Eleição e Predestinação

O Endurecimento de Israel

O verbo grego πωρόω (“endurecer”) remete ao hebraico שָׁמַן (“engordar” ou “não ser receptivo”), indicando que o endurecimento de Israel ocorreu porque foram protegidos e engrandecidos por Deus. Contudo, em vez de responderem com obediência e gratidão, rebelaram-se contra o próprio Deus que os sustentou. A prosperidade, que deveria inspirar adoração e fidelidade, tornou-se motivo de orgulho e afastamento, ou seja, endurecimento (Deuteronômio 32:15).


O Endurecimento de Israel

Conteúdo do artigo

“Mas os seus sentidos foram endurecidos; porque até hoje o mesmo véu está por levantar na lição do velho testamento, o qual foi por Cristo abolido;” (2 Coríntios 3:14);

“E, engordando-se Jesurum, deu coices; engordaste-te, engrossaste-te, e de gordura te cobriste; e deixou a Deus, que o fez, e desprezou a Rocha da sua salvação.” (Deuteronômio 32:15).

 

Deus Endurece os Corações?

Deus endureceu os corações dos judeus para que rejeitassem a Cristo? Ele endureceu o coração de Faraó? Deus odiou Esaú? E quanto à ideia de que Ele escolhe alguns para a salvação eterna e outros para a danação perpétua?

Essas perguntas frequentemente suscitam debates intensos, especialmente quando nos deparamos com o capítulo 9 de Romanos, que muitos teólogos entendem que trata de temas como livre-arbítrio, livre agência, eleição e predestinação.

Este artigo busca explorar, inicialmente, a questão da rejeição parcial de Israel, investigando o que significa terem sido “endurecidos”. Também será analisada a dinâmica de emulação que Deus estabeleceu entre judeus e gentios, conforme descrito em Romanos 10:19 e 11:11.

O Apelo de Deus a Israel

À primeira vista, pode parecer que Deus rejeitou Israel e endureceu os seus corações. Contudo, as Escrituras mostram uma realidade diferente. Por intermédio do profeta Isaías, Deus declara que continuamente estendeu Suas mãos ao povo de Israel, mesmo sendo este um povo rebelde, que insistia em seguir caminhos maus, orientados por seus próprios pensamentos (Isaías 65:2).

Israel buscava conselhos, mas não os conselhos do Senhor, motivo pelo qual foram chamados de filhos rebeldes. Em vez de se cobrirem com a palavra do Senhor, que é capaz de produzir justiça, recorriam a uma “cobertura” inútil (Isaías 30:1). Essa cobertura consistia em mandamentos de homens, que por tradição receberam de seus pais. Assim, honravam a Deus apenas com palavras, enquanto seus corações permaneciam distantes (Isaías 29:13). Exteriormente, aparentavam buscar os caminhos do Senhor e ter prazer neles, como se fossem um povo que praticava justiça, mas, na verdade, não passavam de transgressores (Isaías 58:1-2).

Séculos depois da entrega da Lei, o salmista ainda conclamava os filhos de Israel a ouvirem a palavra de Deus e a não endurecerem os corações, como ocorreu com seus antepassados no deserto. Deus diagnosticou o povo de Israel com clareza:

“É um povo que erra de coração e não conhece os meus caminhos.” (Salmo 95:10).

Ezequiel também registra a atitude do povo:

“Eles vêm a ti como o povo costuma vir, assentam-se diante de ti e ouvem as tuas palavras, mas não as põem em prática. Com a boca lisonjeiam, mas seus corações seguem a avareza.” (Ezequiel 33:31).

Diante dessas passagens, podemos afirmar que Deus endureceu os corações de Israel? A resposta é um enfático “não”! Esses textos são claros ao demonstrar que o povo de Israel, desde os seus antepassados que foram libertos do Egito, já apresentava um coração obstinado e inclinado a desviar-se dos mandamentos de Deus. Como o profeta Oséias bem resume:

“O meu povo é inclinado a desviar-se de mim; ainda que clamem ao Altíssimo, nenhum deles o exalta.” (Oséias 11:7).

Esses exemplos mostram que o endurecimento não foi obra arbitrária de Deus, mas consequência da rebeldia contínua do coração humano que rejeita a voz divina.

Armadilha e Laço

Desde o último cântico de Moisés, fica evidente que os filhos de Israel se corromperam contra Deus, tornando-se uma geração perversa e mentirosa. Moisés declara que, por causa de sua rebeldia, eles deixaram de ser considerados filhos de Deus, tornando-se uma “mancha” em Sua presença (Deuteronômio 32:5).

Mas qual foi a consequência dessa contínua rebeldia? Desde o momento em que Deus libertou o povo do Egito e os conduziu através do Mar Vermelho, todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar. O Verbo, que mais tarde se faria carne, estava com eles e os seguia, demonstrando o cuidado e a fidelidade divina (1 Coríntios 10:1-4).

Contudo, Deus provou a fé do povo, assim como havia provado Abraão. Mas ao contrário de Abraão, Israel foi reprovado. Diante da murmuração e incredulidade, Deus lhes propôs uma prova simples: confiar que Deus provia diariamente o maná. Mesmo assim, não obedeceram e, novamente, falharam (Êxodo 16:4). Apesar dos inúmeros milagres e do cuidado visível de Deus, o povo continuou incrédulo e obstinado em sua desobediência. À medida que as transgressões se acumulavam, Deus estabeleceu o sábado como estatuto e sinal em Israel, chamando-os à santidade e à obediência (Êxodo 16:23-30).

Em outro momento crucial, Deus Se propôs a falar diretamente com Moisés, para que o povo de Israel ouvisse Sua voz e pudesse crer. No entanto, tomados pelo medo ao verem os trovões, relâmpagos, o som das trombetas e o monte fumegando, rejeitaram ouvir a voz do Senhor. Esse era o Deus que cumpria a palavra dada a Abraão, mas o povo preferiu permanecer em sua incredulidade, incapaz de confiar em Seu cuidado e fidelidade (Êxodo 19:9; 20:18-20).

Por causa das transgressões, Deus deu a Lei, um sistema de mandamentos e preceitos, “até que viesse a posteridade prometida” — Cristo — como Paulo ensina em Gálatas 3:19. Isaías descreve o efeito desse sistema legalista sobre Israel:

“Assim, pois, a palavra do SENHOR lhes será mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali; para que vão, caiam para trás, e se quebrantem, e se enlacem, e sejam presos.” (Isaías 28:13).

Israel havia se tornado uma geração perversa e desleal. Em resposta, o Senhor que os acompanhava declarou que esconderia Seu rosto, aguardando para ver o fim de um povo tão obstinado (Deuteronômio 31:18; 32:20). Mais tarde, o profeta Isaías ainda esperava pelo Senhor que havia ocultado o Seu rosto da casa de Israel:

“E esperarei ao SENHOR, que esconde o seu rosto da casa de Jacó, e a ele aguardarei.” (Isaías 8:17).

Esse Senhor, a quem Isaías aguardava, é chamado de Emanuel, “Deus conosco”. Ele deveria ser santificado como Senhor no coração de Seu povo (Isaías 8:8,13; 1 Pedro 3:15). No entanto, a profecia já anunciava que o próprio Senhor, que viria como um santuário, também seria “pedra de tropeço e rocha de escândalo” para as duas casas de Israel. Sua vinda serviria como prova e juízo, levando muitos a tropeçar, cair, serem quebrantados e presos (Isaías 8:14-15).

Assim, vemos que o endurecimento de Israel não foi uma obra arbitrária de Deus, mas uma consequência natural de sua incredulidade e rebeldia. Mesmo diante da fidelidade e do amor divino, o coração de Israel preferiu rejeitar a voz do Senhor, tropeçando na pedra que veio para ser a salvação de todos os que nEle creem.

Parábolas e enigmas

Moisés desfrutava de um relacionamento singular com Deus. Ele falava com o Altíssimo face a face, sem enigmas, símiles ou parábolas, porque contemplava a semelhança do Senhor, que é Cristo (Números 12:8). Contudo, ao povo de Israel, Deus falava por meio de mediadores, como Moisés, ou por mensageiros, os profetas, que frequentemente usavam parábolas e adágios para denunciar a rebeldia da nação (Salmo 78:2).

Apesar desse privilégio, os sábios e líderes de Israel rejeitaram ouvir a palavra que Deus anunciava por meio de Moisés. O objetivo era prová-los, como fez com Abraão, para que confiassem na palavra do Senhor e, assim, não pecassem mais contra Ele (Êxodo 20:20). No entanto, ao rejeitar essa palavra, os “sábios” revelaram sua ignorância sobre o Santo:

“Os sábios são envergonhados, espantados e presos; eis que rejeitaram a palavra do SENHOR; que sabedoria, pois, têm eles?” (Jeremias 8:9).

Sem o conhecimento do Santo, o povo de Israel se prendeu aos mandamentos e preceitos que foram dados não para justificar, mas para expor sua condição de injustiça, obstinação e pecado (Romanos 10:2). Como Paulo descreve: os preceitos da Lei eram direcionados aos ímpios, profanos, pecadores e irreligiosos (1 Timóteo 1:9-10). Ainda assim, os israelitas se equivocaram ao acreditar que a obediência externa às obras da Lei poderia justificá-los, sem perceberem que um só tropeço em qualquer mandamento os tornava culpados de toda a Lei (Tiago 2:10-11). Além disso, como Isaías denuncia, seus mandamentos não passavam de preceitos humanos (Isaías 29:13).

A Chegada do Messias: Confusão e Rejeição

Os profetas haviam anunciado por enigmas e parábolas o tempo da vinda do Messias. Quando esse tempo chegou, Jesus veio ao mundo, mas não conforme as expectativas do povo. Eles aguardavam a restauração do reino político de Israel, enquanto Cristo veio para edificar o templo espiritual prometido a Davi: a igreja do Deus vivo (2 Samuel 7:13).

O dia aguardado pelas sentinelas de Israel se tornou, para muitos, um dia de punição e confusão. Cristo veio cumprir a boa palavra prometida a Abraão, a bênção destinada a todas as famílias da terra, mas os filhos de Israel, apegados às questões religiosas e políticas, tornaram-se inimigos do irmão prometido — o Profeta semelhante a Moisés, de quem deveriam ter dado ouvidos (Deuteronômio 18:18).

Ao verem Jesus de Nazaré, filho de José e Maria, deveriam buscar nas Escrituras a confirmação de que Ele era o Cristo. No entanto, voltavam-se para amigos, líderes e familiares em busca de respostas, o que resultou em confusão e dissensão entre os filhos de Israel sobre sua identidade como o Messias, cumprindo o que foi predito em Miqueias 7:4-6.

