Eleição e Predestinação

Só é possível crer depois de chamado e habilitado por Deus?

Através do corpo de Cristo que foi entregue na morte, o homem percorre um novo e vivo caminho ( Hb 10:20 ), pois é morto e sepultado, para depois ressurgir um novo homem segundo a imagem daquele que O criou. Como os que ressurgem com Cristo despojaram o seu corpo através da circuncisão de Cristo (morte) e ressurgiram, o pecado já não tem domínio sobre o novo homem, assim como a morte não tem poder sobre Cristo ( Rm 6:9 ; Cl 3:11 ).


Só é possível crer depois de chamado e habilitado por Deus?

Questões históricas

A bandeira da ‘depravação total’ e da necessidade da ‘graça preveniente’ erguida pelos reformadores começou a tremular pelos idos do século III, com Santo Agostinho (354-430 d.C), o idealizador da chamada ‘graça preveniente’, ou seja, uma ‘graça’ que precede a decisão do homem, que permite ao homem exercer o seu livre arbítrio para aceitar ou rejeitar a oferta de salvação.

Jaco Armínius e Jonh Wesley afirmavam a depravação total e, acreditavam que somente a graça preveniente permitiria que os homens escolhessem a salvação.

“Concernente a graça e livre-arbítrio, isto é o que eu ensino conforme as Escrituras e o consentimento ortodoxo: o livre-arbítrio é incapaz de iniciar ou aperfeiçoar alguma bondade verdadeira e espiritual, sem a graça… Essa graça [prœvenit] vem antes, acompanha, e segue; anima, assiste, opera em nossa vontade, e coopera para que a nossa vontade não torne-se vã” Jaco Armínius.

As propostas entorno da graça não param por aí, ainda acrescentam não poucos adjetivos a ela, sendo que, além da graça preventiva ou precedente, surgiu também a problemática de que, se a graça poderia ser resistida (Agostinho) ou se ela somente permite, mas não assegura, a aceitação da salvação (arminianismo).

A doutrina calvinista, por sua vez, também afirma a depravação total, de que o homem não regenerado é absolutamente escravo do pecado, porém sendo totalmente incapaz de exercer sua própria vontade livremente para aceitar a salvação. Para ser salvo, por estar morto, o homem primeiro precisa ser regenerado para que possa crer em Cristo.

A depravação total, segundo a abordagem calvinista é descrita como total incapacidade, ou seja, significa que o homem é incapaz de fazer o bem, de entender o que é bom e até mesmo de desejar o que é bom. Afirma que a vontade do pecador é livre para escolher o que acha melhor, mas o que ele naturalmente pensa como melhor é não buscar ou escolher Deus. Que apesar da vontade ser livre para escolher a oferta de salvação, contudo, ela está presa pelo pecado, o que afeta seu entendimento e visão.

“O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é incapaz de, pelo seu próprio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso” Confissão de fé de Westminster.

Como o homem é totalmente incapaz de compreender e decidir por Cristo, surgiram outras questões agregadas, como:

a) Eleição incondicional – Deus soberanamente marcou alguns indivíduos para serem salvos;

b) Chamada eficaz ou graça irresistível – que o evangelho é um chamado geral, que invariavelmente os homens irão resistir por estarem mortos, mas que os marcados para serem salvos são chamados de uma forma diferenciada, especial (Graça Irresistível ou Vocação Eficaz), em adição ao chamado geral.

c) Expiação limitada – de que a obra redentora de Cristo é especifica para pecadores específicos, assegurando salvação para estes indivíduos e a ninguém mais.

Ambos os posicionamentos, calvinistas e arminianistas, atribuem vários adjetivos à graça de Deus e a condição do homem alienado de Deus. Tais adjetivos foram acrescentados em decorrência do posicionamento doutrinário que adotaram com relação à eleição e a predestinação.

Para afirmar que somente alguns indivíduos foram escolhidos e predestinados a serem salvos, fez-se necessário introduzir os ‘novos’ conceitos, o da depravação total (arminianismo) e o da inabilidade total (calvinismo), pois somente assim justifica-se a eleição e predestinação de alguns indivíduos para serem salvos.

