Eleição e Predestinação

Deus endurece a quem quer?

Deus jamais permanece indiferente diante de um coração contrito, revelando Sua misericórdia àqueles que Lhe obedecem (Salmo 51:17; Salmo 34:18; Isaías 57:15). Mas, se Deus ama os que O amam, como compreender a conclusão paulina “Deus endurecer a quem quer?” (Deuteronômio 30:20; Provérbios 8:17).


Deus Endurece a Quem Quer?

“Logo, pois, compadece-se de quem quer e endurece a quem quer.” (Romanos 9:18)

Que está Escrito na Lei? Como Lês?

A conclusão do apóstolo Paulo em Romanos 9:18, ao afirmar que “Deus se compadece de quem quer e endurece a quem quer,” tem sido motivo de intensos debates teológicos ao longo da história da Igreja. Em particular, aqueles que defendem que a salvação ocorre exclusivamente pela soberania divina frequentemente recorrem a essa passagem, fundamentando-se na referência ao Êxodo.

No entanto, a citação da palavra de Deus a Faraó — “Para isto mesmo te levantei; para em ti mostrar o meu poder e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra” (Romanos 9:17) — revela que a conclusão de Paulo vai além de uma abordagem restrita à salvação individual. Antes, ela ilumina o cumprimento do propósito divino na história da redenção, mostrando como Deus utiliza até mesmo a resistência humana para manifestar Sua glória e realizar Seus desígnios eternos.

O Endurecimento e a Salvação

A pergunta que surge é: Deus age unilateralmente para salvar uns e condenar outros? A análise do contexto revela que Paulo não está tratando da salvação da humanidade como um todo, mas de como Deus realiza Seus propósitos, mesmo diante da resistência humana. O endurecimento de Faraó exemplifica a maneira como Deus, em Sua soberania, utiliza até mesmo a rebeldia humana para manifestar Sua glória e cumprir Seus desígnios.

Como Lemos as Escrituras?

A necessidade de refletir sobre “como lemos” as Escrituras é ilustrada pela resposta de Jesus ao doutor da lei: “Que está escrito na lei? Como lês?” (Lucas 10:26). Este diálogo evidencia a distinção entre saber o que está escrito e compreender o verdadeiro sentido do texto. O doutor da lei sabia citar a lei, mas revelou sua incapacidade de compreender o princípio central da justiça divina ao questionar quem seria o seu próximo (Lucas 10:29).

Assim, a leitura meramente literal ou legalista da Palavra de Deus não é suficiente. É necessário interpretar as Escrituras à luz de seu propósito divino, guiados pelo Espírito Santo, que nos capacita a discernir a vontade de Deus.

Justiça e Conhecimento do Próximo

Se o doutor da lei, que se apresentava como intérprete da Palavra, não sabia quem era o seu próximo, como poderia ensinar a justiça contida na lei? Sem essa compreensão, ele não apenas distorcia o sentido da Escritura, mas também falhava em aplicá-la de maneira justa e misericordiosa.

Da mesma forma, ao refletirmos sobre a mensagem de Romanos 9, devemos ir além da ideia de um Deus arbitrário, enxergando Sua soberania em harmonia com Sua justiça e misericórdia. Deus não é limitado por interpretações humanas, mas age conforme Seu propósito eterno, que visa estabelecer a preeminência de Cristo em tudo, e para isso oferece salvação a todos que creem. Assim, ao “endurecer” Faraó, Deus não está condenando o indivíduo ao acaso, mas conduzindo a história rumo à manifestação de Sua graça em Cristo.

Portanto, compreender a mensagem do apóstolo Paulo discernimento espiritual e a disposição de buscar na Escritura não apenas o que está escrito, mas compará-la com ela mesma, haja vista o princípio: mas também está escrito (2 Pedro 3:16; 1 Coríntios 2:13; Mateus 4:7).

 

A chave para Compreender os Adágios e Enigmas

“Com o benigno te mostrarás benigno; e com o homem sincero te mostrarás sincero; com o puro te mostrarás puro; e com o perverso te mostrarás indomável.” (Salmo 18:25)

No Salmo 18, o rei Davi destaca que Deus se mostra misericordioso com aqueles que são misericordiosos. Para isso, Davi emprega o adjetivo חָסִיד (chaciyd)[1] para descrever o homem que se sujeita a Deus como servo obediente aos Seus mandamentos, e o verbo חסד (chacad)[2] para referir-se à misericórdia de Deus.

O profeta Davi compreendia plenamente a quem Deus demonstra Sua misericórdia, alinhando-se ao que está registrado em Deuteronômio:

“E faço misericórdia a milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Deuteronômio 5:10).

De maneira semelhante, Davi afirma que Deus se revela perfeito[3] ao homem perfeito[4]. Mas como pode o homem alcançar a perfeição? Em Gênesis 17:1, Deus instrui Abraão a andar em Sua presença para atingir tal condição:

“Sendo, pois, Abrão da idade de noventa e nove anos, apareceu o SENHOR a Abrão e disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso, anda em minha presença e sê perfeito.” (Gênesis 17:1; Deuteronômio 18:13).

Abraão tinha consciência dessa perfeição, como ele mesmo declara:

“O SENHOR, perante quem eu ando, enviará o seu anjo contigo e prosperará o teu caminho.” (Gênesis 24:40);

“Porquanto, Abraão obedeceu à minha voz e guardou o meu mandado, os meus preceitos, os meus estatutos e as minhas leis.” (Gênesis 26:5).

Essa perfeição não é inatingível. Basta sujeitar-se a Deus em obediência ao que Ele já revelou em Sua Palavra. Como declara o profeta Miqueias:

“Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o SENHOR pede de ti, senão que pratiques a justiça, ames a benignidade e andes humildemente com o teu Deus?” (Miqueias 6:8).

Além disso, Jesus instrui:

“Sede, pois, misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso.” (Lucas 6:36);

“Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” (Mateus 5:48);

“Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; vem e segue-me.” (Mateus 19:21).

O apóstolo Tiago acrescenta que a perfeição se manifesta na fidelidade à Palavra:

“Porque todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não tropeça no falar, tal homem é perfeito.” (Tiago 3:2).