A Pedra de Tropeço

O problema central era a forma como o Rei de Israel, o Filho de Davi e Filho do Altíssimo, veio ao mundo. Sua condição social humilde e Sua missão espiritual não se encaixavam nas expectativas carnais do povo. Cristo não veio para estabelecer um reino político, mas para edificar a igreja, o templo prometido. Por isso, o Messias tornou-se, para eles, um laço e uma pedra de tropeço. Eles O rejeitaram, e ainda assim Ele se tornou a “cabeça da esquina”:

“A pedra que os edificadores rejeitaram tornou-se a cabeça da esquina” (Salmo 118:22).

Essa rejeição foi o ápice da incompreensão do povo, que, sem discernimento espiritual, não reconheceu o tempo da visitação de Deus. O Messias veio, não para cumprir suas expectativas terrenas, mas para trazer redenção e estabelecer o reino eterno no coração dos homens. Primeiro Cristo teria que edificar um templo com pedras vivas e, só então, herdaria o reino prometido.

Comida e Mesa como Enigma

Enquanto Jesus realizava a vontade do Pai, que Ele descrevia como Sua verdadeira comida (João 4:34), seus próprios concidadãos, ao tornarem-se inimigos do Filho do Homem, contribuíram para “preparar a mesa” que seria o evento da crucificação. No entanto, ir ao Calvário fazia parte do plano redentor do Pai, transformando a cruz em uma mesa posta na presença de Seus inimigos (Salmo 23:5). Para os judeus que O rejeitaram, contudo, essa mesma mesa tornou-se um laço e armadilha (Salmo 69:22).

A mesa posta na presença dos inimigos, mencionada no Salmo 23, refere-se profeticamente ao evento da crucificação, onde os inimigos de Cristo eram seus próprios irmãos segundo a carne, os judeus que rejeitaram e entregaram o Messias.

O Juízo de Deus e a Dureza de Israel

Os profetas descreveram a condição espiritual de Israel como estando em caminhos escorregadios, onde a queda era inevitável (Salmos 35:6; Salmos 73:18; Jeremias 23:12). Isaías resumiu o julgamento divino com estas palavras:

“Assim, pois, a palavra do SENHOR lhes será mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali; para que vão, e caiam para trás, e se quebrantem, e se enlacem, e sejam presos.” (Isaías 28:13).

Por não darem ouvidos à voz do Senhor, que ocultou Seu rosto da casa de Israel, eles foram impedidos de entrar no repouso prometido (Salmo 95:11). Quando o Senhor se manifestou como santuário, na plenitude dos tempos, o testemunho foi selado entre os discípulos de Cristo. A lei e o testemunho, que são a essência do ministério de Cristo, tornaram-se o critério. Caso os filhos de Israel não falassem segundo as palavras que Cristo ensinou, não havia luz neles, mas apenas trevas (Isaías 8:16-20).

A Rejeição de Cristo pelos Religiosos

Jesus ensinava nas sinagogas, mas indignava-se com a dureza dos corações dos líderes religiosos (Marcos 3:5). Mesmo ao operar milagres, Ele ordenava que não espalhassem os relatos, pois não queria ser reconhecido apenas como operador de sinais ou profeta. O propósito era que o povo examinasse as Escrituras e reconhecesse, pela profecia, que Ele era o Cristo, crendo no testemunho dado por Deus acerca de Seu Filho (1 João 5:9-10).

Por não poder declarar abertamente “Eu sou o Cristo”, Jesus ensinava Sua doutrina por meio de parábolas (Marcos 4:2). Aos discípulos, explicava os mistérios do reino, mas ao povo, falava em adágios e símiles com um propósito definido:

“A vós vos é dado saber os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas estas coisas se dizem por parábolas, para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam; para que não se convertam, e lhes sejam perdoados os pecados” (Marcos 4:11-12; Mateus 13:11-12).

O Coração Endurecido e a Profecia de Isaías

Mateus explica que Jesus falava em parábolas para cumprir a profecia de Isaías:

“Ouvindo, ouvireis, mas não compreendereis; e, vendo, vereis, mas não percebereis. Porque o coração deste povo está endurecido, e ouviram de mau grado com seus ouvidos, e fecharam seus olhos.” (Mateus 13:14-15; Isaías 6:9-10).

Essa rejeição voluntária não era novidade. Jeremias já havia declarado:

“Mas não ouviram, nem inclinaram os seus ouvidos; antes andaram cada um conforme o propósito do seu coração malvado.” (Jeremias 11:8).

João reforça esse ponto ao afirmar que, mesmo após tantos sinais, o povo não creu:

“Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos, nem compreendam no coração, e se convertam, e Eu os cure.” (João 12:37-41).

Paulo e a Rejeição de Israel

O apóstolo Paulo, citando Isaías, declara:

“Porquanto o coração deste povo está endurecido, e com os ouvidos ouviram pesadamente, e fecharam os olhos; para que nunca com os olhos vejam, nem com os ouvidos ouçam, nem do coração entendam, e se convertam, e Eu os cure.” (Atos 28:26-27).

Essa dureza levou a salvação a ser proclamada aos gentios, que, ao contrário de Israel, ouviram e creram (Atos 28:28). Diante disso, Deus endureceu o coração de Israel, ou eles seguiram seus corações obstinados? As Escrituras mostram que o “endurecimento” foi consequência da incredulidade e rebeldia do povo.

Deus Endureceu o Coração do Povo de Israel?

A Bíblia deixa claro que Deus nunca tolhe o livre-arbítrio dos homens, inclusive dos filhos de Israel, de modo a controlar ou influenciar suas decisões. Deus, em sua imutabilidade e fidelidade, não revoga os dons que concedeu à humanidade, mesmo após a queda. Os dons concedidos por Deus à humanidade na criação, incluindo o livre-arbítrio, o domínio sobre os peixes, animais e a terra (Gênesis 1:26-28) e o conhecimento do bem e do mal adquirido simultaneamente com a queda (Gênesis 3:22), continuam sendo elementos fundamentais da natureza humana, mesmo após a entrada do pecado no mundo. (Romanos 11:29).

Amor e Ódio no Contexto Bíblico

Para compreender melhor esses conceitos, é essencial analisar o que Deus disse por meio do profeta Malaquias:

“Eu vos tenho amado, diz o SENHOR. Mas vós dizeis: Em que nos tem amado? Não era Esaú irmão de Jacó? disse o SENHOR; todavia amei a Jacó, e odiei a Esaú; e fiz dos seus montes uma desolação, e dei a sua herança aos chacais do deserto.” (Malaquias 1:1-2).

Uma leitura moderna desses termos, amor e ódio, pode sugerir que Deus preferiu Jacó e rejeitou Esaú. No entanto, esse não é o ponto central do texto. Ao destacar que Esaú e Jacó eram irmãos, ambos descendentes de Abraão e Isaque, o profeta evidencia que, à primeira vista, ambos pareciam reunir as mesmas condições para estarem sob o abrigo da promessa feita a Abraão.

Se Esaú era filho de Abraão, não estaria ele sob o abrigo da proteção decorrente da promessa feita a Abraão? A resposta encontra-se na explicação do apóstolo Paulo: “nem todos os que são de Israel são israelitas; Nem por serem descendência de Abraão são todos filhos.” (Romanos 9:6-7). Essa distinção reflete a fidelidade de Deus, que, ao delimitar a linhagem pela qual o Descendente viria, visava o cumprimento de Sua promessa. Ao transformar os montes de Esaú em desolação, Deus evidencia que a eleição divina para a linhagem do Cristo não se baseia exclusivamente na descendência física.

A Primogenitura e a Escolha de Jacó

Embora Esaú fosse o primogênito, a primogenitura não foi confirmada no nascimento. A palavra dada a Rebeca antes mesmo de seus filhos nascerem antecipou o curso dos acontecimentos: “O maior servirá o menor.” (Gênesis 25:23). Assim, Rebeca edificou sua casa com base na palavra de Deus, assegurando que Jacó se tornasse o herdeiro da promessa.

Ismael, da mesma forma, era filho de Abraão, mas não foi incluído na linhagem da promessa. Quando Sara decidiu que o filho da escrava não herdaria com o filho dela, Isaque, Deus confirmou essa decisão, demonstrando que mesmo sendo Ismael o primogênito, ele não seria a linhagem escolhida para a vinda do Cristo, conforme foi dito: “Em Isaque será chamada a tua descendência.” (Gênesis 21:12). Sara, ao deserdar Ismael, edificou sua casa e assegurou a Isaque a descendência da promessa. Embora Ismael fosse o primogênito segundo a carne, com relação a promessa Isaque era o unigênito, conforme a palavra de Deus: “Por este tempo virei, e Sara terá um filho” (Gênesis 18:10).

Amor e Ódio de Deus: Cuidado e Rejeição

E por que Deus amou Jacó? Porque, apesar de ter nascido por último, segurando o calcanhar de Esaú, Jacó valorizou e buscou o direito de primogenitura, enquanto Esaú, que originalmente o detinha, desprezou-o ao trocá-lo por um prato de lentilhas (Gênesis 25:29-34). Nesse contexto, o amor de Deus significa conceder aquilo que é de direito a quem o valoriza, enquanto o ódio reflete a recusa de atribuir aquilo que não é devidamente reconhecido ou prezado.

Quando Deus cumpre graciosamente Suas promessas, como no caso da promessa feita a Abraão, vemos o amor de Deus evidenciado em Seu compromisso fiel. Ele prometeu a Abraão que sua descendência herdaria a terra de suas peregrinações e, a Davi, que seu descendente governaria todos os reinos da terra com vara de ferro. Essa fidelidade é uma manifestação da misericórdia divina, que jamais se afastará da nação de Israel, embora a mesma garantia não se estenda a indivíduos (Êxodo 6:4).

Por essa razão, Deus sempre preservará um remanescente entre os filhos de Israel, assegurando o cumprimento do juramento feito aos patriarcas. A promessa, estabelecida pela graça e pela fidelidade de Deus, é irrevogável, demonstrando Sua imutabilidade e o propósito de redimir Seu povo afim de fazer o Seu primogênito o mais elevado que os reis da terra (Salmo 89:27).

“O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos os povos; Mas, porque o SENHOR vos amava, e para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito. Saberás, pois, que o SENHOR teu Deus, ele é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e guardam os seus mandamentos. E retribui no rosto qualquer dos que o odeiam, fazendo-o perecer; não será tardio ao que o odeia; em seu rosto lho pagará. Guarda, pois, os mandamentos e os estatutos e os juízos que hoje te mando cumprir.” (Deuteronômio 7:7-11).

Amar e Odiar a Deus: Obediência e Rebelião

Nesse aspecto, o homem também pode amar e odiar a Deus. Como isso ocorre? O homem demonstra amor a Deus ao obedecer aos Seus mandamentos, enquanto manifesta ódio quando desobedece. A obediência aos mandamentos divinos resulta na misericórdia de Deus, que é a expressão de Seu amor. Por outro lado, a desobediência leva à rejeição e ao ódio divino, conforme estabelecido nas Escrituras:

“Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus mandamentos.” (Êxodo 20:5-6).

