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A Judicialização da Justificação Bíblica

Considerar a justificação como um ato forense — em que a palavra “forense” significa “relacionada a um processo legal” — é uma tentativa de judicialização da justificação bíblica, o que leva a inúmeros equívocos, pois a justificação está vinculada à nova criação em Cristo, enquanto a condenação está ligada à primeira criação, resultante da ofensa de um só homem, Adão.


A Judicialização da Justificação Bíblica

“O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação.” (Romanos 4:25).

 

Os Ímpios e os Justos

Antes de tratarmos da justificação, é importante relembrar que existem apenas duas condições possíveis para o ser humano diante de Deus: ímpio ou justo. Essas condições são mutuamente excludentes e determinadas desde o nascimento.

De acordo com as Escrituras, os homens herdam essas condições ao nascer. O salmista expressa de maneira clara esta verdade: os ímpios se afastam de Deus desde o ventre materno; desviam-se e falam mentiras desde o nascimento:

“Alienam-se os ímpios desde a madre; andam errados desde que nasceram, falando mentiras.” (Salmo 58:3)

Os ímpios não escolhem ser ímpios, pois já nascem nessa condição, sendo lançados no mundo como reprováveis e culpáveis diante de Deus. Todos os seres humanos, com exceção de Adão e Cristo, entram no mundo por uma porta larga que conduz a um caminho espaçoso e, inevitavelmente, à perdição. Sobre essa realidade, Jesus advertiu:

“Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela.” (Mateus 7:13)

Adão, formado do pó da terra, foi criado por Deus santo, justo e bom. No entanto, ao desobedecer ao mandamento no Éden, que trazia consigo uma penalidade, trouxe sobre si condenação e rompeu sua comunhão com o Criador. Por causa dessa transgressão, o pecado entrou no mundo, e, pelo pecado, veio a morte. Essa morte se estendeu a toda a humanidade, de modo que é dito: “todos pecaram” (Romanos 5:12).

Assim, todos os descendentes de Adão, ao nascer, estão sob a condenação decorrente do juízo estabelecido no Éden. Mesmo sem terem praticado o bem ou o mal, já estão em inimizade com Deus simplesmente por descenderem de Adão. Não foi o conhecimento do bem e do mal em si que afastou a humanidade de Deus, mas sim a morte que entrou no mundo pela ofensa de Adão. O conhecimento adquirido apenas tornou o ser humano consciente do bem e do mal, mas não é este conhecimento que determina a proximidade ou o afastamento de Deus.

Se os ímpios entram no mundo pela porta larga representada por Adão, certamente há uma porta pela qual os justos entram. E qual é essa porta? O Salmo 118 nos dá uma resposta:

“Esta é a porta do SENHOR, pela qual os justos entrarão.” (Salmo 118:20).

Este salmo refere-se à destra do Senhor, que, mesmo castigada, não foi entregue à morte, mas tornou-se a pedra que os edificadores rejeitaram. Essa porta é aclamada como “o bendito que vem em nome do Senhor”, a vítima atada às pontas do altar como sacrifício (Salmo 118:16-18; 22; 26-27).

Cristo é essa porta estreita pela qual os justos entram, pois Ele é o último Adão. Isso significa que, para entrar pela porta estreita, é necessário nascer de novo, ser gerado de uma semente incorruptível e pertencer à família de Deus, tornando-se uma nova criatura. Por isso, Jesus proclamou à multidão a necessidade de passar pela porta estreita (Mateus 7:13-14). Essa porta simboliza o novo nascimento, que não depende de religiosidade, nacionalidade, moralidade ou comportamento, mas de nascer “da água e do Espírito” ou beber da “água viva” (João 3:5; 4:14).

Assim, fica claro que ser ímpio ou justo é uma condição estabelecida no nascimento. Se gerado da semente corruptível de Adão, o ser humano é ímpio, caracterizado como mentiroso, vil, pecador e culpável. Se gerado da semente incorruptível de Cristo, o Espírito vivificante, o homem é justo, sendo verdadeiro, nobre, santo e inculpável.

Com isso, concluímos a exposição sobre as condições herdadas no nascimento. Agora, passaremos a analisar como se deu a condenação e como ocorre a justificação.

 

Condenação e Justificação

“Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação de vida.” (Romanos 5:18).

Essa abordagem paulina nos leva a refletir que a condenação e a justificação resultam das ações de dois homens: Adão e Cristo. Pelo ato único de Adão, o juízo de Deus foi decretado sobre toda a humanidade, trazendo condenação. Não são os atos individuais de cada pessoa que os tornam culpáveis diante de Deus, mas sim o ato de um único homem que imputou culpa a todos.

A justificação, por outro lado, consiste na substituição do ato de desobediência pelo ato de obediência. Assim, pela obediência de um único homem, muitos serão declarados justos (Romanos 5:19). Por meio de Jesus Cristo, a graça de Deus se tornou abundante para muitos (Romanos 5:15). Diferente da ofensa que, com uma única transgressão, trouxe juízo e condenação, o dom gratuito foi concedido mesmo em meio a muitas ofensas, promovendo a justificação (Romanos 5:16).

A morte reinou por causa de uma única ofensa, mas aqueles que recebem a abundância da graça e participam do dom da justiça reinarão em vida por meio de Cristo Jesus (Romanos 5:18). Isso demonstra que a condenação e a justificação, segundo as Escrituras, não se assemelham à justiça aplicada nos tribunais humanos, que é uma mera “declaração legal”.

“Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.” (João 3:18).