Deus se revela justo e perfeito ao homem que anda em Sua presença, mas ao perverso, Deus Se manifesta como indomável, sem demonstrar misericórdia:

“Com o benigno, te mostrarás benigno; e com o homem sincero, te mostrarás sincero. Com o puro, te mostrarás puro; e com o perverso, te mostrarás indomável.” (Salmo 18:25)

Essa abordagem do salmista ecoa na declaração do apóstolo Paulo:

“Se sofrermos, também com ele reinaremos; se o negarmos, também ele nos negará. Se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo.” (2 Timóteo 2:11-13)

Portanto, Deus é misericordioso com os que O amam e guardam Seus mandamentos (Deuteronômio 7:9-10). Este amor é evidenciado pela obediência, como afirma o apóstolo João:

“Porque este é o amor de Deus: que guardemos os seus mandamentos; e os seus mandamentos não são pesados.” (1 João 5:3).

Dependendo da resposta humana ao mandamento divino, há promessa de vida ou expectação de morte, como registrado em Deuteronômio:

“Vês aqui, hoje te tenho proposto a vida e o bem, a morte e o mal; Porquanto, te ordeno hoje que ames ao SENHOR teu Deus, que andes nos seus caminhos, e que guardes os seus mandamentos, os seus estatutos e os seus juízos, para que vivas.” (Deuteronômio 30:15-16).

Deus se revela fiel e justo para com os que Lhe obedecem, mas inflexível e zeloso em relação aos que rejeitam Sua Palavra. A fidelidade divina é proclamada em Êxodo:

“E farei passar toda a minha bondade por diante de ti e proclamarei o nome do SENHOR diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer.” (Êxodo 33:19)

Essa fidelidade manifesta os atributos de Deus: Ele é misericordioso com os que O amam, mas zeloso ao retribuir a iniquidade dos que O rejeitam. Assim, como declara o salmista, Deus age conforme a resposta do homem à Sua Palavra: com benignidade, sinceridade e pureza[5] aos obedientes, mas com inflexibilidade[6] aos perversos[7].

 

A Mensagem do Evangelho

“Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Provérbios 3:34; Tiago 4:6).

O fato de Deus resistir aos soberbos e manifestar graciosamente Sua misericórdia aos que se sujeitam a Ele (os humildes) constitui a essência do evangelho. Esse princípio é reforçado em Filipenses:

“E em nada vos espanteis dos que resistem, o que para eles, na verdade, é indício de perdição, mas, para vós, de salvação; e isto, de Deus.” (Filipenses 1:28)

Isso porque aprouve a Deus salvar aqueles que creem em Sua Palavra. Ele demonstra misericórdia aos que O amam, ou seja, aos que Lhe obedecem. No entanto, Deus também Se revela zeloso e inflexível diante dos que não se submetem à Sua vontade:

“Saberás, pois, que o SENHOR teu Deus, ele é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia, até mil gerações, aos que o amam e guardam os seus mandamentos. E retribui no rosto a qualquer dos que o odeiam, fazendo-o perecer; não será tardio ao que o odeia; em seu rosto, lhe pagará.” (Deuteronômio 7:9-10);

“Não te encurvarás a elas, nem as servirás; porque eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e à quarta geração daqueles que me odeiam. E faço misericórdia a milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Deuteronômio 5:9-10).

Essa verdade também é reafirmada no Novo Testamento:

“Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus, pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes, pela loucura da pregação.” (1 Coríntios 1:21).

Deus, portanto, é zeloso ao retribuir a iniquidade sobre os ímpios e fiel ao demonstrar salvação àqueles que O amam e guardam Seus mandamentos.

Diante dessa realidade, o salmista, por meio de linguagem poética e recursos estilísticos como paralelismos e figuras, faz uma descrição profética da maneira como Deus age em relação aos homens:

“Com o benigno, te mostrarás benigno; e com o homem sincero, te mostrarás sincero;
Com o puro, te mostrarás puro; e com o perverso, te mostrarás indomável.” (Salmo 18:25).

Essa descrição destaca a justiça de Deus: Ele é fiel, benigno e justo com os que Lhe obedecem, mas zeloso, ou seja, indomável e inflexível, para com aqueles que rejeitam Sua Palavra.

O princípio expresso em Êxodo reforça essa máxima:

“Porém, ele disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti e proclamarei o nome do SENHOR diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer.” (Êxodo 33:19).

A repetição dessa verdade “terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia” é uma anáfora — um recurso estilístico usado para enfatizar que Deus age em conformidade com a sua palavra dita anteriormente.

De quem Deus tem misericórdia e de quem Se compadece? Do benigno, do sincero, do puro!

Qualquer tentativa do homem, como o pedido de Moisés, de alterar a fidelidade (amor) ou o zelo (retribuição) de Deus será em vão. Deus permanece fiel a sua palavra, conforme registrado:

“Saberás, pois, que o SENHOR teu Deus, ele é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e guardam os seus mandamentos.” (Deuteronômio 7:9).

Assim, Deus terá misericórdia de quem Lhe apraz — ou seja, dos que O amam e guardam Seus mandamentos — e Se compadecerá daqueles que se submetem à Sua vontade, evidenciando Sua fidelidade e justiça em todas as gerações.

 

Endurece a quem quer

Após afirmar que não há injustiça em Deus, o apóstolo Paulo utiliza o exemplo de Esaú e Jacó para ilustrar seu argumento. Ele cita o que foi dito a Moisés: “Compadecer-me-ei de quem me compadecer” (Romanos 9:15; Êxodo 33:19). O que essa passagem revela? Que Deus se compadeceu de Jacó, pois ele havia adquirido o direito de primogenitura, enquanto Esaú foi rejeitado por desprezá-lo ao vendê-lo por um prato de lentilhas (Gênesis 25:34). A diferença essencial entre Esaú e Jacó estava no direito de primogenitura, que era central ao propósito divino de trazer ao mundo o Descendente.

“Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo.” (Gálatas 3:16).

A questão da eleição em Romanos 9 não está relacionada à salvação eterna de Esaú ou Jacó, mas sim à preservação da linhagem de Abraão em função do Descendente prometido, Cristo.

“E como antes disse Isaías: Se o Senhor dos Exércitos nos não deixara descendência, Teríamos nos tornado como Sodoma, e teríamos sido feitos como Gomorra.” (Romanos 9:29).

Paulo utiliza o exemplo de Esaú e Jacó para demonstrar como Deus, em Sua soberania, conduz a história para cumprir Seu propósito de redenção. A eleição divina aqui não é sobre a salvação individual, mas sobre a escolha de uma linhagem específica pela qual viria o Messias.