Esse princípio, expresso em Êxodo 20, é reiterado em várias passagens bíblicas (1 Samuel 15:22; Oséias 6:6) e estabelece a regra fundamental na relação entre Deus e o homem.

Embora a misericórdia do Senhor seja contínua sobre a nação de Israel, garantindo que eles não sejam completamente consumidos (Isaías 1:9-10; Lamentações 3:22-23), isso não isenta os indivíduos de julgamento. Muitos membros da nação de Israel pereceram em razão de sua desobediência, como os seiscentos mil homens que saíram do Egito e morreram no deserto. Essa realidade enfatiza a necessidade de um coração circuncidado, isto é, submisso a Deus:

“Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e não mais endureçais a vossa cerviz.” (Deuteronômio 10:16).

A dura cerviz de Israel reflete sua recusa em ouvir e obedecer, tal como a de seus pais, que não creram no Senhor (2 Reis 17:14). Assim, a mensagem divina é clara: amar a Deus significa sujeitar-se a Ele, enquanto endurecer o coração e persistir na desobediência resulta na perda da misericórdia e na manifestação do julgamento divino.

Temor e Tremor

A bem-aventurança decorrente da misericórdia de Deus está intrinsecamente ligada à obediência e ao temor ao Senhor. O temor a Deus não é apenas um sentimento de reverência, mas uma postura de submissão e obediência à Sua palavra. Por outro lado, aquele que endurece o coração e se recusa a obedecer inevitavelmente cairá no mal, como ensina a Escritura:

“Bem-aventurado o homem que continuamente teme; mas o que endurece o seu coração cairá no mal.” (Provérbios 28:14).

Dessa verdade, podemos deduzir que, para ser alvo da misericórdia de Deus, o indivíduo deve obedecê-Lo. Caso contrário, Deus, em Sua justiça, o fará perecer, independentemente de sua origem ou de pertencer a um grupo específico, como a nação de Israel. Essa realidade deixa claro que o relacionamento de Deus com os indivíduos é baseado em obediência pessoal, e não meramente em laços nacionais ou culturais.

Contudo, mesmo que Deus julgue e faça perecer aqueles que desobedecem, Seu amor pela nação de Israel permanece imutável. Esse amor é expresso em Sua fidelidade à promessa feita aos patriarcas. Assim, embora indivíduos possam ser cortados por causa de sua desobediência, Deus garante que sempre preservará um remanescente fiel para a continuidade da nação. Essa preservação é uma demonstração de que a palavra de Deus jamais será revogada e que Seu propósito soberano prevalecerá em todas as circunstâncias.

A combinação de justiça e misericórdia de Deus reflete Sua natureza perfeita: Ele é justo ao julgar os desobedientes, mas gracioso ao manter Sua fidelidade à promessa, preservando a nação e conduzindo-a ao cumprimento de Seu plano redentor.

A narrativa de Jacó e Esaú não reflete uma escolha arbitrária ou favoritismo, mas o cumprimento do propósito divino decorrente do direito de primogenitura. Deus é fiel às Suas promessas e justo em Seus julgamentos. O homem, por sua vez, tem liberdade para escolher amar ou odiar a Deus, obedecendo ou rejeitando Seus mandamentos. O amor de Deus é oferecido graciosamente, mas a resposta do homem determinará se ele desfrutará da misericórdia divina ou enfrentará Sua rejeição.

Como Ler Romanos 11:7

“Pois quê? O que Israel buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram, e os outros foram endurecidos.”

O verbo grego πωρόω (pōróō), traduzido como “endurecer”, remete ao verbo hebraico שָׁמַן (shaman), que significa “engordar” ou “não ser receptivo”. Isso nos leva a perguntar: Deus realmente endureceu o coração dos filhos de Israel para que não ouvissem ou cressem (Romanos 11:7)? Ou seria o caso de Deus ter enviado, repetidamente, Seus profetas e até mesmo o Seu Filho, enquanto Israel escolheu não dar ouvidos (Hebreus 1:1; 2:1)?

O hebraico שָׁמַן (shaman), em seu sentido básico, significa “engordar” ou “estar gordo”. Quando conjugado na forma causativa (Hifil), adquire o significado de “fazer engordar” ou “tornar algo/alguém gordo”. Em Isaías 6:10, um contexto semelhante aparece com o verbo הַכְבֵּ֖ד (hakbed), também na forma causativa, indicando que o sujeito faz algo/alguém tornar-se “pesado” ou “insensível”, uma metáfora para o endurecimento espiritual.

Essa ideia está presente na maneira como Deus se refere a Israel como “Jesurum” em Deuteronômio 32. O termo, que pode ser traduzido como “amado”, “reto” ou “correto”, descreve figurativamente Israel como ovelhas que, uma vez encontradas por Deus, foram protegidas e abundantemente alimentadas:

“Lembra-te dos dias da antiguidade… Ele o achou em uma terra deserta… cercou-o, cuidou dele, guardou-o como à menina dos seus olhos… Ele o fez cavalgar sobre as alturas da terra e comer dos frutos do campo.” (Deuteronômio 32:7-14).

Contudo, essa provisão e cuidado divinos conduziram a uma consequência trágica e inusitada:

“E, engordando-se Jesurum, deu coices; engordaste-te, engrossaste-te, e de gordura te cobriste; e deixou a Deus, que o fez, e desprezou a Rocha da sua salvação.” (Deuteronômio 32:15).

Aqui, o “engordar” é uma metáfora para prosperidade e abundância que, em vez de gerar gratidão e obediência, levou à altivez e à rebeldia. O endurecimento de Israel, portanto, não deve ser entendido como uma imposição arbitrária de Deus, mas como uma resposta às escolhas do próprio povo.

Prosperidade e Altives

Deus endureceu o coração de Israel? Sim, mas como isso aconteceu?

O texto de Deuteronômio 32:9-15 apresenta um retrato significativo do relacionamento de Deus com Israel. Deus é descrito como aquele que encontrou Israel em uma terra deserta, cercando-o, instruindo-o e cuidando dele como a menina dos seus olhos. Ele proporcionou abundância, elevando Israel às alturas e concedendo-lhe os melhores frutos da terra. No entanto, a resposta do povo à generosidade divina foi de rebeldia:

“E, engordando-se Jesurum, deu coices; engordaste-te, engrossaste-te, e de gordura te cobriste; e deixou a Deus, que o fez, e desprezou a Rocha da sua salvação.” (Deuteronômio 32:15).

Essa prosperidade concedida por Deus tornou-se a causa do endurecimento do coração de Israel. Ao invés de resultar em gratidão e obediência, a abundância gerou orgulho e uma postura de insensibilidade espiritual. Deus não lhes tolheu o livre-arbítrio, mas permitiu que experimentassem as consequências de sua altivez e ingratidão. Em essência, o endurecimento ocorreu como um resultado direto da resposta rebelde do povo às bênçãos de Deus.

O texto evidencia que, ao proteger a nação de Israel e conceder-lhes o melhor da terra, Deus os abençoou abundantemente, mas essa prosperidade acabou se tornando motivo de rebeldia. Isso é descrito como um “endurecimento” do coração no sentido de que, ao desfrutar das bênçãos divinas, Israel tornou-se orgulhoso e ingrato, esquecendo-se do Senhor que os havia exaltado. No entanto, isso não significa que Deus lhes tolheu o livre-arbítrio ou que estavam destinados a se comportar de forma rebelde.

A narrativa aponta que a responsabilidade pela rebeldia recai sobre Israel. Ao serem protegidos, criados e engrandecidos por Deus, em vez de responderem com obediência e gratidão, eles “deram coices”, ou seja, se rebelaram contra o próprio Deus que os havia sustentado. A prosperidade, que deveria levar à adoração e fidelidade, tornou-se um motivo de orgulho e afastamento.

Esse padrão de comportamento reflete a liberdade humana: mesmo diante das bênçãos divinas, Israel escolheu o caminho da desobediência. O “endurecimento” aqui não é uma imposição divina, mas o efeito da abundância divina sobre um coração que não se humilha diante de Deus. Isso ressalta a responsabilidade do homem em usar suas bênçãos para glorificar a Deus, em vez de se voltar contra Ele.

“Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, tu, ó terra; porque o SENHOR tem falado: Criei filhos, e engrandeci-os; mas eles se rebelaram contra mim. O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ai, nação pecadora, povo carregado de iniquidade, descendência de malfeitores, filhos corruptores; deixaram ao SENHOR, blasfemaram o Santo de Israel, voltaram para trás.” (Isaías 1:2-4).

Israel, ao receber as abundantes bênçãos do Senhor, passou a provocá-Lo ao ciúme, adorando outros deuses e esquecendo-se do Seu cuidado e proteção. Como resposta, o Senhor os desprezou e ocultou o Seu rosto, um ato que simboliza a retirada de Sua presença protetora. Isaías, ao falar das benignidades de Deus, enfatiza que Ele Se fez o salvador de Israel ao tomá-los como Seu povo, tratando-os como filhos legítimos (Isaías 63:8). Contudo, Israel se rebelou, e Deus, em Sua justiça, passou a pelejar contra eles.

Sinal e Maravilha

Esse era o sinal e a maravilha já prevista na Lei: a disciplina de Deus como consequência da desobediência. Porém, mesmo diante dos juízos, Israel recusou-se a ser instruído, mantendo-se obstinado em seu caminho de rebeldia (Isaías 63:10; Deuteronômio 32:5-20).

Diante dessa realidade, Isaías, perplexo pela consequência da desobediência de Israel, questiona:

“Por que, ó SENHOR, nos fazes errar dos teus caminhos? Por que endureces o nosso coração, para que não te temamos? Volta, por amor dos teus servos, às tribos da tua herança.” (Isaías 63:17).

Se Deus deixou registrado que maldições alcançariam o povo como sinais e maravilhas de Sua parte caso não O servissem, poderíamos concluir que Ele estava fazendo Israel errar em Seus caminhos? Ou que endurecera os corações deles para que não obedecessem? A resposta está no propósito divino: a correção que Deus aplicava era um sinal de Seu amor e cuidado paternal. Contudo, em vez de se submeterem à disciplina e retornarem ao caminho correto, Israel endureceu ainda mais a sua cerviz, resistindo ao chamado de arrependimento.

Esse endurecimento, portanto, não foi imposto por Deus, mas foi a resposta obstinada de um povo que, mesmo advertido e corrigido, escolheu desobedecer. As maldições não eram para levar à ruína final, mas para despertar o arrependimento e restaurar a aliança, evidenciando o amor fiel de Deus, que disciplina aqueles a quem considera filhos.

“Ah SENHOR, porventura não atentam os teus olhos para a verdade? Feriste-os, e não lhes doeu; consumiste-os, e não quiseram receber a correção; endureceram as suas faces mais do que uma rocha; não quiseram voltar.” (Jeremias 5:3; 7:26; 17:23).

Eles não conseguiam enxergar o amor de Deus estampado na correção, que, na verdade, era um sinal de Seu cuidado e uma maravilha da Sua fidelidade! Assim como está escrito:

“Filho meu, não rejeites a correção do Senhor, nem te enojes da sua repreensão; porque o Senhor repreende aquele a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem.” (Provérbios 3:11-12).

A disciplina de Deus era um gesto de amor paternal, mas o coração endurecido de Israel os impedia de reconhecer essa verdade. Em vez de se renderem à misericórdia divina e retornarem ao Senhor, resistiram, ignorando que a correção visava restaurá-los e reafirmar a aliança com o Deus que os amava como filhos.

O fato de Jesurum ter engordado devido ao cuidado amoroso do Senhor, tornando-se próspero e enaltecido, levou-o, paradoxalmente, à rebeldia. Em vez de reconhecer e agradecer pela bondade divina, Jesurum “deu coices”, desprezando o próprio Deus que o sustentava. Como resposta à ingratidão e idolatria de Israel, o Senhor os desprezou e escondeu o Seu rosto, retirando a Sua presença protetora.

Esse ato de ocultação não foi arbitrário, mas uma consequência do afastamento voluntário de Israel. Ao rejeitarem o Senhor e se entregarem à soberba e à idolatria, perderam o favor divino. Como está escrito:

“Com deuses estranhos o provocaram a zelos; com abominações o irritaram. Sacrifícios ofereceram aos demônios, não a Deus; aos deuses que não conheceram, novos deuses que vieram há pouco, aos quais não temeram vossos pais. Esqueceste-te da Rocha que te gerou; e em esquecimento puseste o Deus que te formou; O que vendo o SENHOR, os desprezou, por ter sido provocado à ira contra seus filhos e suas filhas; E disse: Esconderei o meu rosto deles, verei qual será o seu fim; porque são geração perversa, filhos em quem não há lealdade. A zelos me provocaram com aquilo que não é Deus; com as suas vaidades me provocaram à ira: portanto eu os provocarei a zelos com o que não é povo; com nação louca os despertarei à ira.” (Deuteronômio 32:16-21).

A rejeição divina era tanto um juízo quanto um chamado ao arrependimento, um apelo para que Israel reconhecesse sua dependência do Senhor e retornasse ao caminho da aliança.

Endurecimento de Israel

O endurecimento de Israel, conforme destacado pelo apóstolo Paulo, deve ser entendido como uma consequência da persistente rebeldia do povo, mesmo diante do cuidado contínuo de Deus. Essa ideia é corroborada pela análise de várias passagens bíblicas, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento.

A Rebeldia e o Cuidado Divino

Paulo, em Romanos 11:25, enfatiza que o endurecimento de Israel é parcial e temporário:

“Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado.”

Esse endurecimento é uma manifestação da rejeição voluntária de Israel às advertências e instruções divinas. Não se trata de um decreto irrevogável da divindade, mas de uma reação ao desprezo do povo pelos sinais e chamados de Deus.

A metáfora apresentada em Ezequiel 16:4-13 ilustra de forma vívida o cuidado divino desde o nascimento de Israel como nação: Deus encontrou o povo em um estado de abandono e o exaltou, adornando-o com bênçãos espirituais e materiais. Contudo, em vez de responder com gratidão e obediência, Israel rejeitou o Senhor, o que resultou no endurecimento de seu coração.

O Endurecimento como Hebraísmo

O termo “endureceu” no contexto bíblico frequentemente funciona como um hebraísmo ou uma expressão idiomática. Ele não implica que Deus determinou de forma fatalista o estado espiritual de Israel, mas refere-se à apostasia que resulta da resistência às bênçãos e às correções divinas.

Esse uso idiomático é reforçado pela confissão registrada em Neemias 9:29; 9:16-17, onde os levitas reconhecem a soberba e a desobediência de Israel:

“E testificaste contra eles, para que voltassem para a tua lei; porém eles se houveram soberbamente, e não deram ouvidos aos teus mandamentos, mas pecaram contra os teus juízos, pelos quais o homem que os cumprir viverá; viraram o ombro, endureceram a sua cerviz, e não quiseram ouvir.”

A responsabilidade pelo endurecimento recai sobre o próprio Israel, que repetidamente escolheu ignorar a palavra de Deus.

A Esperança no Plano de Deus

Paulo também esclarece que o endurecimento de Israel é temporário e faz parte de um plano redentor maior. Ele explica que Israel, atualmente inimigo do evangelho por causa dos gentios, permanece amado por Deus devido à aliança com os patriarcas:

“Quanto ao evangelho, são inimigos por causa de vós; mas quanto à eleição, amados por causa dos pais.” (Romanos 11:28).

Após a plenitude dos gentios, Deus cumprirá Sua promessa de salvar Israel, demonstrando Sua fidelidade e graça. O endurecimento de Israel, longe de ser um ato arbitrário de Deus, é o resultado da rejeição contínua de Sua palavra e cuidado. No entanto, esse endurecimento é temporário, servindo ao propósito de incluir os gentios no plano de salvação e, finalmente, restaurar Israel. Essa perspectiva enfatiza tanto a justiça de Deus em corrigir quanto Sua misericórdia em preservar um remanescente fiel e cumprir Suas promessas.

O endurecimento do coração de Faraó é uma questão teológica que desperta debates quanto à soberania de Deus e o livre-arbítrio humano. A análise dos textos bíblicos revela nuances que ajudam a entender esse evento à luz das Escrituras.

O Significado de חָזַק (Chazaq)

O termo hebraico חָזַק, traduzido como “endurecimento”, tem o sentido básico de “fortalecer” ou “tornar firme”. Em relação a Faraó, o verbo aparece em diferentes formas verbais, que trazem implicações distintas:

  • Hifil: Expressa uma ação causativa, como em Êxodo 4:21; 9:12; 10:20; 14:4, indicando que Deus “fez com que o coração de Faraó se tornasse duro”.
  • Qal: Forma simples que aparece em Êxodo 7:13; 22; 8:19, sugerindo que o próprio Faraó endureceu seu coração.

Essa alternância revela que o endurecimento de Faraó não deve ser interpretado como uma intervenção divina que anulasse ou influenciasse sua vontade, mas como uma interação entre a ordem divina e as decisões pessoais de Faraó.

A Narrativa Bíblica

Ao comissionar Moisés para libertar o povo de Israel, Deus antecipou eventos futuros, afirmando que o rei do Egito não permitiria que os israelitas percorressem três dias de caminho no deserto para sacrificar ao Senhor. Deus prometeu realizar maravilhas, ferindo a terra do Egito, e então Faraó permitiria a saída do povo (Êxodo 3:18-20).

Deus também indicou que, se os sinais iniciais realizados por Moisés não fossem suficientes para convencer o povo, haveria outros sinais mais contundentes (Êxodo 4:8-9). Contudo, Deus deixou claro que endureceria o coração de Faraó para que ele não permitisse a saída de Israel imediatamente (Êxodo 4:21).

Nas primeiras menções sobre Faraó, a narrativa evidencia sua recusa em deixar o povo partir, mesmo diante de sinais e maravilhas, mostrando sua obstinação e autonomia em suas decisões. Já na terceira abordagem, a ideia de endurecimento surge associada à realização dos sinais de Moisés no monte.

Ao retornar ao Egito, Moisés foi instruído por Deus a realizar os sinais perante Faraó, que continuaria a resistir. Apesar dos sinais, como o da vara que se transformou em serpente — posteriormente replicado pelos magos egípcios — Faraó permaneceu inflexível, ainda que a vara de Arão tenha engolido as serpentes dos magos (Êxodo 7:10-13). Esse padrão de resistência se repetiu com outras pragas, como as águas transformadas em sangue e as rãs, sendo seguido por um endurecimento progressivo do coração de Faraó, ora provocado pela própria obstinação, ora descrito como ação divina (Êxodo 7:22-23; 8:15).

Mesmo quando os magos reconheceram que os sinais de Moisés e Arão eram “o dedo de Deus”, Faraó continuou resistindo (Êxodo 8:19). Sua obstinação foi tamanha que ele tentou barganhar, permitindo sacrifícios dentro do Egito, proposta que Moisés rejeitou (Êxodo 8:25-32). Nem mesmo pragas devastadoras, como a peste nos animais e as úlceras, abalaram sua teimosia (Êxodo 9:7-12).

Na praga das saraivas, parte dos egípcios começou a dar crédito às palavras de Moisés, protegendo seus bens, mas Faraó permaneceu irredutível, mesmo após reconhecer seu erro e declarar que Deus era justo (Êxodo 9:27-35). Quando os gafanhotos devastaram o Egito, alguns servos tentaram persuadir Faraó a libertar o povo, mas ele se recusou a permitir a saída completa, insistindo em que apenas os homens poderiam partir (Êxodo 10:10-11).

Com as pragas das trevas e, finalmente, a morte dos primogênitos, Faraó foi forçado a permitir a saída dos israelitas. Contudo, mesmo após libertá-los, seu coração se endureceu novamente, levando-o a perseguir o povo. Deus, entretanto, guiou os israelitas em segurança, utilizando colunas de nuvem e fogo para protegê-los no caminho (Êxodo 13:17-22).

Ao conduzir o povo ao Mar Vermelho, Deus instruiu Moisés a acampar estrategicamente, prevendo que Faraó consideraria os israelitas perdidos e os perseguiria, o que resultaria em glória para Deus ao libertá-los de forma miraculosa (Êxodo 14:1-4). Novamente, o coração de Faraó se endureceu, levando-o a ordenar a perseguição, culminando na destruição de seus exércitos no mar (Êxodo 14:17-28).

Logo no início, Deus antecipa a Moisés que Faraó não permitiria a saída dos israelitas:

“Eu sei que o rei do Egito não vos deixará ir, se não for obrigado por mão forte. Portanto, estenderei a minha mão e ferirei o Egito com todos os meus prodígios, que farei no meio dele; depois disso, ele vos deixará ir.” (Êxodo 3:19-20).

Deus ainda declara que endureceria o coração de Faraó para não deixá-los ir (Êxodo 4:21). Esse anúncio é uma demonstração da onisciência divina, que conhece de antemão o curso dos eventos.

Por outro lado, a Bíblia também registra que Faraó, diante dos sinais e maravilhas realizados por Moisés, deliberadamente se recusou a ceder. Por exemplo:

“O coração de Faraó se endureceu, e ele não os ouviu, como o Senhor tinha dito.” (Êxodo 7:13).

Mesmo quando os magos do Egito reconheceram que os sinais eram o “dedo de Deus”, Faraó persistiu em sua teimosia:

“Mas o coração de Faraó se endureceu, e ele não os ouviu, como o Senhor tinha dito.” (Êxodo 8:19).

Essa narrativa evidencia que o endurecimento de Faraó não foi um ato unilateral de Deus para tolher sua liberdade, mas uma interação entre a determinação divina tendo por base sinais insofismável do seu poder e a obstinação humana. Os sinais e maravilhas revelaram o poder de Deus, mas também expuseram a teimosia de Faraó, que recusou ceder até ser completamente derrotado.

O Papel da Interação Divina e Humana

Em 1 Samuel 6:6, os filisteus fazem uma reflexão que ajuda a compreender o endurecimento de Faraó:

“Por que endureceríeis o vosso coração, como os egípcios e Faraó endureceram os seus corações?”

Esse versículo sugere que o endurecimento do coração de Faraó não foi uma imposição divina unilateral. Em vez disso, foi uma resposta à sua própria disposição obstinada. Deus não anulou o livre-arbítrio de Faraó, mas, ao confrontá-lo com Sua palavra e poder, permitiu que sua dureza natural se manifestasse plenamente.

Perspectiva Teológica

O endurecimento do coração de Faraó resultou de uma interferência direta no livre-arbítrio? Certamente não! A experiência de Faraó reflete o princípio contido em Provérbios:

“O homem que muitas vezes repreendido endurece a cerviz, de repente será destruído sem que haja remédio.” (Provérbios 29:1).

Um exemplo semelhante pode ser visto em Belsazar, filho de Nabucodonosor. Deus concedeu ao pai de Belsazar domínio sobre povos, nações e línguas, com poder de vida e morte. Contudo, Nabucodonosor, ao se exaltar e endurecer-se em soberba, foi derrubado de sua glória, sendo humilhado por Deus, que o fez pastar como os animais do campo. Apesar de conhecer o destino de seu pai, Belsazar não se humilhou, mas profanou os utensílios do templo (Daniel 5:18-23):

“Mas, quando o seu coração se exaltou, e o seu espírito se endureceu em soberba, foi derrubado do seu trono real, e passou dele a sua glória.” (Daniel 5:20).

O endurecimento do coração de Faraó pode ser comparado ao que aconteceu com Israel quando, após receber proteção e prosperidade da parte de Deus, rebelou-se contra Ele. Esse endurecimento não foi uma ação direta de Deus, mas consequência indireta de Sua bondade e da resposta soberba do homem. De forma semelhante, ao realizar sinais e maravilhas no Egito e permitir que os magos de Faraó replicassem alguns deles, Deus, indiretamente, contribuiu para o endurecimento de Faraó. As pragas, em vez de levarem ao arrependimento, reforçaram sua obstinação.

O endurecimento de Faraó, portanto, não pode ser interpretado como um fatalismo à maneira dos mitos gregos. Além disso, esse episódio não trata da salvação pessoal de Faraó, mas de seu papel em tornar o nome de Deus conhecido em toda a terra, fosse ele permitindo ou resistindo à saída de Israel.

Lutero, ao abordar o endurecimento de Faraó, afirmou:

“Quando Deus disse: ‘Endurecerei o coração de Faraó’, Ele estava dizendo: ‘Farei com que o coração do Faraó se endureça.’ Deus, com a mais absoluta certeza, sabia e, com a mais absoluta certeza, declarou que o coração do Faraó se endureceria.” (Capítulo 3 de Nascido Escravo).

Contudo, a própria Escritura registra em várias ocasiões:

“Vendo, pois, Faraó que havia descanso, endureceu o seu coração, e não os ouviu, como o Senhor tinha dito.” (Êxodo 8:15).

No hebraico, o verbo כָּבַד (kabed), no Qal, indica que o coração de Faraó “se tornou pesado” e, portanto, resistente. Já o verbo חָזַק (chazaq), no Hifil, apresenta um sentido causativo, sugerindo que Deus endureceu o coração de Faraó. Mesmo assim, a gramática não sustenta uma posição doutrinária de que Deus obscureceu a mente de Faraó ou interferiu diretamente em sua psique.

O Salmo 17:10 fornece um insight adicional:

“Na sua gordura se encerram, com a boca falam soberbamente.”

Aqui, percebe-se que os homens se endurecem em sua obstinação, enquanto suas palavras refletem soberba.

Ao afirmar que Deus utiliza a maldade presente no coração humano para Seus desígnios, Lutero diz:

“Deus não cria uma nova maldade no coração dos homens. Antes, Ele se utiliza do mal que já se encontra no coração deles, visando aos seus próprios bons e sábios desígnios.”

Essa visão, no entanto, parece contrastar com as Escrituras:

“Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta.” (Tiago 1:13).

“Ao Todo-Poderoso não podemos alcançar; grande é em poder; porém a ninguém oprime em juízo e grandeza de justiça.” (Jó 37:23).

“Ora, o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade.” (2 Coríntios 3:17).

Portanto, o endurecimento de Faraó deve ser entendido como o resultado de sua própria soberba e recusa em se humilhar diante de Deus, amplificada pelas circunstâncias em que Deus revelou Sua soberania, sem que isso implicasse a anulação de sua liberdade de escolha.

Vaticínio e Preordenação

Nem mesmo o fato de Deus ter antecipado os eventos relacionados a Faraó implica que Ele tenha interferido no livre-arbítrio deste para determinar o desenrolar dos acontecimentos. A onisciência e onipresença de Deus não significam que Ele controla ou preordena as ações humanas. Antes, ao revelar eventos futuros, Deus evidencia Sua grandeza, Sua soberania e a imutabilidade de Suas promessas. Esses eventos se desdobram naturalmente, sem interferência divina direta, pois para Deus, passado, presente e futuro são um eterno agora.

A eternidade de Deus transcende as limitações do espaço-tempo. Para Ele, todas as frações de tempo coexistem como o presente. Assim, ao antecipar eventos aos profetas, Deus não intervém, mas contempla o que para Ele já é realidade. Como está escrito:

“O que é, já foi; e o que há de ser, também já foi; e Deus pede conta do que passou.” (Eclesiastes 3:15).

Nas abordagens de Erasmo e Lutero sobre Judas ter se tornado traidor, encontram-se equívocos. A onisciência de Deus, sendo imutável, não se confunde com a presciência, que não é um atributo divino, mas refere-se aos eventos que Deus revela aos profetas, podendo ou não se concretizar, como exemplificado em:

“Portanto, diz o Senhor Deus de Israel: Na verdade tinha falado eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém agora diz o Senhor: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram honrarei, porém os que me desprezam serão desprezados.” (1 Samuel 2:30).

Deus antecipa Seus desígnios para que, ao se cumprirem, evidenciem Sua soberania e afastem a falsa atribuição de Suas obras a ídolos, como Isaías destaca:

“Desde a antiguidade anunciei as coisas que haviam de vir; do meu próprio coração saíram as palavras, e eu as pronunciei. Fui Eu quem as realizou de repente, e assim elas ocorreram.” (Isaías 48:3-5).

O caso de Judas também não sugere fatalismo. O fato de Deus ter previsto sua traição não implica que ele estivesse destinado a isso. Judas decidiu trair a Cristo por livre e espontânea vontade, possivelmente buscando lucros materiais e acreditando que, caso Jesus utilizasse Seu poder contra os algozes, isso impulsionaria uma revolução. Judas controlava suas decisões, assim como Caim, que também tinha a oportunidade de mudar sua conduta. Deus apenas antecipou o evento aos profetas porque, em Sua onisciência, já havia contemplado o que aconteceria.

Ainda assim, mesmo após a traição, Judas poderia ter experimentado o arrependimento e encontrado a graça de Deus, como ocorreu com Pedro. Sua tragédia foi não confiar na misericórdia divina.

Lutero, ao afirmar que Judas não tinha livre-arbítrio por causa da presciência divina, incorre em erro. Se Deus revela um evento futuro, isso certamente ocorrerá, mas não porque Ele influencia as escolhas humanas. Deus não interfere na vontade das pessoas, como evidenciado na negação de Pedro. Quando Jesus previu que Pedro O negaria três vezes antes que o galo cantasse, Pedro não perdeu seu livre-arbítrio. Ele negou a Cristo não por predestinação, mas porque, naquele momento, ainda não compreendia plenamente o propósito do Messias.

De forma semelhante, Paulo, ao ser alertado sobre os perigos em Jerusalém, não recuou. Mesmo diante de profecias que indicavam sua prisão e morte, Paulo exerceu sua liberdade e decidiu prosseguir, movido pelo desejo de pregar em Jerusalém (Atos 21:11-14).

Deus também pode revelar não apenas o futuro, mas possibilidades baseadas em escolhas humanas. Por exemplo, quando Davi estava em Queila, Deus revelou que, caso permanecesse, seria entregue por seus habitantes. Davi, então, decidiu sair, e o evento previsto não ocorreu (1 Samuel 23:12).

Conclui-se, portanto, que a presciência divina não anula o livre-arbítrio humano. Deus revela o futuro como parte de Sua soberania, mas respeita plenamente as decisões individuais. A revelação serve para demonstrar Seu poder e fidelidade, jamais para impor um destino.

Entregues aos Desejos dos Seus Corações

É um erro interpretar que Deus endureceu diretamente o coração da nação de Israel, negando-lhes a possibilidade de arrependimento. O que realmente aconteceu foi que Deus entregou o povo aos desejos de seus próprios corações, permitindo que andassem conforme seus próprios conselhos e escolhas. Como está escrito:

“Mas o meu povo não quis ouvir a minha voz, e Israel não me quis. Portanto, eu os entreguei aos desejos dos seus corações, e andaram nos seus próprios conselhos.” (Salmo 81:11-12).

Deus, em Sua misericórdia, havia libertado Israel dos fardos do Egito em resposta ao clamor do povo que sofria sob a escravidão. Contudo, após serem libertos, Israel não permaneceu fiel ao Senhor. Em vez disso, voltaram-se para deuses estranhos e rejeitaram a aliança. Por causa dessa rebeldia deliberada, Deus os entregou a si mesmos, permitindo que colhessem os frutos de suas próprias escolhas.

O apóstolo Paulo reflete esse princípio em Romanos, ao descrever como Deus age com aqueles que rejeitam conhecê-Lo e glorificá-Lo. Embora o texto seja muitas vezes lido como referência aos gentios, aplica-se exclusivamente a Israel, que, mesmo conhecendo a Deus, não permaneceu fiel:

“Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Antes, em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu.” (Romanos 1:21).

Assim como ocorreu com Israel, aqueles que rejeitam o conhecimento de Deus são entregues às concupiscências de seus próprios corações. Deus permite que sigam suas paixões desordenadas e ideias perversas, evidenciando, no caso dos filhos de Israel, como transgressores da lei (Tiago 2:10-11). Essa entrega não implica imposição, mas expõe a consequência natural da rebeldia e do afastamento da verdade de Deus.

“Por isso também Deus os entregou às concupiscências de seus corações, à imundícia, para desonrarem seus corpos entre si.” (Romanos 1:24).

“E, como eles não se importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convêm.” (Romanos 1:28).

O Endurecimento como Consequência, Não Causa

O endurecimento do coração de Israel não foi causado diretamente por Deus, mas foi uma consequência da rejeição deliberada do Seu senhorio. Deus, em Sua soberania, permitiu que o povo experimentasse os resultados de sua rebeldia, entregando-os às suas próprias paixões e conselhos. Esse ato de entrega não nega o livre-arbítrio humano, mas reafirma a responsabilidade de cada indivíduo ou nação em suas escolhas.

O propósito de Deus em entregar Israel aos seus próprios caminhos não era destruí-los, mas corrigi-los. A entrega era, na verdade, uma oportunidade para que reconhecessem sua necessidade de Deus e retornassem a Ele. A disciplina divina é sempre um gesto de amor, visando restauração, e não condenação final.

Lutero e o Amor e o Ódio

As considerações de Lutero sobre o amor e o ódio de Deus, à luz das Escrituras, mostram-se descabidas. Observe:

“O amor e a ira de Deus não estão sujeitos a alterações, conforme ocorre conosco. Em Deus, ambos são eternos e imutáveis. Foram fixados muito antes que o ‘livre-arbítrio’ fosse possível. Vemos nisso que nem o amor nem a ira de Deus esperam pela reação humana, mas antecedem a mesma. […] O que poderia ter feito Deus amar a Jacó ou odiar a Esaú? Certamente, não por qualquer coisa que eles tivessem feito, pois a atitude de Deus para com eles foi estabelecida e declarada antes mesmo de terem nascido, e não havia muita atuação do ‘livre-arbítrio’ naquela ocasião!” (Lutero)

Primeiramente, é importante destacar que a análise de Lutero confunde os termos “amor” (אָהַב) e “ódio” (שָׂנֵא), presentes em Malaquias 1:2-3, com “amor” (ἀγαπάω) e “ódio” (μισέω), utilizados em Mateus 6:24. Ambas passagens contrapõem amor e ódio, e não amor e ira (ὀργή). Lutero, ao correlacionar amor e ira, desvia-se da mensagem clara do texto bíblico.

Considere as passagens:

  • “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom.” (Mateus 6:24)
  • “Eu vos tenho amado, diz o SENHOR. Mas vós dizeis: Em que nos tem amado? Não era Esaú irmão de Jacó? disse o SENHOR; todavia amei a Jacó, e odiei a Esaú; e fiz dos seus montes uma desolação, e dei a sua herança aos chacais do deserto.” (Malaquias 1:2-3)

No contexto de Malaquias, o amor de Deus por Jacó refere-se à preservação da descendência de Israel, fundamentada na promessa feita aos patriarcas:

“Mas, porque o SENHOR vos amava, e para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito.” (Deuteronômio 7:8)

Por outro lado, o ódio de Deus por Esaú significa que sua linhagem não foi preservada, resultando em desolação:

“Mas eu desnudarei a Esaú, descobrirei os seus esconderijos, e ele não se poderá esconder; será destruída a sua descendência, e seus irmãos, e seus vizinhos, e ele deixará de existir.” (Jeremias 49:10)

Portanto, o amor de Deus é demonstrado ao preservar Israel por causa da promessa, enquanto o ódio por Esaú reflete a ausência dessa preservação.

Além disso, Lutero erra ao afirmar que o amor e o ódio de Deus são eternos e imutáveis da mesma forma que atributos como a onipotência ou a onisciência. Quando as Escrituras falam do amor e do ódio de Deus, a relação é funcional e baseada na obediência ou rejeição dos mandamentos:

“Saberás, pois, que o SENHOR teu Deus, ele é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e guardam os seus mandamentos. E retribui no rosto qualquer dos que o odeiam, fazendo-o perecer; não será tardio ao que o odeia; em seu rosto lho pagará.” (Deuteronômio 7:9-10)

Abraão amou a Deus ao obedecer, e por isso, a misericórdia de Deus se estende à sua descendência. Em contraste, os seiscentos mil homens que saíram do Egito pereceram no deserto por rejeitarem os mandamentos de Deus. Assim, o amor e o ódio divinos não são atributos absolutos ou eternos, mas dependem diretamente da postura de obediência ou rejeição do homem.

Concluindo, a leitura de Lutero confunde conceitos essenciais. O amor de Deus não se relaciona com a ira, mas com a obediência. O ódio de Deus, por sua vez, refere-se à rejeição daqueles que não se submetem aos seus mandamentos, sem qualquer implicação de um fatalismo arbitrário.

O amor e a misericórdia

O erro de muitos em Israel está em acreditar que o amor de Deus pela nação, fundamentado na aliança com os patriarcas, pode lhes garantir a salvação. Não! O amor destacado por Malaquias em relação a Jacó refere-se à preservação da nação como o canal por onde o Cristo viria, conforme a promessa de que Ele se assentaria no trono de Davi, seu pai. A salvação, contudo, é individual, não coletiva.

Não basta ser de Israel para ser considerado um verdadeiro israelita, assim como não basta ser descendente de Abraão para ser filho de Abraão. Isso fica claro pelo exemplo de Ismael e Esaú, que, embora descendentes da carne de Abraão, não foram considerados israelitas (Romanos 9:6-9). Por isso está escrito:

“Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus mandamentos.” (Êxodo 20:5-6)

Quando Israel pecou, a intercessão de Moisés não foi suficiente para absolver o povo de sua culpa. Deus deixou claro que aquele que peca será riscado do seu livro, pois Ele é zeloso e visita a iniquidade nos filhos daqueles que O odeiam:

“Assim tornou-se Moisés ao SENHOR, e disse: Ora, este povo cometeu grande pecado fazendo para si deuses de ouro. Agora, pois, perdoa o seu pecado, se não, risca-me, peço-te, do teu livro, que tens escrito. Então disse o SENHOR a Moisés: Aquele que pecar contra mim, a este riscarei do meu livro. Vai, pois, agora, conduze este povo para onde te tenho dito; eis que o meu anjo irá adiante de ti; porém no dia da minha visitação visitarei neles o seu pecado.” (Êxodo 32:31-35)

A nação de Israel não foi completamente destruída naquela ocasião devido à intercessão de Moisés e, sobretudo, à fidelidade de Deus à promessa feita a Abraão, Isaque e Jacó (Êxodo 32:9-14). Contudo, se Deus destruísse a nação, os egípcios poderiam interpretar que o Senhor os tirara do Egito apenas para exterminá-los, ignorando que Deus é justo e pune o pecado (Isaías 52:5). Isso também explica por que o nome de Deus foi blasfemado entre os gentios por causa de Israel.

Lutero erra em dois pontos importantes: primeiro, ao afirmar que o amor e a ira de Deus não sofrem alterações; segundo, ao dizer que nem o amor nem a ira de Deus dependem da reação humana. Na verdade, o amor e o ódio de Deus são demandados pela resposta humana. Deus honra aqueles que O honram e rejeita os que O desprezam:

“…porém agora diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram honrarei, porém os que me desprezam serão desprezados.” (1 Samuel 2:30)
“Eu amo aos que me amam, e os que cedo me buscarem, me acharão.” (Provérbios 8:17)

O que é eterno e imutável em Deus não são as manifestações de amor ou ódio, mas a Sua fidelidade à Sua palavra. Ele permanece fiel, independentemente da reação humana, pois não pode negar a si mesmo:

“Palavra fiel é esta: que, se morrermos com ele, também com ele viveremos; Se sofrermos, também com ele reinaremos; se o negarmos, também ele nos negará; Se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo.” (2 Timóteo 2:11-13)

A fidelidade de Deus garante que aqueles que O amam serão alvos de Sua misericórdia, enquanto os que O desprezam experimentarão Sua justiça. Essa fidelidade reflete-se tanto no amor de Deus pelos patriarcas quanto na promessa de salvação individual. Assim, Deus não pode salvar quem é infiel, pois isso seria negar a Sua própria palavra e natureza.

A Fidelidade de Deus a Sua Palavra

Quando Moisés intercedeu pelo povo de Israel após o pecado cometido, tanto ele quanto o povo já sabiam que Deus visita a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que O odeiam, e que Ele demonstra misericórdia a milhares dos que O amam e guardam os Seus mandamentos (Êxodo 20:5-6). O pedido de Moisés, portanto, só faria sentido caso Deus fosse infiel à Sua própria palavra. Por isso, Deus respondeu a Moisés, reafirmando Sua fidelidade:

“Porém ele disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti, e proclamarei o nome do SENHOR diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer.” (Êxodo 33:19)

Essa declaração sublinha que a oração de Moisés não alteraria o que estava estabelecido por Deus: Ele se compadece e tem misericórdia daqueles que O amam, e isso é imutável. A intercessão por aqueles que pecaram (ou seja, que odiaram a Deus) seria infrutífera, pois Deus age conforme Sua palavra e Sua justiça.

Utilizar Êxodo 33:19 para defender que Deus salva o pecador com base exclusiva em Sua soberania é desconsiderar o contexto das Escrituras. A misericórdia de Deus é dirigida aos que O temem, honram, obedecem e buscam, conforme enfatizado em passagens como:

“Eis que os olhos do SENHOR estão sobre os que o temem, sobre os que esperam na sua misericórdia.” (Salmos 33:18);

“Pois assim como o céu está elevado acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem.” (Salmos 103:11);

“O SENHOR se agrada dos que o temem e dos que esperam na sua misericórdia.” (Salmos 147:11)

Esses versos, através do paralelismo poético hebraico, deixam evidente que a misericórdia de Deus é concedida àqueles que O temem. A repetição em Êxodo 33:19 – “terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer” – é um recurso estilístico (anáfora) para enfatizar que Deus age conforme Sua palavra e Sua justiça.

A palavra de Deus jamais falhou. Ser descendente da carne de Abraão não confere automaticamente a condição de israelita ou de filho de Abraão, como Paulo explica:

“Porque nem todos os que são de Israel são israelitas; Nem por serem descendência de Abraão são todos filhos…” (Romanos 9:6-7)

Seguindo essa lógica, não há injustiça da parte de Deus. Ele tem agido ao longo da história segundo a palavra anunciada a Moisés (Romanos 9:14-16). Quando Moisés viu o povo pecar, buscou a intervenção divina e convocou os levitas, que exterminaram três mil homens em Israel na tentativa de obter o favor de Deus. No entanto, a misericórdia de Deus não depende da vontade ou do esforço humano, mas da fidelidade de Deus à Sua palavra:

“Assim, pois, não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece.” (Romanos 9:16)

A justiça de Deus é revelada em resposta ao amor e ao ódio dos homens, conforme Sua palavra:

“Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu depois os que não creram.” (Judas 1:5)

Deus é fiel à Sua palavra, distribuindo misericórdia àqueles que O amam e corrigindo os que O rejeitam, demonstrando que Sua justiça e bondade permanecem inalteráveis.

A Palavra de Deus não Faltou

No capítulo 9 de Romanos, Paulo inicia sua argumentação afirmando que a palavra de Deus não falhou:

“Não que a palavra de Deus haja faltado.” (Romanos 9:6)

Ele faz uma pausa para explicar como Deus cumpriu Sua promessa e enfatiza que a palavra da promessa não se restringiu a um único evento ou descendente, mas se manifestou de diferentes maneiras, culminando no amor a Jacó e no ódio a Esaú (Romanos 9:13).

A defesa central de Paulo, iniciada no versículo 6, é retomada no versículo 14, onde ele antecipa uma possível objeção:

“Que diremos, pois? Que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma.”

Para demonstrar que não há injustiça em Deus, Paulo cita o que foi dito a Moisés:

“Compadecer-me-ei de quem me compadecer.” (Êxodo 33:19)

E reforça com a palavra dirigida a Faraó:

“Para isto mesmo te levantei; para em ti mostrar o meu poder, e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra.” (Romanos 9:17)

A conclusão de Paulo no versículo 18 – “Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer.” – deve ser compreendida à luz do contexto maior: Deus permanece fiel à Sua palavra, que nunca falhou. Ele demonstrou amor por Jacó porque deu a Abraão uma boa promessa que foi transmitida através de sua linhagem. Já com relação ao Egito, Deus não deu uma palavra semelhante; em vez disso, Ele permitiu que a nação se erguesse para que Sua glória fosse manifesta por meio de sinais e juízos.

Embora como nação o Egito tenha sido destinado a evidenciar o poder de Deus, individualmente muitos egípcios responderam positivamente à palavra de Moisés e escaparam de certas pragas. Por exemplo:

“Quem dos servos de Faraó temia a palavra do Senhor fez fugir os seus servos e o seu gado para as casas; mas aquele que não pôs no coração a palavra do Senhor deixou os seus servos e o seu gado no campo.” (Êxodo 9:20-21)

Assim, o Egito, como nação, foi abençoado anteriormente pela administração de José e cresceu em poder e riqueza, mas Deus usou essa prosperidade para cumprir Seu propósito de demonstrar Seu poder e fazer Seu nome conhecido em toda a terra. Em suma, enquanto Deus mostra compaixão àqueles que estão sob Suas promessas, Ele endurece aqueles que, em Sua soberania, escolhe para revelar Sua glória de maneira distinta.

Por que Deus ama e odeia?

A explicação de Erasmo é inadequada ao afirmar que o ódio de Deus não é como o ódio humano, embora capture parcialmente a distinção. Contudo, a análise de Lutero também apresenta imprecisões terminológicas, especialmente ao declarar:

“Ora, todos sabem que o amor e a ira de Deus não se assemelham às paixões humanas; porém, a questão com que ora nos defrontamos não requer que perguntemos como Deus ama ou odeia, mas por que Deus ama ou odeia.”

A exposição de Paulo em Romanos 9:6-13, contudo, não trata de questões de salvação ou perdição individual. O objetivo central de Paulo é demonstrar que a promessa feita por Deus aos pais não falhou. A declaração de que “nem todos os que são de Israel são israelitas” e que “nem por serem descendência de Abraão são todos filhos” (Romanos 9:6-7) esclarece que a fidelidade de Deus à Sua palavra transcende a mera descendência física.

A palavra da promessa

Isso significa que a palavra de Deus se cumpriu? Sim, absolutamente. A promessa de Deus, declarada a Abraão, afirmou claramente: “Em Isaque será chamada a tua descendência” (Gênesis 21:12). Esse anúncio implicou que Ismael, embora fosse filho de Abraão segundo a carne, não seria o herdeiro da promessa divina. Como consequência, Abraão teve que atender ao pedido de Sara e dispensar Ismael para que ele não herdasse com Isaque (Gênesis 21:10-12).

E qual era essa palavra da promessa? Deus havia declarado: “Por este tempo virei, e Sara terá um filho” (Gênesis 18:10, 14). O nascimento de Isaque confirmou o cumprimento dessa promessa, evidenciando que a palavra de Deus nunca falhou (Gênesis 21:1).

Paulo, entretanto, vai além. Ele demonstra que a palavra de Deus não falhou também no caso de Rebeca, quando concebeu de Isaque (Romanos 9:9-10, 12). A promessa feita a Rebeca foi:

“Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão das tuas entranhas; e um povo será mais forte do que o outro, e o maior servirá ao menor.” (Gênesis 25:23).

A fidelidade de Deus

A exposição permanece centrada na fidelidade de Deus em cumprir a promessa feita a Abraão, evidenciada pelo cuidado divino em preservar a nação da qual o Descendente prometido haveria de surgir.

Assim como Ismael e Isaque deram origem a dois povos distintos — os árabes e os judeus —, Esaú e Jacó originaram os edomitas e os israelitas. Ismael, embora descendente de Abraão, não herdou com Isaque, que foi escolhido como a linhagem pela qual o Descendente seria chamado. No entanto, o caso de Esaú e Jacó apresentou um desafio diferente, pois não era possível que Isaque deserdasse um dos seus filhos. A definição da linhagem seria resolvida por meio da primogenitura.

A situação tornou-se ainda mais complexa no caso de Esaú e Jacó, pois, ao nascerem, não houve interrupção no parto que pudesse definir claramente o primogênito. Embora gêmeos, Jacó nasceu agarrado ao calcanhar de Esaú, deixando em aberto a questão de qual dos dois seria o portador da linhagem do Descendente. Isso porque a palavra da promessa feita a Rebeca — “o maior servirá o menor” — foi dada antes do nascimento das crianças e, portanto, antes que tivessem praticado qualquer bem ou mal.

Duas nações e o Propósito de Deus

O que Deus revelou a Rebeca dizia respeito ao futuro das nações que descenderiam de seus dois filhos. Mas por que Deus antecipou esses eventos? Para demonstrar que o propósito divino, fundamentado na eleição, permanece.

No texto grego de Romanos 9:11, encontramos a expressão:

“ἵνα ἡ κατ’ ἐκλογὴν τοῦ θεοῦ πρόθεσις μένῃ οὐκ ἐξ ἔργων ἀλλ’ ἐκ τοῦ καλοῦντος” (Stephanus Textus Receptus, 1550).

Sua tradução é:

“Para que o propósito de Deus, segundo a eleição, permaneça, não por obras, mas por aquele que chama.”

É interessante notar que a palavra “firme” não aparece no texto grego. O verbo μένῃ (menēi), usado no subjuntivo presente e traduzido como “permaneça” ou “continue”, é intransitivo, ou seja, não requer um complemento que qualifique o propósito de Deus como “firme”.

A essência do que o apóstolo Paulo evidencia na frase é que o propósito de Deus é, por sua própria natureza, inabalável e independente de qualquer esforço humano. Ao introduzir o termo “firme”, alguns tradutores parecem sugerir, equivocadamente, que Deus precisaria empenhar esforços para que o seu propósito permanecesse. Contudo, essa ideia não reflete a natureza divina. Não foi o propósito de Deus que foi estabelecido em Jacó; pelo contrário, a eleição de Jacó foi consequência do propósito eterno de Deus.

A vontade de Deus, conforme Ele mesmo determinou, foi concebida em Si mesmo e tem como objetivo congregar todas as coisas em Cristo (Efésios 1:9). O propósito eterno de Deus é, portanto, centrado em Cristo (Efésios 3:11). Sendo Cristo o eleito de Deus, Ele é a base de toda a eleição. Deus o escolheu, como evidenciado na declaração profética:

“Eis aqui o meu servo, a quem sustento, o meu eleito, em quem a minha alma se compraz; pus o meu espírito sobre ele; ele trará justiça aos gentios.” (Isaías 42:1).

Esse propósito de Deus, fundamentado em Cristo, foi estabelecido antes mesmo de Esaú e Jacó praticarem bem ou mal. É por isso que, ao revelar a Rebeca que “o maior serviria ao menor”, Deus já estava demonstrando que sua escolha não se baseava nas ações dos homens, mas no seu plano eterno estabelecido em Cristo. Assim, a palavra de Deus não falhou. Ela se cumpriu plenamente, como está escrito: “Amei a Jacó e odiei a Esaú.”

Portanto, a eleição de Jacó não se fundamenta em obras ou ações humanas, mas no soberano propósito de Deus, que já estava estabelecido em Cristo antes da fundação do mundo.

As Promessas Cumpriram

As três promessas destacadas por Paulo no capítulo 9 de Romanos têm como propósito demonstrar que as promessas de Deus, direcionadas ao cumprimento de seu plano em trazer o Descendente, não falharam. Uma das evidências desse cumprimento é o fato de Deus ter declarado: “Amei a Jacó e odiei a Esaú”. Mas como Deus ama ou odeia?

No caso de Esaú e Jacó, o amor de Deus estava relacionado à questão da primogenitura. Esaú, ao desprezar seu direito de primogenitura e vendê-lo a Jacó, abriu mão do privilégio de ser a linhagem pela qual a nação que abrigaria o Descendente seria estabelecida. Em resposta, Deus amou Jacó ao confirmar-lhe a bênção e conceder-lhe o direito de ser o patriarca da linhagem escolhida.

Essa distinção é corroborada pelo profeta Isaías, que evidencia o papel de Jacó como alvo do amor de Deus e de Israel como o eleito:

“Por amor de meu servo Jacó, e de Israel, meu eleito…” (Isaías 45:4).

Portanto, o capítulo 9 de Romanos não trata de soberania divina no sentido de fatalismo, nem de presciência, salvação ou perdição individuais. A proposta de Paulo é evidenciar que a palavra da promessa não falhou, mesmo que nem todos tenham crido. A incredulidade de alguns em Israel não anula a fidelidade de Deus, como ele já havia afirmado anteriormente:

“Pois que? Se alguns foram incrédulos, a sua incredulidade aniquilará a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma.” (Romanos 3:3-4).

Assim, a fidelidade de Deus à sua promessa é reafirmada, independentemente da resposta humana, destacando que sua palavra se cumpre de forma soberana, mas sem violar os princípios de justiça e livre-arbítrio.

Quem resistiu à vontade de Deus?

A tradução do texto grego “Ἐρεῖς οὖν μοι Τί ἔτι μέμφεται τῷ γὰρ βουλήματι αὐτοῦ τίς ἀνθέστηκεν” é: “Tu, então, dirás a mim: Por que ainda censura? Pois quem resistiu à sua vontade?” Após concluir que a promessa de Deus não falhou, Paulo antecipa um questionamento possível dos seus interlocutores.

O apóstolo projeta a seguinte objeção: se Deus detém poder absoluto e ninguém pode resistir à sua vontade, por que Ele ainda censura o culpável? Por que arguir Faraó, por exemplo, se Deus poderia executar seu juízo imediatamente? Esse raciocínio levanta questões sobre a justiça divina e a longanimidade.

Caso esse questionamento fosse levantado, Paulo recorre às palavras de Isaías:

“Ai daquele que contende com o seu Criador! O caco entre outros cacos de barro! Porventura dirá o barro ao que o formou: Que fazes? Ou a tua obra: Não tens mãos?” (Isaías 45:9).

Da mesma forma que seus interlocutores poderiam levantar uma objeção, Paulo apresenta três perguntas retóricas baseadas no contexto de Isaías 45:9:

  1. Quem és tu, ó homem, para contradizer o Criador?
    O homem, como um simples caco de barro entre outros, não tem legitimidade para questionar aquele que o formou.
  2. Pode o objeto criado interpelar seu Criador, dizendo: “Por que me fizeste assim”?
    O barro não possui voz para questionar o propósito de quem o moldou.
  3. Deus não tem autoridade para moldar da mesma massa vasos para honra e para desonra?
    O Oleiro tem pleno poder sobre o barro, podendo criar diferentes vasos segundo sua vontade.

Essas perguntas enfatizam a soberania de Deus e a inadequação de qualquer desafio humano ao seu propósito.

A resposta ao questionamento do versículo 19 encontra-se no versículo 22:

“Querendo Deus mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a destruição.”

Mas quem são esses vasos da ira? Para esclarecer, é necessário considerar o versículo seguinte.

“Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou” (Romanos 9:23).

Deus quis revelar tanto sua ira quanto seu poder, mas também demonstrar as riquezas de sua glória por meio dos vasos de misericórdia. E quem são esses vasos de misericórdia? Paulo esclarece que eles são os salvos em Cristo, a igreja composta de pessoas chamadas por Deus, tanto dentre os judeus quanto dentre os gentios.

Adão e Cristo

Se os membros do corpo de Cristo são identificados como vasos de misericórdia (para honra), então os vasos da ira (para desonra) representam toda a humanidade gerada da semente corruptível de Adão. Pela transgressão de Adão, os vasos da ira foram preparados para a perdição, enquanto os vasos de misericórdia foram estabelecidos para a glória.

A Justiça de Deus nos Vasos

A discussão sobre os vasos preparados para a ira e os estabelecidos para a glória começa com a pergunta: “Há injustiça da parte de Deus?” (Romanos 9:14).

  1. Não há injustiça porque Deus age em fidelidade à Sua palavra:
    A resposta é clara: não há injustiça. Em primeiro lugar, porque Deus concede misericórdia àqueles que O amam e retribui diretamente aos que O odeiam.
  2. Não há injustiça, mesmo em casos como o de Faraó:
    Em segundo lugar, mesmo em casos como o de Faraó, que foi levantado para que Deus demonstrasse Seu poder, não há injustiça da parte do Senhor (Romanos 9:17).

A Paciência de Deus com os Vasos de Ira

Faraó serve como um exemplo de como Deus, em Sua paciência, suportou alguém que endureceu o coração. Ele retardou a manifestação de Sua ira, utilizando a obstinação de Faraó para evidenciar Seu poder e fazer com que Seu nome fosse proclamado em toda a terra. Apesar de Faraó ser um vaso preparado para a ira, como todos os descendentes de Adão, Deus o suportou com muita paciência, mostrando Sua longanimidade.

Embora a promessa de Deus não tenha faltado, muitos em Israel, porém, desprezaram a benignidade, a paciência e a longanimidade de Deus. Devido à dureza de seus corações impenitentes, entesouravam para si ira para o dia do juízo (Romanos 2:4-5). Embora fossem vasos de ira preparados para a perdição, eles ignoravam a paciência divina, que não tinha como objetivo condená-los, mas levá-los ao arrependimento.

“O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; mas é longânimo para conosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos venham a arrepender-se” (2 Pedro 3:9).

A Igreja e Israel

A igreja é formada por vasos de misericórdia, chamados por Deus tanto dentre os judeus quanto dos gentios, como ensina o apóstolo Paulo apontando o predito pelo profeta Oséias:

“Chamarei meu povo ao que não era meu povo; E amada à que não era amada. E sucederá que no lugar em que lhes foi dito: Vós não sois meu povo; Aí serão chamados filhos do Deus vivo” (Romanos 9:25-26).

O profeta Oséias antecipou eventos futuros em que Deus estenderia Sua graça a um povo que antes não era considerado Seu. Ele passaria a chamar de “meu povo” aqueles que anteriormente haviam sido rejeitados, e de “amada” aquela que antes não era amada. Isso marca um ponto de transição, no qual a condição de filhos do Deus vivo seria conferida a outros, enquanto os filhos de Israel, por sua incredulidade, perderiam essa posição privilegiada, como descrito em Deuteronômio 32:5:

“Corromperam-se contra ele; seus filhos não são mais seus”.

O Remanescente de Israel e o Amor de Deus

Quanto a Israel, o profeta Isaías declarou:

“Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo. Porque ele completará a obra e abreviá-la-á em justiça; porque o Senhor fará breve a obra sobre a terra.” (Romanos 9:27-28).

Isaías reforça que, embora Israel fosse numeroso, apenas um remanescente fiel seria salvo. O profeta também destaca que a preservação de Israel é obra da misericórdia divina, afirmando:

“Se o Senhor dos Exércitos nos não deixara descendência, teríamos nos tornado como Sodoma e seríamos feitos como Gomorra” (Romanos 9:29).

Essas palavras evidenciam que a fidelidade de Deus à Sua promessa não falhou, mesmo diante da incredulidade de Israel. A rejeição de grande parte da nação e a salvação de apenas um remanescente mostram que Deus cumprirá a boa palavra anunciada a Abraão.

A Eleição da Linhagem e a Justiça Divina

Paulo aborda a questão da eleição, mostrando que nem todos os descendentes de Abraão são considerados israelitas. Ele afirma:

“Não que a palavra de Deus haja falhado. Porque nem todos os que são de Israel são israelitas.” (Romanos 9:6).

Com as citações de Isaías, percebe-se que a temática abordada pelo apóstolo Paulo continua centrada na nação de Israel. Apesar de serem israelitas, herdeiros da adoção de filhos, da glória, das alianças, da Lei, do culto e das promessas, eles perderam a condição de filhos por causa de sua incredulidade e foram rejeitados. Seria isso um indicativo de que a promessa divina falhou? Certamente não! As três promessas destacadas pelo apóstolo mostram que a linhagem escolhida, de onde Cristo viria — a de Isaque e Jacó —, foi soberanamente eleita e preservada.

Há injustiça da parte de Deus em não considerar como israelitas aqueles que são apenas da carne de Abraão, como Esaú e Ismael? A resposta é negativa, pois a eleição da linhagem do Descendente foi feita com base no propósito soberano de Deus estabelecido em Si mesmo na pessoa de Cristo (Romanos 9:6, 14).

Paulo argumenta:

  • Há injustiça da parte de Deus se aqueles que são da carne de Abraão, como Esaú e Ismael, não são israelitas? Certamente não! A eleição da linhagem de Cristo é um ato soberano visando o seu propósito.
  • Há injustiça se Deus se compadece daqueles que O amam? Absolutamente não! A misericórdia de Deus é expressão de Sua justiça.
  • Há injustiça se Deus suporta com paciência os vasos da ira? Não, pois mesmo os vasos de ira são alvo da longanimidade divina, como evidenciado em Faraó, a quem Deus suportou com paciência para demonstrar Seu poder.
  • Há injustiça se Deus dá a conhecer as riquezas de Sua glória nos vasos de misericórdia? Certamente não, pois é por meio desses vasos que Deus manifesta a plenitude de Sua graça e fidelidade.

Os Gentios e a Justiça pela Fé

E o que podemos dizer, então, de tudo o que o apóstolo Paulo explanou? Que os gentios, que não buscavam a justiça, a alcançaram? Sim, mas não por meio das obras da Lei, e sim pela justiça que é pela fé. Essa justiça não é resultado de mérito humano, mas da graça de Deus, que chama tanto judeus quanto gentios a participarem da promessa em Cristo.

Portanto, a justiça de Deus se manifesta tanto na eleição quanto na compaixão, revelando Sua soberania, paciência e fidelidade. Os gentios, ao responderem pela fé, alcançaram o que Israel perdeu por incredulidade, mas o remanescente fiel de Israel ainda é prova de que a promessa divina nunca falha.

Portanto, não há injustiça na forma como Deus opera. A eleição, o juízo e a misericórdia são manifestações de Sua soberania e fidelidade às promessas. Tanto a rejeição de Israel por incredulidade quanto a inclusão dos gentios como filhos de Deus mostram que o plano divino nunca falhou, mas se cumpriu de maneira perfeita, para que, em todas as coisas, as riquezas da Sua glória fossem reveladas nos vasos de misericórdia (Romanos 9:23).

O apóstolo retorna ao ponto central: “Assim, pois, não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que se compadece.” (Romanos 9:16). E como Deus manifesta Sua compaixão na Nova Aliança? Compadece-se daqueles que nEle esperam, conforme a esperança do evangelho.

Israel e os Gentios: Contrastes na Busca pela Justiça

Diferentemente dos gentios, que pela fé alcançaram a justiça de Deus, Israel, que buscava a lei da justiça, não conseguiu alcançá-la. O motivo não foi a falta de esforço, mas a incredulidade. Israel tentou estabelecer sua própria justiça por meio das obras da lei, recusando-se a confiar na justiça que vem de Deus. Por isso, tropeçaram na pedra de tropeço (Romanos 9:32).

Essa pedra, que também é chamada de rocha de escândalo, foi colocada por Deus em Sião, e apontava para Cristo. Contudo, Israel não creu no Messias, mesmo diante do alerta profético de que era necessário crer na rocha de escândalo para a salvação:

“Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e uma rocha de escândalo; e aquele que crer nela não será confundido.” (Romanos 9:33).

A Condição dos Incrédulos

Ao rejeitar Cristo, Israel permaneceu na incredulidade e, por consequência, manteve-se como vasos para desonra e ira. Isso não se deu por falta de oportunidade, mas por escolha deliberada de endurecer seus corações diante da graça de Deus.

A compaixão de Deus está disponível para todos os que creem, mas aqueles que insistem em estabelecer sua própria justiça, recusando a justiça que é pela fé, tropeçam na pedra que Deus colocou como fundamento de salvação. Assim, a mensagem é clara: é pela fé que se alcança a misericórdia, não pelas obras da lei.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *