deuteronômio, por exemplo, Ele ordena: “Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e não mais endureçais a vossa cerviz.” (Deuteronômio 10:16), um pedido que demanda uma incisão que resultaria em morte.

De forma semelhante, Deus diz: “Perfeito serás, como o SENHOR teu Deus.” (Deuteronômio 18:13), ou ainda: “Lançai de vós todas as vossas transgressões com que transgredistes, e fazei-vos um coração novo e um espírito novo; pois, por que razão morreríeis, ó casa de Israel?” (Ezequiel 18:31). E, em Levítico, Ele declara: “Portanto santificai-vos, e sede santos, pois eu sou o SENHOR vosso Deus.” (Levítico 20:7).

Essas exigências expõem o limite da capacidade humana e apontam para a necessidade de uma intervenção divina. Elas nos mostram que a verdadeira santidade, perfeição e renovação do coração dependem do poder de Deus para cumprir aquilo que, por nós mesmos, jamais poderíamos alcançar.

Quando Deus dá uma ordem impossível ao homem, o que Ele espera é que o homem confie que Deus é capaz de realizá-la. Ao crer na mensagem do evangelho, o homem experimenta a morte e o sepultamento com Cristo. Assim, a justiça de Deus é satisfeita, pois “a alma que pecar, essa morrerá” (Ezequiel 18:20), pois o salário do pecado é a morte.

Obediência é o caminho pelo qual o homem acessa a misericórdia divina. Desde sempre, Deus exigiu do homem amor, ou seja, sujeição a Ele pela guarda de Seus mandamentos. Na Nova Aliança, Deus igualmente requer obediência, mas essa obediência se expressa através da confiança plena n’Ele.

“E faço misericórdia a milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Deuteronômio 5:10);

“E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna salvação para todos os que lhe obedecem;” (Hebreus 5:9).

A obediência ao evangelho conduz o homem à regeneração; por isso, antes de ser regenerado, ele é chamado a tomar a sua cruz e seguir a Cristo. Ao seguir Cristo com sua própria cruz, o homem, ao perder sua vida por amor a Ele, encontrará a verdadeira vida.

Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me; Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.” (Mateus 16:24-25).

“Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.” (Gálatas 6:14).

Quando Cristo foi morto e ressuscitou, Ele se tornou o tema central da mensagem da cruz. Todos que ouvem o evangelho, que é o mandamento de Deus, são chamados a obedecer para alcançar a salvação. Obedecer, nesse contexto, significa crer ou converter-se. A conversão ocorre quando o homem se arrepende, ou seja, muda seu entendimento por causa de Cristo, o reino dos céus entre os homens, e crê que Jesus é o Cristo.

É importante notar que a Bíblia fala de arrependimento em relação à chegada do reino dos céus, que é Cristo, e não especificamente de “arrependimento de pecados” (Mateus 3:2; 4:17). Cristo é o motivo da mudança de mente, pois a mensagem do evangelho confronta o entendimento do pecador. Ao ouvir essa mensagem, o pecador é chamado a confiar em Cristo, encontrando n’Ele salvação.

A mensagem do evangelho é fiel e digna de plena aceitação, de modo que produz nos que ouvem uma confiança genuína em Cristo (1 Timóteo 1:15). Através dessa mensagem, o Espírito Santo convence os homens do pecado, da justiça e do juízo (João 16:8).

Quando o homem crê, ele morre com Cristo e é sepultado, cumprindo-se a justiça de Deus. Mas, pela misericórdia e graça de Deus, o mesmo poder que ressuscitou Cristo dentre os mortos opera eficazmente naqueles que foram unidos a Ele na morte, e eles recebem vida juntamente com Cristo (Efésios 1:19-20).

A expressão “… nos deu vida juntamente com Cristo” (Efésios 2:5) significa que aqueles que creem ressurgiram com Cristo como uma nova criatura. Essa passagem não sugere a ideia de um “sopro de vida” infundindo centelha no indivíduo para que ele possa crer, mas sim, afirma que, por meio do evangelho, a fé manifesta, o crente experimenta a ressurreição com Cristo (Efésios 2:8).

 

“Essa é a forma de Paulo dizer que Deus regenerou seu povo (cf. Tito 3.5). Ele soprou vida em nós onde não havia nenhuma antes, e o resultado dessa nova vida é a fé, pois a fé também é “dom de Deus” (Efésios 2.8).” Thomas R. Schreiner, Como a regeneração necessariamente precede a conversão. Disponível em: https://ministeriofiel.com.br/artigos/como-a-regeneracao-necessariamente-precede-a-conversao/  Acesso em: 10 nov 24.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

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