Isso é evidente no fato de que nem todos os descendentes físicos de Abraão são considerados “filhos da promessa.” Ismael, embora fosse descendente de Abraão, foi rejeitado, pois a promessa dizia respeito a Isaque. De forma semelhante, Esaú, embora fosse descendente de Abraão e Isaque, também foi rejeitado em favor de Jacó. Essa escolha não se baseou em obras ou méritos individuais, mas no plano soberano de Deus para garantir a preservação da linhagem messiânica.

O propósito da eleição foi, portanto, manter intacta a promessa feita a Abraão, garantindo que o Descendente — Cristo — surgisse de uma linhagem específica. A escolha de Jacó, e não de Esaú, tendo por base a primogenitura, assegurou a continuidade dessa promessa. Não se trata de uma predestinação individual para salvação ou condenação, mas da execução do propósito de trazer a existência o Cristo preservando a linhagem de Abraão.

O propósito de Deus era que a bênção fosse concedida ao primogênito, pois a primogenitura representava a preeminência de um irmão entre os demais:

“Mas, ao filho da desprezada, reconhecerá por primogênito, dando-lhe dobrada porção de tudo quanto tiver; porquanto, aquele é o princípio da sua força, o direito da primogenitura é dele.” (Deuteronômio 21:17).

Assim, a eleição baseada na primogenitura em Esaú e Jacó é, de fato, funcional e histórica, servindo ao propósito de preservar a linhagem de onde viria o Descendente prometido. Contudo, essa eleição também aponta para o propósito eterno de Deus em Cristo: fazê-Lo proeminente em todas as coisas, ao torná-Lo o Primogênito entre muitos irmãos.

Paulo esclarece esse propósito em Romanos 8:29:

“Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos.”

Essa proeminência de Cristo como Primogênito transcende o conceito de linhagem física e reflete Sua posição única como o herdeiro de todas as coisas e o cabeça de Sua Igreja (Colossenses 1:18). A eleição de Jacó sobre Esaú, vinculada à primogenitura, tipifica essa realidade maior, onde Cristo é estabelecido como o Primogênito, tanto na criação quanto na redenção:

“Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas (…) E ele é a cabeça do corpo, da igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência.” (Colossenses 1:15 e 18)

A eleição em Esaú e Jacó, embora limitada à linhagem histórica de Israel, aponta para o desdobramento do plano eterno de Deus, que culmina em Cristo. Ele é o cumprimento da promessa e a expressão final da primogenitura, não apenas como herdeiro legítimo, mas como aquele que reconcilia todas as coisas e compartilha Sua herança com aqueles que O amam.

Portanto, a eleição funcional e histórica de Jacó em lugar de Esaú não só cumpre um papel específico na narrativa da salvação, mas também reflete o propósito eterno de Deus de exaltar Seu Filho como o Primogênito entre muitos irmãos, estabelecendo Sua supremacia em todas as coisas.

A Primogenitura e o Propósito Divino

Esaú foi chamado ao propósito porque, inicialmente, detinha o direito de primogenitura. No entanto, ao desprezá-lo, Esaú rejeitou o propósito divino que estava vinculado a esse direito. Embora Esaú tenha saído para caçar em busca de alcançar a bênção, o direito à bênção já havia sido perdido quando ele desprezou a primogenitura.

Paulo enfatiza que o propósito de Deus, segundo a eleição, permanece firme não por causa das obras, mas por aquilo que Deus estabelece. Quando foi dito a Rebeca: “O maior servirá ao menor,” o direito de primogenitura ainda não havia sido decidido (Romanos 9:12). Isso mostra que o propósito da eleição repousa sobre a primogenitura e não sobre a pessoa em si. Assim, de nada adiantava a ambos, Esaú e Jacó, correrem atrás de obras externas, como a caça, ou pedirem a bênção, pois esta estava atrelada exclusivamente à primogenitura.

Romanos 9: Eleição e Propósito

O propósito segundo a eleição não trata da salvação individual de Esaú e Jacó, mas da linhagem de onde viria o Cristo. Romanos 9 não discute a salvação pelo evangelho, mas esclarece que nem todos os descendentes físicos de Israel são verdadeiramente israelitas:

“Não que a palavra de Deus haja faltado, porque nem todos os que são de Israel são israelitas; nem por serem descendência de Abraão são todos filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência.” (Romanos 9:6-7)

Ismael, por exemplo, era descendente de Abraão e até foi circuncidado, mas não era filho da promessa. Esaú, por sua vez, era descendente de Abraão e Isaque, mas por desprezar o direito de berço, a promessa ficou assegurada à linhagem de Jacó, conforme a palavra dada a Rebeca: “O maior servirá ao menor.”

Eleição e a Promessa

Paulo esclarece que ser descendente da carne de Abraão não torna ninguém filho da promessa. Os filhos da carne são diferentes dos filhos da promessa. A eleição divina repousou sobre Jacó por causa do direito de primogenitura e do propósito divino de que o Cristo viria ao mundo de sua linhagem. Assim, a promessa não depende da vontade humana, mas da escolha de Deus, baseada em Seu propósito eterno.

 

Refutando Equívocos

Embora alguns argumentem, como Martinho Lutero, que não se pode compreender os critérios da eleição divina, afirmando que ela ocorre por soberania pura ou que a mente humana é incapaz de entendê-la, a Escritura revela com clareza o plano de Deus. A eleição de Jacó não foi arbitrária; ela está vinculada ao direito de primogenitura e ao cumprimento do propósito divino, que foi estabelecido antes mesmo que eles tivessem nascido.

Portanto, a eleição segundo a promessa não é um mistério insondável. Ela está fundamentada na Palavra de Deus, que aponta para a fidelidade de Seus propósitos e para a Sua justiça ao chamar aqueles que cumprem o papel destinado em Seu plano eterno.

“Ora, todos sabem que o amor e a ira de Deus não se assemelham às paixões humanas; porém, a questão com que ora nos defrontamos não requer que perguntemos como Deus ama ou odeia, mas, por que Deus ama ou odeia (…) O amor e a ira de Deus não estão sujeitos a alterações, conforme ocorre conosco. Em Deus, ambos são eternos e imutáveis. Foram fixados muito antes que o “livre-arbítrio” fosse possível. Vemos nisso, que nem o amor nem a ira de Deus esperam pela reação humana, mas antecedem à mesma. […] O que poderia ter feito Deus amar a Jacó ou odiar a Esaú? Certamente, não por qualquer coisa que eles tivessem feito, pois a atitude de Deus para com eles foi estabelecida e declarada, antes mesmo de terem nascido e não havia muita atuação do “livre-arbítrio” naquela ocasião!” Martinho Lutero, Nascido Escravo, pág. 81.

A Bíblia responde a duas questões fundamentais sobre os atributos de Deus e como Ele se relaciona com as suas criaturas:

a) como Deus ama e odeia, e;

b) por que Deus ama e odeia.

O amor de Deus se evidencia ao conceder ao homem aquilo que lhe é de direito, enquanto Seu ódio se manifesta ao negar o que não é de direito. No caso de Jacó e Esaú, Deus amou Jacó porque ele buscou o direito de primogenitura e odiou Esaú, ou seja, não lhe concedeu o que não lhe era de direito, visto que ele desprezou a primogenitura ao vendê-la por um prato de lentilhas (Gênesis 25:34).

Quando Deus tirou os filhos de Israel do Egito, não o fez porque eles eram melhores ou mais justos que os outros povos que habitavam a terra prometida (Deuteronômio 9:4-6), mas porque os amava, ou seja, para cumprir o juramento que fizera a Abraão, Isaque e Jacó:

“O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos, em número, do que eles; Mas, porque o SENHOR vos amava, e para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito. Saberás, pois, que o SENHOR teu Deus, ele é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e guardam os seus mandamentos. E retribui no rosto qualquer dos que o odeiam, fazendo-o perecer; não será tardio ao que o odeia; em seu rosto lho pagará.” (Deuteronômio 7:7-8).

O Amor como Honra

O termo “amor” na Escritura não se refere a um sentimento, mas a honra concedida. Deus ama os que O honram e odeia os que O desprezam:

“Portanto, diz o SENHOR Deus de Israel: Na verdade, tinha falado eu que a tua casa e a casa de teu pai andariam diante de mim, perpetuamente; porém, agora, diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque, aos que me honram honrarei, porém, aos que me desprezam, serão desprezados. (1 Samuel 2:30)

No caso de Jacó e Esaú, o amor de Deus estava vinculado ao direito da primogenitura, estabelecido antes mesmo do nascimento dos dois irmãos. A bênção era reservada ao primogênito. Esaú, por sua livre vontade, desprezou o direito, enquanto Jacó, também por sua livre vontade, buscou o direito para si. Assim, o amor de Deus não está vinculado ao arbítrio humano, mas à Sua Palavra, que estabelece o direito do primogênito.

Deus se compadeceu de Jacó porque ele valorizou o direito de primogenitura. Por outro lado, Deus, sendo zeloso e justo, não concedeu a Esaú o direito que perdeu. Isso demonstra que a bênção da primogenitura não depende da misericórdia, mas da eleição, pela qual o propósito de Deus permanece firme, não por obras, mas pelo que Ele chama.

O Caso de Faraó e o Propósito de Deus

Paulo cita as Escrituras sobre Faraó:

“Para isto mesmo te levantei; para em ti mostrar o meu poder e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra.” (Romanos 9:17).

Faraó[8] foi levantado por Deus com um propósito claro: manifestar o Seu poder e fazer com que o Seu Nome fosse anunciado em toda a terra. O objetivo divino era declarar Sua soberania e autoridade, e para isso escolheu um dos reis do Egito. Como o propósito de Deus é firme e imutável, ele seria cumprido independentemente da postura de Faraó. Deus anunciaria Seu Nome e demonstraria Seu poder, quer Faraó se submetesse ou resistisse.

Deus não elegeu uma pessoa específica, mas sim um faraó, ou seja, qualquer rei do Egito poderia ter sido o instrumento para a realização desse propósito. É significativo que a Bíblia não mencione o nome do faraó do Êxodo, indicando que Deus não escolheu um indivíduo em particular, mas sim o título e a posição de rei do Egito.

Isso não significa que Deus havia rejeitado Faraó ao levantá-lo. Pelo contrário, se Faraó tivesse se inclinado diante de Deus, reconhecendo Sua soberania e libertando o povo, o propósito divino ainda assim seria cumprido: o poder de Deus seria manifestado e Seu Nome anunciado em toda a terra. Entretanto, como Faraó resistiu, Deus revelou Seu poder ao arrancar Israel do Egito com mão forte, cumprindo Seu plano imutável.

O que o apóstolo Paulo destaca ao citar Faraó não é a pessoa do rei do Egito, mas a firmeza do propósito de Deus. Quer Faraó libertasse o povo, quer resistisse, o plano divino se efetivaria. O foco de Paulo não é o coração de Faraó, mas o fato de que Deus se compadece de quem Lhe apraz.

O que o apóstolo Paulo evidencia, ao citar a Faraó, não é a pessoa do rei do Egito, mas, a eleição de Deus, que é firme, por causa do propósito de Deus. Faraó, deixando ou não o povo ir, o propósito de Deus se efetivaria. Observe que o que está em análise não é o coração de Faraó, mas, o fato de Deus se compadecer de quem lhe apraz.

A longanimidade de Deus também é evidente nesse relato. Ele falou a Faraó repetidamente, dando-lhe dez oportunidades para se submeter à Sua vontade. Esse mesmo atributo de longanimidade foi demonstrado nos dias de Noé, quando Deus esperou pacientemente enquanto a arca era preparada. Assim como a água do Mar Vermelho, que trouxe salvação ao povo de Israel, também trouxe perdição a Faraó e seu exército, a água do dilúvio salvou Noé e sua família, mas condenou o mundo ímpio.

“…quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água; Que, também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundícia da carne, mas, da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo.” (1 Pedro 3:20-21).

Quando o apóstolo Paulo conclui, com base na palavra dirigida a Faraó, que Deus se compadece de quem quer, ele evidencia que Deus exerce misericórdia sobre aqueles que Lhe obedecem. O texto não está tratando das ações humanas, mas de como Deus age:

“Logo, pois, Ele se compadece de quem quer…” (Romanos 9:18).

Deus demonstra misericórdia aos que O amam e O obedecem, sem fazer acepção de pessoas. Contudo, no que diz respeito ao propósito divino, opera a eleição, pois o propósito de Deus é firme e independe das pessoas envolvidas. Não importava se Esaú ou Jacó seriam abençoados, mas sim que o propósito de Deus, segundo a eleição, fosse cumprido, estabelecendo a primogenitura como critério para a concessão da bênção, visando a preservação da linhagem do Descendente prometido a Abraão.

De maneira semelhante, não importava quem fosse o faraó à época do Êxodo, nem se ele obedeceria ou não. O propósito para o qual Deus levantou o faraó seria realizado: Deus anunciaria Seu Nome ao mundo e demonstraria Seu poder.

O “Endurecimento” de Faraó

Isso significa que Deus “endureceu”[9] o coração de Faraó?

“Logo, pois Ele se compadece de quem quer e endurece a quem quer. (Romanos 9:18).

Definitivamente não. Deus não agiu de forma sobrenatural para influenciar a vontade de Faraó e torná-lo recalcitrante. O texto não destaca uma pessoa específica, mas sim a ação de Deus, que se revela misericordioso com os que O obedecem e inflexível com os desobedientes.

“ἄρα οὖνὃνθέλειἐλεεῖὃνδὲθέλεισκληρύνει” Westcott/HortwithDiacritics.

“Assim, pois (de) quem (ele) quer tem misericórdia, (a) quem [2] mas[1] quer endurece”. Novo Testamento Interlinear Grego-Português (SBB).

Os verbos gregos ἐλεεῖ (“tem misericórdia”) e σκληρύνει (“endurece”) estão na terceira pessoa do singular, no tempo presente, modo indicativo e voz ativa. Isso indica que Deus é o sujeito ativo em ambos os casos. Ele exerce misericórdia sobre quem Lhe apraz e, da mesma forma, age com inflexibilidade ou severidade com quem Lhe apraz.

O paralelismo presente no texto reproduz uma ideia imortalizada no Êxodo, quando Deus disse a Moisés:

“Porém, ele disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti e proclamarei o nome do SENHOR diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer.” (Êxodo 33:19).

Esse paralelismo demonstra que Deus é misericordioso para com os que O amam (Deuteronômio 7:9-10) e inflexível para com os que O rejeitam (Deuteronômio 5:9-10). A ideia desenvolvida em Romanos 9:15-18 é consistente com esse princípio:

“Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece (…) Logo, pois, compadece-se de quem quer e endurece quem quer.” (Romanos 9:15-16 e 18).

Esaú, Jacó e Faraó: Amor e Ódio

No caso de Esaú e Jacó, o “amor” refere-se à compaixão de Deus e o “ódio” à Sua inflexibilidade. Deus amou Jacó porque este buscou a primogenitura, enquanto Esaú, ao desprezá-la, tornou-se objeto do ódio de Deus no sentido de rejeição. De maneira semelhante, Faraó se mostrou perverso e obstinado ao resistir à palavra de Deus.

“Eu vos tenho amado, diz o SENHOR. Mas vós dizeis: Em que nos tem amado? Não era Esaú irmão de Jacó? disse o SENHOR; todavia amei a Jacó e odiei a Esaú; fiz dos seus montes uma desolação e dei a sua herança aos chacais do deserto.” (Malaquias 1:2-3).

O relato em Êxodo revela que o coração de Faraó endureceu por sua própria escolha:

“Vendo, porém, Faraó que havia alívio, continuou de coração endurecido e não os ouviu, como o Senhor tinha dito.” (Êxodo 8:15).

Devemos considerar que Faraó revelou sua perversidade diante da palavra de Deus, ao endurecer[10] o seu coração. A Escritura deixa claro esse fato ao afirmar que “o coração de Faraó se endureceu” (Êxodo 7:13-14; Êxodo 8:19) e que ele “continuou de coração endurecido” (Êxodo 8:15).

O endurecimento do coração de Faraó foi uma resposta à mensagem divina: sempre que ele se propunha a deixar o povo de Israel partir, Deus desviava a praga, demonstrando Sua misericórdia. No entanto, assim que o alívio chegava, Faraó endurecia novamente seu coração, desobedecendo à ordem de Deus. Como consequência, Deus enviava outra praga, reafirmando Seu poder e propósito.

Esse ciclo revela tanto a obstinação de Faraó quanto a justiça de Deus. Deus não forçou o endurecimento do coração de Faraó; em vez disso, Sua palavra e Seus atos expuseram a resistência já presente no coração do rei. Assim, o endurecimento de Faraó foi, ao mesmo tempo, uma manifestação de sua própria rebeldia e um meio pelo qual Deus demonstrou Sua autoridade e glória.

“E Faraó chamou a Moisés e a Arão e disse: Rogai ao SENHOR, que tire as rãs de mim e do meu povo; depois, deixarei ir o povo, para que sacrifiquem ao SENHOR (…) Vendo, porém, Faraó que havia alívio, continuou de coração endurecido e não os ouviu, como o Senhor tinha dito.” (Êxodo 8:8 e 15).

O termo hebraico קשה (qashah), traduzido como “endurecer” em Êxodo 7:3, não indica uma ação sobrenatural de Deus sobre a vontade de Faraó. Em vez disso, a mensagem de Deus — “Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto” (Êxodo 5:1) — revelou a obstinação do rei. Assim como a mesma luz que ilumina endurece a cera, a palavra de Deus revelou o estado perverso do coração de Faraó.

Quando Deus deu a ordem a Faraó, por meio de um mensageiro: “Deixa ir o meu povo…”, a reação do rei revelou a obstinação de seu coração. A mensagem divina expôs sua resistência, e Deus, ao confrontar a desobediência de Faraó, Se mostrou zeloso, indomável e justo.

Antes de ouvir a palavra de Deus, o coração de Faraó não estava inclinado nem a permitir, nem a negar a saída do povo de Israel. No entanto, quando recebeu a ordem para libertar um povo que pertencia a Deus, sua resistência emergiu. A mensagem divina, que traz liberdade onde o Espírito do Senhor está (2 Coríntios 3:17), foi o catalisador que revelou a dureza do coração de Faraó.

A Liberdade Concedida por Deus

Para o propósito que Deus havia determinado — glorificar Seu Nome e mostrar Seu poder — não era necessário endurecer o coração de Faraó. O propósito divino seria cumprido, quer Faraó obedecesse, quer resistisse. Se Deus quisesse manipular o coração de Faraó, poderia “amolecê-lo” para garantir sua obediência, e ainda assim Seu Nome seria glorificado. Contudo, Deus não força a vontade humana, mas dá liberdade ao homem para decidir sua resposta à Palavra.

Por isso, Deus é longânime, como enfatiza o apóstolo Paulo:

“Mas, quando se converterem ao Senhor, o véu será tirado.” (2 Coríntios 3:16).

Deus apresenta Sua Palavra ao homem e age de acordo com a resposta que o homem dá a ela. Em Faraó, vemos um exemplo de como a liberdade humana, em resposta à Palavra de Deus, pode levar à obstinação e à rejeição.

A Compreensão da Eleição de Faraó

Muitos, ao tentar explicar a eleição de Faraó, concentram-se em argumentos que ressaltam sua maldade pessoal ou a crueldade do sistema que ele representava. Argumenta-se que Faraó era um líder que se via como um deus, que escravizou os israelitas, ordenou a morte de crianças e praticou outras injustiças.

Embora tudo isso seja verdade, não é o foco do texto bíblico. A eleição de Faraó não foi baseada em sua moralidade ou na perversidade do Egito, mas no propósito soberano de Deus. O que está em destaque não é o caráter de Faraó, mas o fato de que Deus apresentou Sua Palavra e permitiu que a reação de Faraó revelasse a dureza de seu coração.

“A minha resposta é que, à parte da graça da eleição, Deus trata com os homens em consonância com a natureza deles. Visto que a natureza deles é maligna e pervertida, quando Deus os impulsiona para que entrem em ação, seus atos são malignos e pervertidos.” Martinho Lutero, Nascido Escravo, pág. 73.

“Deus não cria uma nova maldade no coração dos homens. Antes, Ele se utiliza do mal que já se encontra no coração deles, visando aos seus próprios, bons e sábios desígnios.” Martinho Lutero, Nascido Escravo, pág. 74.

Deus não trata o homem com base em sua índole ou moralidade, mas conforme o que foi estabelecido em Sua Palavra. A Palavra de Deus é a medida e a ferramenta pela qual Ele age, sendo zeloso em cumpri-la:

“Porque eu velo sobre a minha palavra para a cumprir.” (Jeremias 1:12)

É um equívoco pensar que Deus utiliza o mal presente no coração humano como instrumento para cumprir Seu propósito. O propósito de Deus é conduzido exclusivamente por Sua Palavra e pela firmeza de Sua eleição, independentemente das ações humanas.

A Eleição de Deus: Firme e Imparcial

A eleição divina não se baseia no bem ou mal que a pessoa tenha feito, mas tem como objetivo final a glória de Deus. O mesmo critério aplicado à eleição de Jacó sobre Esaú — antes mesmo que as crianças tivessem nascido ou feito bem ou mal — é o mesmo aplicado à eleição de Faraó. Portanto, o propósito de Deus não considera se Faraó era moralmente bom ou mau, mas sim a realização do plano divino.

“Pois, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama).” (Romanos 9:11).

Compreendendo a Misericórdia de Deus

Muitos, ao lerem Romanos 9:18 — “tem misericórdia de quem quer e endurece a quem quer” —, não compreendem que Deus age em harmonia com Sua Palavra. Por não reconhecerem que Deus se apraz em exercer misericórdia aos que O amam e guardam Seus mandamentos (Êxodo 20:6), acabam distorcendo o texto. Interpretam que Deus teria endurecido o coração de Faraó de forma arbitrária, tornando-o responsável por sua própria obstinação e pecado.

Contudo, o endurecimento de Faraó não foi uma imposição direta de Deus, mas a resposta do rei à Palavra divina. A afirmação de que Deus “tem misericórdia de quem quer” em Romanos 9:18 remete a Êxodo 33:19, onde Deus declara a Moisés:

“E terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer.” (Êxodo 33:19).

Essa verdade já havia sido anunciada anteriormente:

“E faço misericórdia a milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Êxodo 20:6).

Deus demonstra misericórdia àqueles que Lhe obedecem e endurece, no sentido de agir com severidade, àqueles que rejeitam Sua Palavra. A eleição de Faraó, assim como a de Jacó, não teve como base suas ações ou caráter, mas o propósito eterno de Deus. Faraó foi levantado para que Deus manifestasse Seu poder e Seu Nome fosse proclamado, independentemente de sua postura.

“Por que Deus não altera a vontade perversa de pessoas como Faraó? Essa questão toca na vontade secreta de Deus, cujos caminhos são inescrutáveis. (Rm 11:33) Se alguém, que é orientado por sua razão humana, fica ofendido por causa disso, que assim seja. As queixas nada mudarão e os eleitos de Deus permanecerão inabaláveis. Poderíamos, também, perguntar por que Deus deixou que Adão caísse! Não devemos tentar estabelecer regras para Deus. Aquilo que Deus faz, não é correto porque o aprovamos, mas porque Deus assim o desejou”. Idem.

Por que Deus permitiu que Adão caísse? A resposta é simples: porque Deus o orientou e lhe concedeu plena liberdade. A queda foi uma escolha deliberada de Adão, que era livre para decidir. E por que Deus não altera a vontade das pessoas, seja ela perversa ou não? Porque os dons de Deus são irrevogáveis. O modo como Deus lida com a liberdade humana não é um mistério inatingível para Suas criaturas; está claramente revelado em Sua Palavra.

Em relação a Deus, o homem sempre é livre, quer seja servo de Deus, quer não. Isso, contudo, não significa que o homem esteja livre de um senhor, pois aqueles que não estão sujeitos a Deus estão sujeitos ao pecado.

Romanos 9: A Palavra de Deus Não Falhou

A abordagem de Romanos 9 não trata da salvação ou da condenação individual, mas de uma demonstração de que a Palavra de Deus não falhou (Romanos 9:6). Muitos teólogos como Agostinho, Lutero e Calvino debateram, com base neste capítulo, questões sobre salvação e condenação. Porém, o foco de Paulo é mostrar que, embora muitos em Israel fossem descendentes de Abraão, nem todos eram verdadeiramente israelitas.

“Nem por serem descendência de Abraão, são todos filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência.” (Romanos 9:7).

O fato de serem descendentes de Abraão na carne não os tornava filhos de Abraão no plano espiritual. Se todos os filhos de Isaque fossem automaticamente a descendência prometida, não teria sido necessária a palavra de Deus a Rebeca: “O maior servirá o menor” (Romanos 9:12). Isso evidencia que, mesmo entre os filhos de Isaque, a descendência de Abraão seria chamada em Jacó, e não em Esaú.

“Porém, Deus disse a Abraão: Não te pareça mal aos teus olhos acerca do moço e acerca da tua serva; em tudo o que Sara te diz, ouve a sua voz; porque, em Isaque será chamada a tua descendência.” (Gênesis 21:12)

A Eleição de Jacó sobre Esaú

Deus escolheu a casa de Jacó e rejeitou a casa de Esaú para preservar a linhagem da promessa feita a Abraão. O critério utilizado por Deus foi o direito de primogenitura, estabelecido conforme Sua soberania. Isso não significa que Deus agiu com injustiça, mas que manteve a Sua Palavra, garantindo que a descendência prometida passasse por Jacó, o primogênito por direito.

“Não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama).” (Romanos 9:11)

Deus não cometeu injustiça ao amar Jacó e rejeitar Esaú. Primeiro, Deus deu a Jacó o que era de direito, e, segundo, Ele manteve Sua promessa a Abraão de que a descendência viria por Isaque e passaria por Jacó.

Há uma diferença significativa entre interpretar que Isaque era, em si, a descendência de Abraão, de modo que todos os seus filhos seriam automaticamente bem-aventurados, e interpretar que em Isaque a descendência de Abraão seria chamada. Essa distinção é fundamental para compreender Romanos 9:7:

“Nem por serem descendência de Abraão, são todos filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência.” (Romanos 9:7)

O apóstolo Paulo não está afirmando que Deus, de maneira unilateral e arbitrária, salva quem quer e condena quem quer por ser soberano. Antes, ele está explicando que a promessa feita a Abraão, com respeito à descendência, não havia falhado (Romanos 9:6). Deus prometeu a Abraão um descendente, que viria por Isaque — o Cristo. Essa promessa foi cumprida quando Deus disse:

“Por esse tempo virei, e Sara terá um filho.” (Romanos 9:9)

Esaú e Jacó: A Continuidade da Promessa

De Isaque nasceram dois filhos, Esaú e Jacó. Contudo, Deus declarou que a descendência de Abraão não viria por ambos, mas exclusivamente por Jacó. Isso foi revelado a Rebeca quando Deus disse: “O maior servirá o menor,” indicando que havia dois povos em seu ventre (Romanos 9:12). Nesse caso, Deus elegeu a casa de Jacó e rejeitou a casa de Esaú como a linhagem por meio da qual a descendência prometida a Abraão seria chamada.

O Critério de Deus: Primogenitura e Soberania

Qual foi o critério de Deus ao escolher entre Esaú e Jacó? O direito de primogenitura, conforme estabelecido por Sua soberania. Essa escolha foi feita antes mesmo que os gêmeos nascessem ou tivessem feito bem ou mal, para que o propósito de Deus, segundo a eleição, permanecesse firme, não baseado em obras, mas naquele que chama (Romanos 9:11).

Conclui-se, portanto, que não há injustiça da parte de Deus (Romanos 9:14) e que Sua palavra não falhou (Romanos 9:6). A escolha de Jacó sobre Esaú foi um ato soberano, mas não arbitrário: ela seguiu o princípio da primogenitura, estabelecido por Deus para preservar a promessa.

Deus Amou Jacó e Rejeitou Esaú

Há injustiça em Deus por ter amado Jacó e rejeitado Esaú? De modo nenhum! Primeiro, Deus concedeu a Jacó o que era seu por direito. Segundo, Ele manteve Sua palavra dada a Abraão sobre o descendente prometido, garantindo que a linhagem passasse por Isaque e Jacó. A eleição de Jacó e a rejeição de Esaú não se tratam de salvação ou condenação pessoal, mas da continuidade da promessa de Deus, que culmina em Cristo.

Em Romanos 9, Paulo demonstra que Deus é fiel à Sua Palavra e justo em Suas ações. Ele cumpre Seu propósito soberano de forma inequívoca, garantindo que a promessa feita a Abraão, acerca da descendência, se cumpra plenamente em Cristo, o Salvador.

O Propósito de Romanos 9

Em nenhum momento Paulo trata de salvação ou condenação no capítulo 9 de Romanos. Em vez disso, ele destaca:

  1. Como veio ao mundo o Salvador;
  2. Como Deus cumpriu Sua Palavra a Abraão acerca da descendência prometida, que seria chamada em Isaque e continuaria em Jacó.

A Palavra de Deus não falhou em relação a Israel. No tempo presente, há um remanescente segundo a eleição da graça:

“Assim, pois, também, agora, neste tempo, ficou um remanescente, segundo a eleição da graça” (Romanos 11:5);

“Também, Isaías clama acerca de Israel: Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo. Porque ele completará a obra e abreviá-la-á em justiça; porque o Senhor fará breve a obra sobre a terra.” (Romanos 9:27 -28).

Salvação pelo Evangelho

Deus salva o homem por intermédio da mensagem do evangelho, pela loucura da pregação e pela fé, e não através de eleição, predestinação ou presciência. Os que creem na mensagem do evangelho são salvos, pois o evangelho é o poder de Deus para a salvação de todos os que creem:

“Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê.” (Romanos 1:16)

Portanto, a salvação é um ato de fé na mensagem do evangelho, e não um resultado direto da eleição divina. Romanos 9 reafirma que a fidelidade de Deus à Sua Palavra é inquestionável, e que Ele cumpre Sua promessa, preservando a linhagem que traria o Salvador ao mundo.

Correção ortográfica: Pr. Carlos Gasparotto


[1] “02623  חסיד  (chaciyd) procedente de 2616; DITAT – 698b; adj 1) fiel, bondoso, piedoso, santo 1a) bondoso 1b) piedoso, devoto 1c) os fiéis (substantivo)”, Dicionário Bíblico Strong.

[2] 02616″ חסד (chacaduma) raiz primitiva; DITAT – 698, 699; v1) ser bom, ser gentil 2a) (Hitpael), mostrar bondade para 2) ser reprovado, ser envergonhado 1a) (Piel) ser envergonhado, ser reprovado”, Dicionário Bíblico Strong.

[3] תמים 08549 (tamiym) procedente de 8552; DITAT – 2522d; adj. 1) completo, total, inteiro, são 1a) completo, total, inteiro 1b) total, são, saudável 1c) completo, integral (referindo-se ao tempo) 1d) são, saudável, sem defeito, inocente, íntegro fig. Figuradamente 1e) que está completa ou inteiramente de acordo com a verdade e os fatos (adj./subst. neutro)”, Dicionário Bíblico Strong.

[4]תמם 08552 (tamam) uma raiz primitiva; DITAT – 2522; v. 1) ser completo, estar terminado, acabar 1a) (Qal), 1a1) estar terminado, estar completo, 1a1a) completamente, totalmente, inteiramente (como auxiliar de outro verbo), 1a2) estar terminado, acabar, cessar, 1a3) estar completo (referindo-se a número), 1a4) ser consumido, estar exausto, estar esgotado, 1a5) estar terminado, ser consumido, ser destruído, 1a6) ser íntegro, ser idôneo, ser sem defeito, ser justo (eticamente), 1a7) completar, terminar 1a8) ser atravessado, completamente, 1b) (Nifal) ser consumido, 1c) (Hifil)”, Dicionário Bíblico Strong.

[5] ברר 01305 (barar) uma raiz primitiva; DITAT – 288; v 1) purificar, selecionar, polir, escolher, depurar, limpar ou, tornar brilhante, testar ou, provar, 1a) (Qal), 1a1) depurar, purificar, 1a2) escolher, selecionar, 1a3) limpar, deixar brilhante, polir, 1a4) testar, provar, 1b) (Nifal) purifi/car-se, 1c) (Piel) purificar, 1d) (Hifil), 1d1) purificar, 1d2) polir flechas, 1e) (Hitpael), 1e1) purificar-se, 1e2) mostrar-se puro, justo, bondoso”, Dicionário Bíblico Strong.

[6] פתל 06617 (pathal) uma raiz primitiva; DITAT – 1857; v. 1) torcer, 1a) (Nifal), 1a1) ser torcido, 1a2) lutar, 1b) (Hitpael), ser torcido”, Dicionário Bíblico Strong.

[7] עקש 06141 (iqqesh) procedente de 6140; DITAT – 1684a; adj. 1) torcido, deformado, torto, perverso, pervertido”, Dicionário Bíblico Strong.

[8]Faraó é a designação (título) que se atribuí aos reis (com estatuto de deuses) no Antigo Egito, porém, à época o povo os chamava por nesu (“rei”) ou neb (“senhor”). Faraó decorre da tradução grega da Bíblia, que deriva da expressão egípcia per-aá, “a grande casa”, que a tradição entende como sendo referência ao palácio real, à sede do poder, mas a expressão pode fazer referência à linhagem dos faraós.

[9] “4645 σκληρυνωs (kleruno) de 4642; TDNT – 5:1030, 816; v 1) tornar duro, endurecer 2) metáf. 2a) tornar obstinado, teimoso, 2b) ser endurecido, 2c) tornar-se obstinado ou, teimoso”, Dicionário Bíblico Strong.

[10] “07185 קשה (qashah uma raiz primitiva; DITAT – 2085; v. 1) ser duro, ser severo, ser feroz, ser cruel 1a) (Qal), 1a1) ser duro, ser difícil, 1a2) ser rude, ser severo, 1b) (Nifal), 1b1) ser maltratado 1b2) ser oprimido 1c) (Piel), ter grandes dores de parto (referindo-se a mulheres), 1d) (Hifil), 1d1) tornar difícil, criar dificuldade, 1d2) tornar rigoroso, tornar fatigante, 1d3) endurecer, tornar obstinado, tornar teimoso, 1d3a) referindo-se a obstinação (fig.), 1d4) demonstrar teimosia”, Dicionário Bíblico Strong.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

9 thoughts on “Deus endurece a quem quer?

  • Todos os seus comentários são muito interessantes, tem me ajudado em várias questões, tirado várias dúvidas e enriquecido o meu conhecimento.
    Parabéns, e que Deus continue te usando para a glória Dele.

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  • Nossa grande estudo a respeito de textos tao difíceis, obrigado por nos esclarecer a a verdade perfeita da Palavra de Deus, fica na paz

    Resposta
  • Boa tarde. Apostolo Paulo estava falando sobre a salvação de Israel, comece ler do capitulo 9 de romanos para entender o contexto. Começa no capitulo 9 e vai até o capitulo 11 sobre o endurecimento temporario de Israel.

    Resposta
  • QUANTO EGOCENTRISMO HUMANO!
    um arminiano enrola o leitor!
    Fala em soberania de Deus e põe a soberania no querer do homem, escravo fiel e intransigente do seu senhor, o PECADO.
    Você irá a um escravo buscar alguma ação livre?

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    • Olá, Edward..

      Um escravo embora sob senhorio, sempre teve as ações livres. Se assim não fosse não havia escravos que fugiam de seus senhores.
      Com a sua colocação, os servos de Cristo não são livres? Não há ação livre em um serva justiça?

      Me desculpe, mas não sou arminianista.

      Att

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  • Não sou Teólogo, apenas um simples servo de Deus. As suas colocações sobre Deus endurecer a quem ele quer funciona da seguinte maneira:
    eu tomo conhecimento de que há alguém necessitando de uma oração por estar enferma ou em dificuldades… Quando me preparo para orar intercedendo por aquela pessoa, observo vários empecilhos como esqueço o nome daquela pessoa e lembro dos demais, foge o desejo de orar até a próxima vez, e o pior de tudo: Quando menciona o nome daquela pessoa eu sinto um peso no coração e as vezes minha mente se fecha, sinto falta de inspiração… É a minha experiencia pastor que me permite afirmar que quando Deus me dá tal sensação eu deixo de orar e quando lembro eu oro e completo que seja feita apenas a tua vontade(Deus).Amém.

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    • Olá, Adeilson

      Nossas experiências pessoais não pode ser o parâmetro para determinarmos as coisas relacionadas a Deus. O parâmetro deve ser as Escrituras, pois nela se revela a vontade de Deus e o que ele exige do homem.

      Att.

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  • anseio por sua análise pastor capitão, pois minha intensão é não somente aprender,mas também ensinar,Paz que Deus nos abençoe.

    Resposta

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