Adão e Cristo são os agentes principais da condenação e da justificação, respectivamente. A perspectiva bíblica de justificação difere daquela defendida por alguns teólogos, como Wayne A. Grudem, que, em sua Teologia Sistemática, afirma:

“Nesse sentido de ‘declarar justo’ ou ‘declarar não culpado’, Paulo usa a palavra com frequência para falar da nossa justificação por parte de Deus, sua declaração de que nós, embora pecadores culpados, somos justos diante dele. É importante enfatizar que essa declaração legal por si só não transforma efetivamente nossa natureza interior ou nosso caráter. Nesse sentido de justificar, Deus emite uma declaração legal a nosso respeito. É por isso que os teólogos também têm dito que a justificação é forense, em que a palavra ‘forense’ significa ‘relacionada a um processo legal’.” (Grudem, Wayne A. Teologia Sistemática, 2ª ed., Vida Nova, 2022).

Enquanto as Escrituras apresentam a condenação e a justificação como resultado de atos relacionados a duas criações — a primeira em Adão e a última em Cristo —, a perspectiva teológica mencionada reduz a justificação a um ato meramente jurídico, desvinculando-a do aspecto transformador da nova criação.

Adão e Cristo são os agentes principais da condenação e da justificação, respectivamente. Após a conclusão da obra da primeira criação, Adão pecou, trazendo a morte ao mundo e comprometendo a condição de todos os homens diante de Deus, tornando-os inúteis ao Seu propósito eterno estabelecido em Cristo. Por outro lado, Cristo foi introduzido no mundo da primeira criação em um corpo carnal semelhante ao de Adão em tudo, porém sem estar sujeito ao pecado. Ele obedeceu ao Pai em tudo e, por isso, foi crucificado, morreu e foi sepultado. Aquele que era o unigênito de Deus, ao ressurgir dentre os mortos, tornou-se o primogênito com um corpo glorioso e incorruptível, tornando-se a cabeça de uma nova geração de homens espirituais.

A primeira criação foi concluída em sete dias, e no sétimo, Deus descansou de todas as suas obras (Gênesis 2:2). Contudo, ao afirmar: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (João 5:17), após realizar um milagre no sábado, Jesus evidenciou que Ele e o Pai estavam engajados em um novo empreendimento criativo, relacionado aos bens futuros.

“Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação,” (Hebreus 9:11).

A primeira criação foi sujeita por Deus à servidão da corrupção e, por isso, é transitória (vaidade). Já a obra da nova criação, que se manifestará com a glória dos filhos de Deus, será eterna. Quando Cristo se manifestar, a ardente expectativa da criação será satisfeita, pois os salvos em Cristo se manifestarão com Ele em glória. Aqueles que derivam da criação em Adão serão libertos da servidão da corrupção e participarão da liberdade gloriosa dos filhos de Deus, recebendo um corpo incorruptível em tudo semelhante ao corpo ressurreto de Cristo.

“Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo.” (Romanos 8:18-23).

Observe que a criação geme e está juntamente com dores de parto até o presente momento. Isso acontece porque, assim como os salvos em Cristo, a criação também espera pelo momento da adoção, isto é, a redenção do corpo, que é decorrente da redenção do pecado recebida pela fé em Cristo.

O apóstolo Paulo explica aos coríntios que há um corpo natural e um corpo espiritual. Assim como Adão, o primeiro homem, foi feito alma vivente, Cristo, o último Adão, é espírito vivificante. O corpo natural é fruto da primeira criação, enquanto o corpo espiritual provém da nova criação.

“Assim como o homem terreno, tais também os terrenos; e, como o celestial, tais também os celestiais.” (1 Coríntios 15:48-49).

Assim como na primeira criação o homem natural formado do pó da terra era terreno, e todos os seus descendentes terrestres herdaram sua imagem e semelhança, na nova criação, os homens espirituais compartilharão da mesma imagem e semelhança do homem celestial, Cristo ressuscitado, que é espírito vivificante e incorruptível

O ponto defendido por Paulo não se limita ao processo de salvação, mas aborda a natureza do corpo que os salvos terão na ressurreição e/ou no arrebatamento da Igreja, visto que a corrupção não pode herdar a incorruptibilidade.

Assim como os descendentes de Adão compartilham a sua imagem terrena e estão sujeitos à condenação resultante de sua transgressão, os salvos em Cristo compartilham a imagem celestial e, pela obediência de Cristo, são resgatados do pecado, sendo considerados justos.

Os salvos em Cristo são justos porque foram gerados de novo por uma semente incorruptível e se tornaram novas criaturas. A adoção plena, ou seja, a redenção do corpo, ocorrerá no momento em que se cumprir a plenitude dos gentios.

O que Wayne propõe é justamente o que Deus condena:

“Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem das trevas luz, e da luz trevas; e fazem do amargo doce, e do doce amargo!” (Isaías 5:20).

A interpretação de Wayne ao definir “justificar” (gr. dikaioō, “declarar justo”) em Paulo como “sermos justos diante dele, embora pecadores culpados”, acarreta a implicação teológica de que Deus estaria instituindo uma ficção, declarando justos aqueles que, na realidade, são ímpios.

Ainda mais preocupante é que essa visão nega a eficácia do evangelho, que propõe tornar tudo novo aqueles que creem, especialmente ao torná-los novas criaturas. Ao afirmar que “essa declaração legal por si só não transforma efetivamente nossa natureza interior ou nosso caráter”, perde-se a essência da regeneração proclamada nas Escrituras.

Por duas razões, Deus não pode emitir uma declaração inverídica sobre o pecador: Ele não é homem para que minta, e Ele mesmo afirma que jamais justificará o ímpio.

“Para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta…” (Hebreus 6:18).

“De palavras de falsidade te afastarás, e não matarás o inocente e o justo; porque não justificarei o ímpio.” (Êxodo 23:7).

Diante dessa realidade, surge uma importante questão: se Deus não pode mentir e Ele não justifica o ímpio, como entender a declaração de que “… nós, embora pecadores culpados, somos justos diante dele”?

 

A Essência da Justificação está na Nova Criação

Wayne Grudem destaca que o verbo grego dikaioō possui uma ampla gama de significados, sendo um dos mais comuns “declarar justo” ou “justificar”. No entanto, de acordo com o Dicionário Bíblico Strong, esse verbo também significa “tornar justo ou como deve ser”, além de “mostrar, exibir, evidenciar alguém ser justo, tal como é e deseja ser considerado” e, em terceiro lugar, “declarar, pronunciar alguém justo, reto, ou tal como deve ser”.

Considerando que, para ver o Reino dos Céus, é necessário nascer de novo, a ideia defendida no Novo Testamento para o uso de dikaioō em relação a Deus é “tornar justo” ou “como deve ser”. Apoiar que o verbo significa apenas “declarar justo” com base no seguinte versículo desconsidera o poder criativo da palavra de Deus:

“E todo o povo que o ouviu e os publicanos, tendo sido batizados com o batismo de João, justificaram a Deus.” (Lucas 7:29).

O texto não sugere que as pessoas e os publicanos tornaram Deus justo ao justificá-lo — algo impossível para qualquer ser humano —, mas que, ao se batizarem, confessaram publicamente a justiça de Deus. Isso demonstra que a declaração deles foi verdadeira e não um “faz de conta”, ao contrário da ideia de que Deus declararia justo um pecador sem antes regenerá-lo.

Wayne Grudem parte do pressuposto de que o termo dikaioō refere-se apenas a uma declaração quando usado no Novo Testamento, e para sustentar isso, apresenta uma lista de versículos:

“Esse também é o sentido do termo nas passagens em que o Novo Testamento fala que nós somos declarados justos por Deus (Rm 3.20,26,28; 5.1; 8.30; 10.4,10; Gl 2.16; 3.24).” Idem.

É significativo que ele tenha ignorado a primeira vez que o apóstolo Paulo usa os termos gregos dikaios (justo) e dikaioō (justifico) na carta aos Romanos:

“Porque os que ouvem a lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados.” (Romanos 2:13).

Paulo é claro ao afirmar que ouvir a lei não torna ninguém justo diante de Deus, usando um adjetivo para indicar uma condição reta ou correta. No entanto, para alcançar essa condição de retidão, é necessário praticar a lei. Aqui surge uma questão: o verbo dikaioō possui o sentido de “ser livre do pecado”, como em Romanos 6:7 (dedikaiōtai apo tēs hamartias), ou refere-se à declaração de justo, como no substantivo dikaiōsis em Romanos 4:25 (dia tēn dikaiōsin hēmōn)?

“Porque aquele que está morto está justificado do pecado.” (Romanos 6:7);

“O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação.” (Romanos 4:25).

Em Romanos 2:13, torna-se evidente que o termo dikaioō, aplicado àqueles que praticam efetivamente a lei, tem como resultado ser justo diante de Deus.

O substantivo dikaiōsis é novamente utilizado em Romanos 5:18, e não se refere a uma justificação genérica, mas sim a uma “justificação relacionada à vida”. O termo grego zōēs, traduzido como “vida”, está no genitivo e pode ser descritivo ou qualificativo, indicando a natureza da justificação. A justificação de vida contrasta com a condenação à morte:

“Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação de vida.” (Romanos 5:18).

O substantivo ζωῆς, no caso genitivo, indica posse, vinculando o substantivo δικαίωσις ao substantivo ζωῆς, o que exclui a ideia de uma justificação forense no contexto de um processo legal. A condenação aconteceu no Éden, sem qualquer procedimento judicial formal. Adão pecou, e o mandamento era claro: no dia em que comesse o fruto do conhecimento do bem e do mal, certamente morreria. Não houve processo, somente a imposição da consequência, pois o mandamento dado no Éden carregava, em si mesmo, o poder de interromper a comunhão da criatura com o Criador.

O apóstolo Paulo cita o verso 4 do Salmo 51 em referência à “justificação” de Deus, e o uso do termo é semelhante ao encontrado em Lucas 7:29:

“De maneira nenhuma; sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso; como está escrito: Para que sejas justificado em tuas palavras, E venças quando fores julgado.” (Romanos 3:4).

Paulo poderia justificar Deus, ou torná-lo mais justo? Certamente não. Deus é santo e reto. Quando o homem sem Cristo reconhece a sua condição de pecador — vil, baixo, miserável —, evidencia que Deus é verdadeiro, ou seja, justo, nobre, superior e bom. Ao fazer essa declaração, Paulo remete-se a pelo menos três passagens bíblicas:

“Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista, para que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares.” (Salmos 51:4).

“Dizia na minha pressa: Todos os homens são mentirosos.” (Salmos 116:11).

“Ele é a Rocha, cuja obra é perfeita, porque todos os seus caminhos justos são; Deus é a verdade, e não há nele injustiça; justo e reto é.” (Deuteronômio 32:4).

Assim como Davi, Paulo “justifica” a Deus porque reconhece que Ele é plenamente justo e reto. Não seria possível justificar um Deus que não fosse absolutamente santo. O mesmo princípio se aplica a Deus ao justificar o ser humano.

Quando Paulo afirma que ninguém será justificado diante de Deus pelas obras da lei, ele destaca que a lei não tem poder para gerar um novo homem, como o evangelho tem (Romanos 3:20). A função da lei era apenas evidenciar o pecado dos israelitas, mostrando que eram tão pecadores quanto os gentios. A lei, portanto, “fechava a boca” dos judeus que se julgavam justos por serem descendentes de Abraão e guardarem os mandamentos (Romanos 3:19).

No capítulo 3, Paulo contrapõe a “lei” ao “evangelho”, destacando a condição de pecado que aflige tanto judeus quanto gentios, e mostrando que a redenção está exclusivamente em Cristo. Como o pecado entrou no mundo por meio de Adão e trouxe a morte a todos os homens, a sujeição à morte é o que torna todos pecadores, privados da glória de Deus (Romanos 3:23; cf. 5:12).

Assim como a morte alcançou a todos (judeus e gentios), a justificação pela graça de Deus, manifestada em Cristo, é oferecida gratuitamente a todos (judeus e gentios). É impossível ser justificado permanecendo ligado ao pecado e à morte; para ser justificado, é preciso estar conectado à justiça que vem pelo evangelho e à vida que vem por Cristo.

Sem a restauração da justiça e da vida, não há justificação. Onde não há justiça e vida, há pecado e morte — logo, o homem é culpado e passível de condenação. Por meio do evangelho, Deus revela sua justiça neste tempo presente, tornando-o um tempo oportuno para a salvação (Romanos 3:26).

Para que Deus permanecesse justo, a redenção foi concedida com base na propiciação pela fé no sangue de Cristo, pois, sem propiciação, não haveria justiça, e Deus não seria justo. Agora, Deus é o justificador daqueles que têm fé em Cristo Jesus, ou seja, daqueles que foram alcançados pela propiciação que há no Cristo crucificado. Deus é justo porque propôs a propiciação e é justificador somente daqueles que têm fé em Cristo Jesus.

Quando o apóstolo conclui que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei, ele afirma que Deus declara justo aquele cuja justiça foi restaurada por meio do evangelho — a “lei da fé” —, algo que a lei mosaica não pode realizar. Além de restaurar a justiça, o evangelho concede ao justo uma nova vida, conforme está escrito: “O justo viverá da fé”, ou seja, de toda palavra que procede da boca de Deus (Romanos 3:28).

Wayne relaciona Romanos 5:1 a uma “justificação forense”, sem perceber que o texto apresenta uma conclusão baseada nas ideias desenvolvidas no capítulo 4, cujo ponto culminante é Romanos 4:25:

“O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação. TENDO sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo;” (Romanos 4:25 e 5:1).

A base da justificação encontra-se no versículo 25 do capítulo 4: Cristo foi entregue por causa dos pecados dos homens, pois é necessário que os pecadores morram com Cristo para serem libertos do pecado. A entrega de Cristo representa a exigência da justiça divina, uma vez que aqueles que creem são conformados com Cristo em sua morte, sendo sepultados com Ele e, assim, “justificados” do pecado (Romanos 6:7).

Da mesma forma que uma mulher casada só é livre da lei do marido quando ele morre, considerando o pecado como um senhor de escravos, apenas a morte da “propriedade” desvincula o escravo de seu senhor. O termo “justificado”, em Romanos 6:7, por ser utilizado em um contexto que aborda a relação entre senhor e servo, no que diz respeito ao pecado e ao homem, assume o sentido de “liberto”, “livre”.

Como Jesus ressuscitou dentre os mortos, todos os que foram sepultados com Ele no batismo da sua morte também ressurgem com Ele como uma nova criatura. Essa nova criatura, criada por Deus em verdadeira justiça e santidade, corresponde ao sentido primário do verbo grego dikaioō: “tornar justo” ou “tornar conforme deve ser”. Por isso, Deus “declara justo” aquele que foi feito justo por Ele (Romanos 4:25).

“E vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade.” (Efésios 4:24).

A doutrina da justificação é simples: Deus é justo quando o velho homem é morto e sepultado com Cristo, para que o corpo do pecado seja desfeito. Deus é justificador quando traz à existência um novo homem, cujo corpo pertence à justiça, e o declara justo. Essa declaração jamais recairá sobre o velho homem, mas exclusivamente sobre o novo homem criado em Cristo Jesus.

Wayne, em vez de fundamentar suas declarações nas Escrituras, recorre a outro escritor que utiliza alegorias: John Murray:

“Regeneração é um ato de Deus em nós; justificação é um julgamento de Deus a nosso respeito. A distinção é como a diferença entre o ato de um cirurgião e o ato de um juiz. O cirurgião, ao remover um câncer interno, faz algo em nós. Isso não é o que um juiz faz — ele apresenta um veredito no que diz respeito à nossa condição judicial. Se somos inocentes, ele o declara de acordo com isso.” Idem.

A alegoria de Murray, contudo, apresenta um problema central: Deus não é um cirurgião ou um juiz nos moldes humanos, mas o Criador que opera a regeneração, que consiste na criação de uma nova criatura em verdadeira justiça e santidade. Embora seja onipotente, Deus age sempre de acordo com sua justiça e retidão. Deus não “remove um câncer” do pecador; Ele remove o corpo inteiro — um ato descrito como o “despojar” da carne do pecado, conhecido também como a circuncisão de Cristo.

Esse é um dos grandes equívocos relacionados ao pecado. O pecado não se compara a um câncer que pode ser extirpado. O homem nascido de Adão é pecador porque a morte o excluiu da comunhão com Deus, que é a fonte de vida. Se o pecado fosse uma doença, a única forma de livrar o homem de seus efeitos seria a morte. No entanto, como senhor, o pecado exerce domínio completo sobre o corpo do homem, e, por isso, somente com a morte — quando o corpo que pertencia ao pecado é desfeito — o homem se torna verdadeiramente livre.

“Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado.” (Romanos 6:6);

“No qual também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, a circuncisão de Cristo;” (Colossenses 2:11).

Nesse contexto, Deus, como justo juiz, impõe a penalidade ao pecador, que merece a morte, e aplica o veredicto na cruz de Cristo. Ao mesmo tempo, Ele declara justo o novo ser que vem à existência como resultado da regeneração.

A exposição acima responde às seguintes indagações de Wayne:

“Surgem, todavia, algumas questões: Como Deus pode efetivamente declarar que não temos pena alguma a pagar pelo pecado e que temos os méritos da perfeita justiça, se na verdade somos pecadores culpados? Como Deus pode nos declarar não culpados, mas justos, quando na verdade somos injustos? Essas questões nos conduzem ao próximo tópico.” Idem.

Já demonstramos que, ao ser sepultado no batismo na morte de Cristo, o corpo do pecado é desfeito, rompendo o vínculo com o pecado. Ao gerar uma nova criatura, Deus, a partir da mesma “massa”, cria vasos para honra. O novo homem, com seu corpo agora pertencente à justiça, não é mais pecador e, por isso, está isento de culpa e de condenação.

Também já demonstramos que os homens gerados em Adão são ímpios, culpados e injustos, mas aqueles que nascem de novo em Cristo — isto é, que são regenerados — são justos, e Deus os declara justos.

As declarações de Wayne, ainda que alinhadas ao protestantismo em oposição ao catolicismo, acabam contrariando o evangelho, pois negam-lhe a plena eficácia.

“O protestantismo desde o tempo de Martinho Lutero tem insistido que a justificação não nos transforma interiormente e não é uma declaração baseada em alguma bondade que tenhamos por nós mesmos. Se a justificação nos mudasse interiormente e então nos declarasse justos com base em quão bons nós realmente somos, então (1) nunca poderíamos ser declarados perfeitamente justos nesta vida, porque sempre há pecado que permanece em nossa vida, e (2) não haveria provisão alguma para o perdão dos pecados passados (cometidos antes que fomos transformados interiormente), e, portanto, nunca teríamos certeza de que estamos em uma condição acertada e justa diante de Deus e em ordem com ele.”  Idem.

Se, após sermos justificados em Cristo Jesus, ainda permanecesse “pecado em nós”, teríamos que admitir que Cristo seria ministro do pecado, que pertencemos ao diabo e que não estamos em comunhão com o Pai e o Filho, pois neles não há trevas.

“Tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te.” (2 Timóteo 3:5).

 

A Leitura Enviesada de Romanos 8:30

Wayne também adota a sequência dos eventos descrita em Romanos 8:30, conhecida como a “cadeia dourada da redenção”, que, na verdade, inverte a ordem lógica e teológica dos atos salvíficos de Deus.

Após abordar a expectativa da criação quanto à manifestação dos filhos de Deus — ocasião em que ocorrerá a redenção do corpo dos salvos, que receberão um corpo glorioso semelhante ao corpo do Cristo ressurreto —, Paulo enfatiza que aqueles que amam a Deus são chamados segundo o seu propósito:

“Sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito.” (Romanos 8:28).

Que propósito é esse? O propósito que Deus estabeleceu em si mesmo na pessoa de Cristo: exaltá-lo à posição de preeminência em todas as coisas. Esse chamado e esse propósito têm como objetivo central o próprio Criador e não apenas a redenção de suas criaturas, a qual é operada pelo chamado do evangelho — distinto do chamado ao propósito eterno.

A mensagem do evangelho anuncia a necessidade de amar a Deus obedecendo ao seu mandamento para que o homem alcance a salvação. Após ser regenerado, essa nova criatura é chamada ao propósito eterno em Cristo (Colossenses 1:18; Efésios 1:9-10; 3:11).

Primeiro, Deus salva o homem da condenação do pecado, que o torna inadequado para o seu propósito. Após ser justificado pelo lavar regenerador do evangelho, esse homem é chamado com santa vocação ao propósito eterno estabelecido em Cristo (Tito 3:5; Efésios 1:13; 2 Timóteo 1:9).

O versículo 29 de Romanos 8 detalha a essência do propósito que Deus estabeleceu em Cristo: a primogenitura entre muitos irmãos. Cristo, como primogênito entre muitos irmãos, tem a preeminência acima de todo principado e potestade, sendo a cabeça da igreja, enquanto os salvos são membros do seu corpo, e todas as demais coisas estão sujeitas debaixo dos seus pés (Efésios 1:20-23).

Para que Cristo seja o primogênito entre muitos irmãos, Deus predestinou os salvos, por meio do evangelho, a serem conformes à expressa imagem corporal de Seu Filho. Da mesma forma que Cristo, ao nascer de mulher, estava predestinado a portar a imagem do homem terreno, Adão, os nascidos de novo — pertencentes à geração eleita — estão predestinados a receber a imagem e semelhança do homem espiritual.

É importante notar que o versículo 29 de Romanos 8 não trata de salvação, mas da imagem que os salvos terão na redenção do corpo, quando Cristo será o primogênito entre muitos irmãos. Paulo não está falando de uma imagem moral, mas sim da manifestação gloriosa dos salvos com Cristo:

“Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória.” (Colossenses 3:4).

Se o verbo grego προορίζω (proorízō), traduzido como “predestinar” no versículo 29, refere-se à concessão da imagem e semelhança do homem celestial aos salvos, esse é o mesmo sentido do termo no versículo 30. Isso exclui a ideia de que “predestinar” se refere a uma decisão divina antecipada quanto ao destino eterno dos eleitos.

É fundamental lembrar que Deus propôs, ao criar o homem terreno no Éden, que ele fosse conforme a sua imagem e semelhança (Gênesis 1:26). No entanto, quando Jesus, em manifestação teofânica, formou o homem do pó da terra, a imagem concedida a Adão era uma figura daquela que Ele teria ao vir ao mundo (Romanos 5:14). Isso porque a expressa imagem do Deus invisível só é alcançada pelo homem terreno se ele estiver em Cristo, pois na redenção do corpo se tornará semelhante ao homem celestial.

As considerações em torno do verbo grego προορίζω nos levam a questionar por que o verbo δοξάζω, traduzido por “glorificar”, que, nos textos dos apóstolos, usualmente significa “atribuir glória” ou “dar peso reconhecendo substância e valor real” — isto é, “atribuir excelência”, “destacar-se”, “ser preeminente”, “honrar” e “venerar” —, é interpretado em Romanos 8:30 como “redenção do corpo”.

Por que correlacionam o verbo προορίζω à “redenção do corpo” e não ao verbo συνδοξάζω, traduzido por “glorificar juntos”, que remete à ideia de “ser exaltado à mesma glória para a qual Cristo foi ressuscitado”, conforme Romanos 8:17?

“E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.”  (Romanos 8:17).

O “padecer com Cristo” refere-se ao evento de ser sepultado com Ele pelo batismo na Sua morte, enquanto o “ser glorificado” está relacionado ao fato de os salvos andarem em novidade de vida por terem ressuscitado juntamente com Cristo (Romanos 6:4). A “glorificação” mencionada em Romanos 8:30 refere-se ao fato de que, em Cristo, os salvos já ressurgiram com Ele dentre os mortos e estão assentados com Cristo nas regiões celestiais (Colossenses 3:1):

“E nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus;” (Efésios 2:6).

A glorificação é um evento que ocorre imediatamente após o arrependimento (μετανοέω) e a conversão, promovidos pela mensagem do evangelho. A mudança de entendimento — que é o arrependimento — ocorre em virtude da pregação da fé, resultando na conversão.

Aquele que se converte a Cristo, ou seja, crê que Deus ressuscitou a Cristo dentre os mortos e confessa que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, se conforma com Cristo em Sua morte, sendo sepultado com Ele pelo batismo na morte e, logo em seguida, é glorificado, isto é, ressuscita juntamente com Cristo (2 Coríntios 5:14-15).

Essa pessoa “glorificada” é uma nova criatura, gerada segundo Deus em verdadeira justiça e santidade, participante da natureza divina e, por isso, declarada justa (justificada). Por ter sido justificada, essa pessoa, estando em Cristo, é chamada ao propósito eterno que Deus estabeleceu em si mesmo na pessoa de Cristo: ser um dos irmãos para que Cristo seja primogênito entre muitos irmãos.

A nova geração de homens espirituais em Cristo é a geração eleita para ser santa e irrepreensível diante de Deus, predestinada a ser conforme a expressa imagem e semelhança do Cristo ressurreto. Este, ao ressurgir dentre os mortos e ser glorificado junto ao Pai com a glória que tinha antes de haver mundo, tornou-se o resplendor da glória de Deus e a expressa imagem do Deus invisível:

“O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas;” (Hebreus 1:3).

A leitura enviesada de Wayne e de muitos teólogos se deve a não se atentarem ao fato de que o capítulo 8 de Romanos trata do proposito eterno de Deus, que para ser levado a efeito precisa de homens celestiais em tudo semelhantes a Cristo, especialmente com relação a terem um corpo glorificado. A conclusão dessa obra criativa faz com que “toda a criação geme e está juntamente com dores de parto” em razão da gloria que será revelada nos salvos em Cristo (Romanos 8:18-19 e 22).

Por que Paulo apresenta os eventos após a ressurreição com Cristo em ordem inversa? Isso se deve ao seu costume de iniciar suas cartas destacando a condição atual dos cristãos para depois relembrá-los da antiga condição. Ao escrever aos cristãos de Éfeso, ele se dirige aos “santos e fiéis em Cristo” (Efésios 1:1). Em seguida, ele bendiz a Deus pelas bênçãos concedidas: eleição, predestinação, redenção, etc. (Efésios 1:4-7).

Essas bênçãos são concedidas àqueles que estão em Cristo, ou seja, à nova criatura, definida em 2 Coríntios 5:17 como sendo criada em verdadeira justiça e santidade e, portanto, declarada justa. Essa condição de justiça é o resultado da glorificação, que consiste no lavar regenerador promovido pela palavra de Deus.

Como Paulo estava destacando a glória futura a ser revelada nos salvos — isto é, o fato de serem conforme a imagem de Cristo —, ele inicia a descrição do processo de salvação e da vocação ao propósito eterno mencionando a predestinação. Isso porque os predestinados a terem a mesma imagem de Cristo foram chamados a esse propósito (Romanos 8:28). No entanto, os chamados ao propósito são aqueles que amam a Deus, ou seja, que obedecem ao mandamento contido no evangelho, e que por isso recebem poder de serem feitos filhos de Deus (João 14:21).

Os chamados são aqueles que foram declarados justos, e somente quem crê que Jesus Cristo é o Filho de Deus alcança a justiça que vem do alto — a justiça que é pela fé — para receber tal declaração, própria daqueles que ressuscitam com Cristo como uma nova criatura.

 

Equívocos rebatidos com Equívocos

A “nova perspectiva de Paulo”, tese defendida por N. T. Wright, é claramente equivocada, mas a concepção tradicional defendida por Wayne também apresenta falhas.

A justificação divina não se trata de um veredito em que Deus atesta quem pertence ao seu povo, tampouco envolve uma justificação futura baseada em eventos cotidianos ou uma antecipação de um julgamento final.

A crítica de Wayne a Wright é válida, especialmente ao refutar a ideia de que a “justificação pela fé” se refere apenas a uma identificação como membro da aliança. Contudo, Wright levanta um ponto relevante ao criticar a ideia tradicional de justiça imputada, que sugere que Deus, como juiz, transfere a justiça de Cristo diretamente aos pecadores como se estivesse em um tribunal humano.

A crítica de Wright encontra respaldo nas Escrituras, pois a pena imposta não pode ser transferida a outra pessoa de forma arbitrária, conforme ensinam os profetas:

“A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai levará a iniquidade do filho. A justiça do justo ficará sobre ele e a impiedade do ímpio cairá sobre ele.”  (Ezequiel 18:20);

“Mas cada um morrerá pela sua iniquidade; de todo o homem que comer as uvas verdes os dentes se embotarão.” (Jeremias 31:30).

As críticas de ambos os autores são pertinentes em alguns aspectos; entretanto, suas interpretações doutrinárias são equivocadas. Tanto Wayne quanto Wright propõem teses que, apesar de confrontarem a perspectiva católica tradicional da justificação, não tornam suas posições automaticamente corretas.

A justificação decorre da remissão dos pecados e a santificação decorre da renovação do homem interior, porém, a doutrina católica equivoca-se ao entender que a causa instrumental da justificação é o sacramento do batismo, ou que a fé confessional se refere ao ensinamento da Igreja católica.

A salvação decorre da fé confessional, isto é, da aceitação das verdades divinas reveladas nas Escrituras (João 7:38). No entanto, se essa fé confessional se refere a dogmas de uma denominação, não se trata da fé salvadora. Da mesma forma, o conceito de fé fiducial de Martinho Lutero — a ideia de que a fé é um ato de confiança pura, sem a participação da inteligência — também não corresponde à fé salvadora. A inteligência é fundamental para a compreensão, e a compreensão é essencial para a fé:

“Ouvindo alguém a palavra do reino, e não a entendendo, vem o maligno, e arrebata o que foi semeado no seu coração; este é o que foi semeado ao pé do caminho.” (Mateus 13:19).

Ao criticar Wright, Wayne apresenta elementos que considera essenciais à justificação: uma declaração jurídica ou moral de que o cristão é justo. Ele deixa de lado a alegoria do juiz e do médico para apresentar a metáfora de um economista:

“Quando dizemos que Deus atribui a justiça de Cristo a nós, queremos dizer que Deus considera que a justiça de Cristo de fato agora nos pertence. Ele a “credita” em nossa conta.” Idem.

Essas alegorias e a ideia de atribuir justiça ou culpa decorrem de uma leitura equivocada das Escrituras. Por exemplo, Wayne afirma no subtítulo “Deus pode declarar-nos justos porque atribui a justiça de Cristo a nós” que:

“… é a terceira vez no estudo das Escrituras que deparamos com a ideia de atribuir culpa oo justiça a outra pessoa. Primeiro, quando Adão pecou, sua culpa foi atribuída a nós; Deus Pai a considerou pertencente a nós…” (Idem).

A interpretação de Wayne sobre o evento da ofensa de Adão no Éden é equivocada, pois não se trata de atribuição direta de culpa aos homens pela ofensa de Adão, mas sim da transmissão das consequências dessa ofensa a todos os seus descendentes. Por meio de Adão, o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte; e essa morte passou a todos os homens (1 Coríntios 15:21-22). Adão teve sua comunhão com Deus rompida, e todos os seus descendentes herdaram essa condição ao nascerem (Romanos 5:18).

Em outras palavras, a semente de Adão tornou-se corruptível, e todos os seus descendentes se tornaram “árvores” não plantadas por Deus, passíveis de serem cortadas e lançadas ao fogo, pois são más e produzem frutos maus. Deus não atribui culpa aos homens como se suas ações determinassem sua alienação de Deus, mas, assim como o juízo veio por uma única ofensa, esse mesmo juízo alcançou todos os homens para condenação (Romanos 5:12, 16 e 18).

A morte de Cristo representa uma substituição de ato: obediência em lugar de desobediência. Adão, como cabeça da geração de homens terrenos, desobedeceu e trouxe condenação sobre todos. Cristo, o último Adão, como cabeça dos homens celestiais, obedeceu e trouxe a graça a todos os homens.

Note o uso do pronome “todos” e do adjetivo “muitos”. A condenação alcançou a todos, e a graça foi oferecida a todos. A desobediência de Adão fez muitos pecadores, com exceção de Cristo; e pela obediência de Cristo, muitos serão feitos justos, ainda que a graça tenha vindo sobre todos.

A segunda consideração de Wayne é apresentada nos seguintes termos:

“Segundo, quando Cristo sofreu e morreu pelos nossos pecados, nosso pecado foi atribuído a Cristo; Deus o considerou pertencente a ele, que então pagou a pena do pecado” Idem.

Esse posicionamento desconsidera os diversos papéis desempenhados por Cristo: Senhor, Cristo, servo, cordeiro, homem, filho, rei, sumo sacerdote e mediador.

Como servo, Cristo precisou ser obediente até a morte, e morte de cruz — algo que apenas Ele poderia realizar por ser gerado de Deus e, portanto, livre do pecado. Como cordeiro, a morte física de Cristo é substitutiva, pois, se cada pessoa tivesse que morrer em obediência a Deus, mesmo que conseguisse obedecer, não seria salva, visto que nasceu escrava do pecado. Como homem, Cristo teve que ser tentado em tudo e sujeito às mesmas fraquezas, para poder compadecer-se dos pecadores (Hebreus 4:15; 5:2).

A primeira afirmação de Wayne precisa ser reformulada, pois Cristo sofreu e morreu em obediência ao Pai como servo, o que é diferente de dizer que Ele morreu pelos nossos pecados no sentido de ter absorvido a culpa humana. Por ter sido morto, sua carne abriu um novo e vivo caminho para Deus, e seu sangue selou um novo pacto, uma nova aliança (Hebreus 10:20; 12:24).

O fato de Cristo “levar sobre si os pecados da humanidade” não significa que Deus atribuiu a Ele os pecados dos homens. Dizer que Cristo levou os nossos pecados significa que Ele se tornou a propiciação pelos pecados (1 João 2:2; 4:10). Cristo viveu e morreu sem pecado, e, ao afirmar que Ele “levou em seu corpo os nossos pecados”, refere-se ao fato de que Ele sofreu a consequência funesta do pecado — a morte física (1 Pedro 2:24).

A expressão “pagou a pena pelo pecado” não reflete corretamente a obra de Cristo, pois, pelo seu sacrifício, Ele veio aniquilar o pecado. O pecado é um senhor que não põe seus servos à venda; apenas a morte pode libertar o pecador de seu domínio. É justamente o medo da morte que sujeita os homens à servidão, mas Cristo se apresentou como uma saída (Hebreus 2:15; Marcos 8:35; João 12:25; Mateus 16:25; Lucas 17:33).

“De outra maneira, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação do mundo. Mas agora na consumação dos séculos uma vez se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo.” (Hebreus 9:26).

O terceiro ponto destacado por Wayne — “Agora, na doutrina da justificação, vemos a atribuição pela terceira vez. A justiça de Cristo é atribuída a nós, e, portanto, Deus a considera pertencente a nós.” Idem— contraria as Escrituras, que afirmam que é no evangelho que se revela a justiça de Deus.

Como se revela a justiça de Deus no evangelho? Pela verdade de que o Verbo se fez carne e, na condição de Filho, humilhou-se, assumindo a forma de servo e sendo obediente ao Pai em tudo, até a morte, e morte de cruz. Como Cristo morreu sem pecado, a morte não pôde contê-lo, de modo que o poder de Deus se manifestou ao ressuscitá-lo dentre os mortos (Atos 2:24; Efésios 1:19-20).

O evangelho é o mandamento de Deus dirigido a todos os homens. Qualquer pessoa que obedeça ao evangelho torna-se participante da carne e do sangue de Cristo, o que significa trilhar um novo e vivo caminho, sustentado pelo pacto da nova aliança. Ao participar da carne e do sangue de Cristo, o homem se conforma com Ele em sua morte, sendo sepultado com Cristo pelo batismo na sua morte, tornando-se livre do pecado.

Ao morrer com Cristo, o pecador recebe o salário do pecado que lhe era devido: a morte. No entanto, como essa morte ocorre com Cristo, o corpo do pecado é destruído, e o vínculo com o pecado é rompido. Como está determinado que “a alma que pecar, essa morrerá“, o pecador precisa ter um encontro com Cristo na morte para que a justiça de Deus seja satisfeita e Ele permaneça justo.

Observe que o homem deve morrer com Cristo, tornando-se participante de sua carne e sangue, ou seja, isso ocorre ao obedecer ao evangelho. Essa morte não pode ser substituída, e a obediência à mensagem de Cristo conduz a essa morte, que rompe, assim, o vínculo com o pecado.

Como Cristo é o Cordeiro de Deus e morreu fisicamente, sua morte, nesse aspecto, é substitutiva. Portanto, para ser liberto do pecado, o homem não precisa morrer fisicamente.

Essa questão está ligada ao evento do Éden, pois Adão estava vivo para Deus, mas, ao desobedecer, permaneceu vivo fisicamente, porém espiritualmente morto para Deus. Cristo, assim como Adão, era sem pecado e, portanto, vivo para Deus. No entanto, Cristo precisou obedecer assim como era dever de Adão; porém, no caso de Cristo, essa obediência resultou em sua morte física, tornando-se substitutiva.

Todos que ouvem o evangelho devem, assim como Cristo, obedecer, pois é por meio da obediência ao mandamento de Deus em Cristo que a justiça de Deus é imputada. A obediência é a prática da confiança em Deus, assim como fez Abraão. Crer em Cristo significa crer no testemunho que Deus deu acerca de Seu Filho.

Deus não faz acepção de pessoas: da mesma forma que Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado por justiça, também é imputada por justiça àquele que crê em Cristo, pois essa é a ordem de Deus. Assim como Jesus confiou no Pai ao entregar-se à morte por mãos de pecadores e, por essa confiança, foi ressuscitado dentre os mortos, todos que confiam em Cristo morrem com Ele e recebem de Deus o poder de serem feitos filhos de Deus (João 1:12-13).

Deus reúne duas características essenciais: justo e justificador. Para que não haja contradição entre ambas, a relação com o pecado precisa ser interrompida pela morte do pecador e, em seu lugar, ser gerada uma nova criatura em comunhão com Ele. Ao não considerar a necessidade de o pecador ser batizado na morte de Cristo e passar pelo lavar regenerador da nova criação em Cristo, Wayne se depara com dois aspectos distintos na doutrina da justificação.

O primeiro aspecto, segundo Wayne, consiste na declaração de Deus de que o crente não tem mais dívida a pagar pelo pecado. Ele argumenta, contudo, que essa condição de ter as dívidas perdoadas não é suficiente, pois deixaria o cristão em um estado de neutralidade moral. Para estar em comunhão com Deus, seria necessária uma justiça positiva. Neste ponto, entra o segundo aspecto defendido por Wayne: a justiça de Cristo “creditada” ao crente como um saldo positivo diante de Deus.

Não há um “crédito de justiça”, mas sim uma nova criação em verdadeira justiça e santidade. Aquele que está em Cristo, sendo uma nova criatura, é declarado justo por Deus. A questão moral não é abordada, pois o perdão dos pecados é uma linguagem evangelística utilizada para descrever o resultado da justificação e suas implicações teológicas, como a morte para o pecado e a ressurreição com Cristo.

Diante dessa exposição, fica o alerta: considerar a justificação como um ato forense — em que a palavra “forense” significa “relacionada a um processo legal” — leva a inúmeros equívocos, pois a justificação está vinculada à nova criação em Cristo, enquanto a condenação está ligada à primeira criação, resultante da ofensa de um só homem, Adão. Neste exato momento, muitos ímpios estão entrando no mundo pelo nascimento natural. Contudo, simultaneamente, pela graça de Deus manifestada em Cristo, muitos homens estão sendo declarados justos por terem sido gerados de novo através da semente incorruptível: a palavra de Deus.

A palavra de Deus é viva e eficaz, e, quando Deus declara um homem justo, é porque ele, de fato, é justo, pois foi gerado por Deus nessa condição.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

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