De igual modo fez-se necessário adjetivar a graça de Deus, como sendo irresistível, limitada (calvinismo) e preveniente (arminianismo), pois somente desta forma justifica-se a ideia da eleição incondicional calcada na soberania divina e a eleição pela preciencia, o que justificaria a ideia da graça resistível.

Tais posicionamentos teológicos despertam alguns questionamentos quando comparados com as Escrituras e um deles é: Por que o homem pôde querer pecar enquanto estava em Deus e não pode querer se reconciliar com Ele por estar no pecado?

 

Questões lógicas e argumentativas

“Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor” ( Rm 6:11 )

Antes de nos lançar as argumentações, faço minha as palavras do apóstolo Paulo: “Falo como homem” ( Gl 3:15 ; Rm 3:5 e 6:19 ) devido as considerações que serão tecidas com o objetivo de chegar a uma resposta.

Em primeiro lugar observe a seguinte super adjetivação do conceito de depravação total exposto na Confissão de fé de Westminster “… perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual…”. O homem perdeu ‘todo’ poder de vontade, ou perdeu ‘totalmente’ o poder de vontade?

Ao descrever o homem sob o domínio do pecado, o calvinismo descreve tal condição como sendo inabilidade total e, o arminianismo, em menor grau, de depravação total.

Descrevem a condição do homem natural como morto, sendo incapaz de ouvir, ver e entender. O homem morto é descrito como cego e surdo para as coisas espirituais. O homem natural não é descrito somente como incapaz de operar a sua própria salvação por meio de suas obras, antes é descrito como incapaz de reagir à mensagem do evangelho, ou seja, de crer na mensagem se antes Deus não regenerá-lo.

A condição do homem natural como ‘morto’ é descrito em termos gerais como:

  • Inabilidade total;
  • Incapacidade de escolher, de fazer, de entender e até mesmo de desejar o que é bom, ou seja, é incapaz de escolher o que é contrário à sua natureza;
  • Vontade livre para escolher a oferta de salvação, porém, como está presa pelo pecado, afeta o seu entendimento e visão;
  • É o mesmo que estar cego e surdo para as coisas de Deus;
  • Incapaz de reagir ao evangelho sem antes ser regenerado.

Ora, a Bíblia afirma que o homem natural está morto para Deus e, concomitantemente, vivo para o pecado. Na condição de morto para Deus o homem natural é servo do pecado, ou seja, livre da justiça e escravo do pecado ( Rm 6:20 ).

Com relação ao homem espiritual, a Bíblia afirma que ele está vivo para Deus e, concomitantemente, morto para o pecado ( Rm 6:11 ). Na condição de vivo para Deus, o homem espiritual é servo da justiça, ou seja, livre do pecado e escravo da justiça ( Rm 6:18 ).

Portanto, considerando que o homem natural, por estar morto para Deus, não pode reagir à oferta de salvação que é proposto no evangelho, da mesma forma, Adão antes da queda, por estar morto para o pecado jamais poderia ter visto, ouvido e se convencido da oferta do engano que o levou a queda.

Utilizando a mesma terminologia reformada, de que o chamado geral (evangelho) é invariavelmente resistível aos homens naturais por estarem mortos, cegos e surdos, por estar morto para o pecado Adão jamais poderia ter aquiescido a oferta da ofensa.

É inegável que Adão originalmente estava vivo para Deus e morto para o pecado, portanto, ele não estava sujeito a qualquer compulsão natural para escolher o mal, ou seja, ele estava vivo e suscetível somente às coisas de Deus. Consequentemente, ele estava morto para o pecado, ou seja, seguindo a lógica e a super adjetivação calvinista, Adão nem mesmo teria poder de querer o mal pecaminoso, considerando que ele estava de posse de todo poder de vontade quanto à qualquer bem espiritual “O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual…” Confissão de fé de Westminster.

Se o conceito de morte estabelecido pelo calvinismo significa:

  • Inabilidade total do morto no pecado para aceitar a graça segue-se que, vivo na justiça implica em inabilidade para aceitar o pecado;
  • Incapacidade de escolher o que é contrário à sua natureza (o homem natural só escolhe o mal porque a natureza é má), segue-se que Adão só poderia escolher o bem porque sua natureza era boa;
  • Vontade livre, mas presa à sua própria natureza (o homem natural é livre com a sua vontade presa pelo pecado), segue-se que, como Adão era livre, obrigatoriamente a sua vontade estava presa pela justiça);
  • Ser servo do pecado é ter o seu entendimento afetado e preso ao seu senhor, segue-se que Adão, como servo da justiça, também deveria ter a sua visão orientada por esta, e;
  • Que morto no pecado é ser cego e surdo para justiça, o vivo na justiça obrigatoriamente deve ser cego e surdo para o pecado.

O apóstolo Paulo rogou aos cristãos que compreendessem que efetivamente estavam mortos para o pecado e vivos para Deus “Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor” ( Rm 6:11 ).

Neste mesmo diapasão, devemos considerar que Adão antes da queda estava efetivamente morto para o pecado e vivo para Deus.

Como ele de fato estava ‘morto’ para o pecado, visto que foi criado livre do pecado sem qualquer compulsão natural para escolher o mal, considerando os mesmos princípios que informam as doutrinas, calvinista e arminianista, que apresentam a ideia da ‘depravação total’, conclui-se que Adão era ‘santo total’.

Nesta mesma linha de argumentação, de que o homem morto para Deus e vivo para o pecado significa inabilidade total para justiça, segue-se que Adão, por estar vivo para Deus e morto para o pecado, possuía inabilidade total para o pecado.

Deste modo, conclui-se que Adão deveria ser surdo e cego para o pecado. Quando lhe foi apresentado a possibilidade de ofender a Deus desobedecendo a sua palavra, ele não podia aquiesce-la por impossibilidade decorrente do estado de morte para o pecado, antes, deveria escolher sempre o bem, segundo a sua natureza boa.

Apesar de possuir a vontade livre, para escolher a oferta de ofensa, contudo, a vontade de Adão estaria presa pela justiça, ou seja, a justiça afetaria seu entendimento e visão para não aceitar a ofensa. Adão, neste estado de graça (morto para o pecado), não teria totalmente qualquer poder de vontade quanto ao mal que acompanhava a ofensa.

Seguindo o princípio proposto na Confissão de fé de Westminster, Adão seria inteiramente adverso a esse mal e vivo na justiça, sendo incapaz de, pelo seu próprio poder, desvirtuar-se ou mesmo preparar-se para a ofensa, isto porque originalmente Adão estava morto para o pecado.

 

A ofensa foi irresistível?

Embora saibamos que o dom gratuito não é como a ofensa, pois um só ofendeu e muitos morreram, agora, através do dom a graça abundou sobre muitos ( Rm 5:15). A diferença entre o dom e a ofensa está em que, por uma ofensa veio o juízo para condenação de muitos, e o dom veio de muitas ofensas para a justificação ( Rm 5:16 ).

Porém, há um equilíbrio: por uma ofensa a morte reinou, agora muitos reinarão em vida pela justiça ( Rm 5:17 ). Um só ofendeu e trouxe o juízo sobre todos os homens, condenando-os, agora, um só obedeceu trazendo graça sobre todos os homens para salvação (aquele que crer) ( Rm 5:18 ). O desequilíbrio da desobediência de um foi desfeito pela obediência de um ( Rm 5:19 ).

Em decorrência deste equilíbrio temos a porta e o caminho largo em contraste com a porta e o caminho estreito. Temos o nascimento natural em contraste com o novo nascimento. Temos a semente corruptível com a semente incorruptível. Temos o primeiro Adão e o último Adão, etc.

De modo que, como a morte veio por Adão, a ressurreição dos mortos vem pelo último Adão, visto que todos morreram em Adão e todos serão vivificados em Cristo ( 1Co 15:21 -22). Equilíbrio total, demonstrando a justiça e equidade de Deus.

Porém, como a doutrina calvinista demonstra que, por o homem estar morto no pecado não responderá ao chamado geral, antes precisa da ‘graça irresistível’ ou, ‘da vocação eficaz’, segue-se que, como Adão estava morto para o pecado e vivo para Deus a ofensa também deveria ser irresistível.

Se o homem morto no pecado precisa da ação soberana do Espírito Santo para sobrepujar toda resistência, rebelião do coração, tornando a sua influencia irresistível, como o diz o calvinismo, Adão, por estar morto para o pecado usaria da sua liberdade para resistir o pecado e, necessariamente precisaria de um ser mais poderoso que o Espírito de Deus que tornasse a ofensa irresistível (Falo como homem).

É assente entre os calvinistas que, sem a graça irresistível o homem sempre utilizaria a sua liberdade para resistir a Deus, sendo incapaz de submeter-se a Deus. Seguindo este mesmo princípio, por Adão estar ‘completamente’ morto para o pecado, invariavelmente teria que utilizar a sua liberdade para resistir a ofensa, isto porque, é inegável que originalmente a vontade de Adão estava livre do domínio do pecado.

Se a graça irresistível é apresentada somente aos eleitos e predestinados, que os regenera, arrancando-os da morte para que possam abraçar a fé, quem arrancou Adão da Vida para que ele pudesse abraçar a ofensa?

Segundo esta doutrina, Deus é soberano e pode sobrepujar qualquer resistência humana, mais especificamente a resistência humana à salvação e, justificam tal concepção em outro ponto do calvinismo: se a doutrina da depravação humana é verdadeira, o homem nunca teria fé a não ser que a isso fosse coagido, ou seja, para eles o Espírito Santo acaba convencendo e infundindo a fé salvadora no crente.

Vejamos trecho da Confissão de Fé de Westminster:

“Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta da sua natureza. Ref. Tiago 1:14; Deut. 30:19; João 5:40; Mat. 17:12; At.7:51; Tiago 4:7. O homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder.Ref. Ec. 7:29; Col. 3: 10; Gen. 1:26 e 2:16-17 e 3:6. O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é incapaz de, pelo seu próprio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso. Ref. Rom. 5:6 e 8:7-8; João 15:5; Rom. 3:9-10, 12, 23; Ef.2:1, 5; Col. 2:13; João 6:44, 65; I Cor. 2:14; Tito 3:3-5” (Confissão de Fé de Westminster, 1999, p.23).

O que estabelece a diferença da morte para o pecado de Adão antes da queda e da morte no pecado de Adão após a queda? O conceito de morte é variável? Antes da queda o homem morto para o pecado poderia decair da sua liberdade, agora, morto para Deus não tem o mesmo poder e sorte?

O que é mais estranho nesta concepção, é que o pecado conseguiu arrebatar alguém que estava morto para ele e, com o seguinte gravame: desconsidera que o Senhor de Adão é onipotente e soberano. Embora Adão estivesse morto para o pecado, a ofensa conseguiu arrebatá-lo de Deus e, sem a devida resistência de Adão que estava de pleno poder da sua vontade e sob influência da justiça.

Ainda pior, os homens mortos no pecado, sob o domínio de um senhor que já foi vencido junto com o seu aguilhão, resistem ao poder que Deus investiu no evangelho, que por sua vez, os calvinista denominam de geral.

Como é possível conceber que um Deus onipotente precise de uma graça específica para cooptar os mortos no pecado, sendo que para aliciar Adão, que estava efetivamente morto para o pecado, não houve a necessidade de uma ‘ofensa eficaz’ que transtornasse a natureza de Adão?

Na Confissão de Fé de Westminster, ficou estipulado que Deus salva os crentes:

“…iluminando os seus entendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando lhes corações de carne, renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça” Confissão de Fé de Westminster.

Embora a Bíblia demonstre que Deus dá um novo coração e um novo espírito ao homem quando da regeneração, contudo, ela não diz que Deus renova as disposições internas do indivíduo, como mente e vontade. Antes, a Bíblia demonstra que Deus respeita tais disposições, como se lê: “Se a sua oferta for holocausto de gado, oferecerá macho sem defeito; à porta da tenda da congregação a oferecerá, de sua própria vontade, perante o SENHOR” ( Lv 1:3 ); “Todavia o que está firme em seu coração, não tendo necessidade, mas com poder sobre a sua própria vontade, se resolveu no seu coração guardar a sua virgem, faz bem” ( 1Co 7:37 ); “E por isso, se o faço de boa mente, terei prêmio; mas, se de má vontade, apenas uma dispensação me é confiada” ( 1Co 9:17 ); “Porque, se há prontidão de vontade, será aceita segundo o que qualquer tem, e não segundo o que não tem” ( 2Co 8:12 ).

As considerações acerca da vontade e da liberdade do homem, inicialmente, foram formuladas por Agostinho, porém, o seu trabalho não se resumiam em questões teológicas, antes ele buscava um diálogo entre teologia e ontologia, levando-o a formular um teologia que ‘conciliasse’ a ideia da causalidade absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem.

Influenciado pelo maniqueísmo e o neoplatonismo, Agostinho buscou uma explicação para a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal. O interesse filosófico levou Agostinho a teorizar acerca da liberdade de Adão, sendo colocado por Agostinho que antes de pecar a liberdade de Adão consistia em ‘poder não pecar’ e, após a queda, tornou-se em ‘não poder não pecar’.

É corretíssimo tal pensamento, visto que, Adão pecou, o que implica dizer que Adão era livre para pecar ou não. Do mesmo modo, é corretíssimo o pensamento de que o homem sob o domínio do pecado não tem como não pecar, como se lê: “Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado” ( Jo 8:34 ). Pecar é uma condição própria aos servos do pecado, o que nos remete a novas considerações.

 

Figuras bíblicas

Jesus utilizou a ‘servidão’ como figura para ilustrar a condição do homem sob o domínio do pecado, porém, outra figura que é utilizada para ilustrar o homem sob o pecado é a morte.

A escravidão é o sistema de subjugação humana mais terrível que a humanidade tem conhecimento, do mesmo modo que a morte é o evento mais doloroso de separação que a humanidade tem conhecimento.

Escravidão e morte são figuras excelentes para demonstrar qual é a condição e as impossibilidades do homem após a queda.

A escravidão, como figura, demonstra que a condição do homem sob o pecado é de impossibilidade de libertar-se a si mesmo. Devemos visualizar o pecado como um senhor que jamais dará a carta de alforria para os seus servos. Tal figura demonstra também que tudo que o servo do pecado produz, bem ou mal, pertencem por direito ao seu senhor, ou seja, um escravo não possui bens ou posse que lhe possa garantir a liberdade.

No entanto, por pior que fosse o regime escravagista, tal sistema jamais sobrepujava a vontade dos escravos. Do mesmo modo a Bíblia demonstra que a vontade dos homens sob o pecado é livre, uma vez que muitos procuram servir a Deus, porém, sem entendimento ( Rm 10:2 ). O apóstolo Paulo ao falar da sua condição sob o pecado, demonstrou que a vontade dele era fazer o bem, porém, como servia ao pecado, fazia o mal ( Rm 7:18 ).

O querer estava em Saulo, porém, o realizar o bem ele não conseguia realizar. Porque? Seria o conceito da inabilidade total? Não! Ora, a inabilidade total diz que o homem perdeu totalmente o poder da vontade, mas o apóstolo Paulo demonstra que tinha a vontade, queria fazer o bem, tinha a capacidade para avaliar que a lei era boa e o seu entendimento batalhava contra a lei dos seus membros ( Rm 7:18 , 20, 22 e 23).

Porque ele não conseguia? Ora, a figura da escravidão explica: ele não conseguia porque tudo o que ele fazia ou intentasse fazer, por direito, pertencia ao seu senhor, o pecado. Mesmo seguindo a lei, como fazia o povo de Israel, o pecado se apoderava de tudo que ele produzia. Daí a ideia de que o homem não consegue salvar-se por seu próprios meios e méritos, visto que o que produz é do pecado.

Quando o interprete não sabe diferenciar ‘poder de vontade’ do ‘poder de escolha’ dá azo à má interpretação da figura da escravidão. A inabilidade do escravo está no poder de escolha, pois a liberdade não é uma escolha possível. Porém, ainda continua de posse do seu poder de vontade, pois a vontade é ilimitada e insubjugável. O poder da vontade é ilimitado, podemos perceber esta verdade no fato de o homem não ser capaz de voar e, mesmo assim, desejar voar, já o poder de escolha restringe-se ao que é factível.

Um escravo tinha a sua vontade livre, pois sempre desejava alcançar a liberdade, embora houvesse exceções: escravos que eram postos em liberdade, mas que, de livre vontade, permaneciam a serviço do seu senhor. Porém, apesar da vontade livre, no sistema escravagista a possibilidade de escolha inexistia, pois tal poder, de libertá-lo, estava nas mãos do seu senhor.

O que era preciso para que o escravo ver-se livre de tal condição? A única saída era a morte! É por isso que o convite de Jesus ordena que o homem tome a sua própria cruz e siga-O, ou seja, para se ver livre do pecado o homem precisa morrer.

Num sistema escravagista, o que submete o escravo ao seu senhor é a lei, portanto, para o escravo se ver livre de um senhor perverso que não o liberta, somente a morte pode livra-lo da lei do seu senhor. Para ilustrar a possibilidade de o homem ser livre da lei do pecado, o apóstolo Paulo apresenta a figura da mulher ligada ao marido pela lei, ou seja, a mulher casada só é livre da lei do marido quando ele morre ( Rm 7:2 ; 1Co 15:56 ).

A mensagem do evangelho tem por alvo o intelecto do homem, buscando uma resposta da sua vontade livre, pois o seu corpo que está sob o domínio da lei, do pecado e da morte. Como semente, o evangelho é lançado ao coração dos homens que, após, ouvirem e compreendem, crendo na esperança proposta, o homem é regenerado ( Jo 1:12 ; 1Pe 1:23 ).

A Bíblia não apresenta a concepção de uma mente do pecado, antes é o corpo que pertence ao pecado. Através da figura da escravidão fica claro que os escravos eram escravizados em decorrência do corpo. Os seus corpos é que eram escravizados, visto que não há como se escravizar a mente “Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado” ( Rm 6:6 ).

Quando o corpo é desfeito não há mais escravidão, visto que a escravidão submete o corpo ( Rm 6:6 ). Através da circuncisão de Cristo o homem despoja-se do corpo da carne. Pelo evangelho (fé) o homem é sepultado com Cristo ( Ef 4:5 ), e por ter descansado (fé) na promessa do evangelho, ressurge através do poder de Deus ( Cl 2:11 ).

Através do corpo de Cristo que foi entregue na morte, o homem percorre um novo e vivo caminho ( Hb 10:20 ), pois é morto e sepultado, para depois ressurgir um novo homem segundo a imagem daquele que O criou. Como os que ressurgem com Cristo despojaram o seu corpo através da circuncisão de Cristo (morte) e ressurgiram, o pecado já não tem domínio sobre o novo homem, assim como a morte não tem poder sobre Cristo ( Rm 6:9 ; Cl 3:11 ).

Quando se ressurge com Cristo a morte não mais prende o homem, pois os seu aguilhão, o pecado, foi desfeito juntamente com a lei ( Rm 6:10 ; 1Co 15:56 ). Neste ponto o homem morre para o pecado e ressurge livre e de posse de uma viva esperança ( Rm 6:10 ).

Embora o homem sob o pecado não possua o poder de escolha quanto à liberdade, todavia possui o poder de escolha quanto a morrer e, é com base neste poder de escolha que a mensagem do evangelho apela ao poder da vontade do homem para que venha a morrer com Cristo, pois na morte com Cristo está a liberdade ( Rm 6:7 ).

É nesto ponto em específico que o homem precisa ter a mesma fé do crente Abraão para ser justificado, visto que, quando Abraão ofereceu o seu filho em holocausto, ele cria que Deus era poderoso para traze-lo dentre os mortos. Do mesmo modo, quando o homem toma sua cruz e segue após Cristo ( Mt 10:38 ), precisa crer do mesmo modo como creu Abraão, de que Deus é poderoso para trazê-lo dentre os mortos através da ressureição com Cristo “E, se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé (…) E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” ( 1Co 15:14 e 17); “Mas já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte, para que não confiássemos em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos” ( 2Co 1:9 ).

É por isso que o homem natural diante da mensagem do evangelho não pode ter a sua vida sob o pecado por preciosa, visto que vai ter que dispor dela para poder alvançar a Cristo ( Mt 16:25 ).

Deste modo, a correta interpretação da morte como figura é separação ( Gn 2:17 ), indicando alienação, barreira, inimizade, distância, etc., e não indica deficiência com relação a ver e ouvir. A morte como termino das funções vitais é descrita como voltar ao pó ( Gn 3:19 ), sendo utilizada como figura para descrever a alienação do homem com relação ao seu Criador.

Quando a Bíblia aponta a condição da humanidade sob o domínio do pecado, o homem não é apresentado como sendo cego ou surdo, como se lê: “Inclinai os vossos ouvidos, e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua, dando-vos as firmes beneficências de Davi” ( Is 55:3 ); “Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro” ( Is 45:22 ).

Os termos ‘surdo’ e ‘cego’ são utilizados para com os judeus que, vendo não viam, e ouvindo não atentavam “Surdos, ouvi, e vós, cegos, olhai, para que possais ver” ( Is 42:18 ); “Trazei o povo cego, que tem olhos; e os surdos, que têm ouvidos” ( Is 43:8 ).

A morte, como figura, indica a condição do homem em relação a dois senhores: justiça e pecado. Enquanto o homem está vivo para ao pecado, concomitantemente, está morto para Deus. A partir do momento em que o homem morre para o pecado, passa a estar vivo para Deus.

Ou seja, a figura indica que o homem jamais pode ter amizade com Deus e ser amigo do mundo. Jamais o homem terá comunhão com a luz e as trevas ao mesmo tempo. Quando se está no pecado, o homem está livre da justiça, e quando na justiça, livre está do pecado ( Rm 6:18 e 20).

 

Conclusão

Quando Deus criou o homem, concedeu-lhe o livre arbítrio (vontade livre), e a queda do homem demonstra que, em Sua soberania, Deus não influenciou a vontade do homem para dissuadi-lo de sua decisão. Com a queda, o homem perdeu a possibilidade de escolher a liberdade (o poder de escolha). No entanto, como a vontade é livre, Deus, por meio de Sua Palavra, concede ao homem a opção de reconciliar-se com Ele, desfazendo a impossibilidade que existia em relação ao poder de escolha.

Quando Deus roga aos homens, de se reconciliarem com Ele, ele demonstra que através d’Ele é possível o homem ser livre.

“De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus” ( 2Co 5:20 ).

Deus poderia impor a sua vontade em lugar de rogar? A resposta é clara: “E respondeu-me, dizendo: Esta é a palavra do SENHOR a Zorobabel, dizendo: Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos” ( Zc 4:6 ), visto que:

“Ora, o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” ( 2Co 3:17 ).

Deste modo, embora seja corretíssimo o pensamento de Agostinho de que a liberdade de Adão consistia em ‘poder não pecar’ e que, após a queda, tornou-se em ‘não poder não pecar’, a concepção de ‘depravação total’ e ‘inabilidade total’ resulta da falta de diferenciação dos conceitos de ‘poder de vontade’ e ‘poder de escolha’.

Enquanto a ‘inabilidade’ recai sobre o poder de escolha do homem, visto que a oportunidade de ser livre não era factível por ele ser escravo, o ‘poder da vontade’ do homem é livre, conforme testemunhado pelo apóstolo Paulo e ilustrado pela figura da escravidão (Rm 7:18-23).

Como o pecado é senhor que não despede foro os seus servos, Cristo oferece liberdade aos presos do pecado, visto que o homem detém o “poder da vontade”. Aceitando a Cristo como Senhor, o servo do pecado que não tinha “poder de escolha”, pelo “poder da vontade” torna-se um com Cristo conformando-se na sua morte, e assim, morre para o pecado e ressurge uma nova criatura serva da justiça.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *