Anjos ou mensageiros
O termo traduzido por ‘anjo’ no Novo Testamento é ἄγγελος (ággelos), que pode fazer referência a um mensageiro (homem) ou a um ser celestial (anjo). É consenso que somente o contexto onde o termo ἄγγελος é empregado possibilita determinar se o termo faz referência a um mensageiro humano (profeta) ou a um ser celestial.
Por exemplo, temos João Batista, um mensageiro humano, e o termo ἀγγέλους (ággelos) é empregado quando da citação do profeta Malaquias:
“João é aquele de quem está escrito: Adiante da tua face envio o meu anjo, que preparará diante de ti o teu caminho” (Mateus 11.10; Malaquias 3.1).
O termo também é empregado para um ser celestial, conforme demonstra o contexto:
“E um anjo do Senhor lhe apareceu, posto em pé, à direita do altar do incenso.” (Lucas 1.11).
Em razão do uso do termo ‘ággelos’ ser comum a homens e anjos, destacando-lhes a missão de mensageiros, se faz indispensável para a leitura e compressão do verso 6, de Judas, compreender o contexto.
“E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia;” (v. 6).
Consideremos o Salmo 78, que contém um resumo da história de Israel:
“Porque ele estabeleceu um testemunho em Jacó, e pôs uma lei em Israel, a qual deu aos nossos pais para que a fizessem conhecer a seus filhos. Para que a geração vindoura a soubesse, os filhos que nascessem, os quais se levantassem e a contassem a seus filhos; Para que pusessem em Deus a sua esperança, e se não esquecessem das obras de Deus, mas guardassem os seus mandamentos” ( Sl 78:5 ).
Qual era o encargo de cada membro do povo de Israel? Tinham que relatar aos seus filhos o que Deus havia feito para com os pais, de modo que os filhos que nascessem contassem aos seus filhos, e assim por diante. Considerando a ordem de Deus, todos em Israel eram mensageiros de Deus, comissionados a repassar aos seus filhos o testemunho estabelecido em Jacó.
“Tão-somente guarda-te a ti mesmo, e guarda bem a tua alma, que não te esqueças daquelas coisas que os teus olhos têm visto, e não se apartem do teu coração todos os dias da tua vida; e as farás saber a teus filhos, e aos filhos de teus filhos.” (Deuteronômio 4.9).
No segundo livro das Crônicas dos reis de Israel ficou registrado o seguinte:
“E o SENHOR Deus de seus pais, falou-lhes constantemente por intermédio dos mensageiros, porque se compadeceu do seu povo e da sua habitação. Eles, porém, zombaram dos mensageiros de Deus, e desprezaram as suas palavras, e mofaram dos seus profetas; até que o furor do SENHOR tanto subiu contra o seu povo, que mais nenhum remédio houve” (2 Crônicas 36.15-16).
Sobre essa questão, afirmou o escritor aos Hebreus:
“HAVENDO Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo” (Hebreus 1.1-2).
Quem é o anjo que o Pregador alerta para não dizer que foi um erro?
“Não consintas que a tua boca faça pecar a tua carne, nem digas diante do anjo que foi erro; por que razão se iraria Deus contra a tua voz, e destruiria a obra das tuas mãos?” (Eclesiastes 5.6).
Pelo contexto, percebe-se que este anjo é um sacerdote, e não um ser celestial. Na verdade, ao instruir os filhos de Israel a atentarem mais para o que era ensinado no templo, do que se apressar e fazer um voto, ou oferecer um sacrifício, que o ofertante não tinha condições de pagar ou cumprir (Eclesiastes 5.1-5), e depois, comparecer diante do sacerdote e dizer que foi um erro ao votar o que não tinha como cumprir (Eclesiastes 5.7; 1 Samuel 15.22).
É sabido que Deus é a habitação de Israel:
“O Deus eterno é a tua habitação, e por baixo estão os braços eternos; e ele lançará o inimigo de diante de ti, e dirá: Destrói-o.” (Deuteronômio 33.27).
Mas, se os filhos de Israel se rebelassem, seriam rejeitados e destruídos:
“Também Deus te destruirá para sempre; arrebatar-te-á e arrancar-te-á da tua habitação, e desarraigar-te-á da terra dos viventes. (Selá.)” (Salmos 52.5).
É importante frisar, que o apóstolo Pedro, quando apresentou o povo de Israel como exemplo negativo, pois havia falsos profetas no meio do povo, ou acerca dos profetas que ministravam bênçãos que não era para os filhos de Israel, acaba fazendo uso do termo grego ‘ággelos’, comumente traduzido por seres celestiais (anjos):
“E TAMBÉM houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá também falsos doutores (…) Porque, se Deus não perdoou aos anjos que pecaram…” (2 Pedro 2.1 e 4);
“Aos quais foi revelado que, não para si mesmos, mas para nós, eles ministravam estas coisas que agora vos foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho; para as quais coisas os anjos desejam bem atentar” (1 Pedro 1.12).
Semelhantemente, o irmão Judas faz uso do termo ‘ággelos’ após fazer uma alusão negativa do povo de Israel:
“Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu depois os que não creram; e aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia” (Judas 1.6).
O escritor aos Hebreus também faz uso do termo ‘ággelos’ quando contrapôs a condição dos cristãos diante de Deus, e o exemplo negativo do povo de Israel quando se apresentou diante de Deus no monte Sinai que fumegava:
“Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos; À universal assembleia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados (…) Vede que não rejeiteis ao que fala; porque, se não escaparam aqueles que rejeitaram o que na terra os advertia, muito menos nós, se nos desviarmos daquele que é dos céus” (Hebreus 12.22 -23 e 25).
O escritor aos Hebreus também utiliza o termo ‘ággelos’ bem no início da sua epístola:
“HAVENDO Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho (…) Porque, se a palavra falada pelos anjos permaneceu firme, e toda a transgressão e desobediência recebeu a justa retribuição…” (Hebreus 1.1 e Hebreus 2.2; Hebreus 10.28; Atos 7.53).
Em todos os versos citados acima é apresentado um anuncio grave de juízo e condenação para os desobedientes. Todos os versos apontam para uma mensagem anunciada pelos profetas de Deus, e que nenhuma das palavras anunciada por eles falhou.
“Que confirmo a palavra do seu servo, e cumpro o conselho dos seus mensageiros; que digo a Jerusalém: Tu serás habitada, e às cidades de Judá: Sereis edificadas, e eu levantarei as suas ruínas” (Isaías 44.26).
Observando a passagem do escritor aos Hebreus, somos informados de que Deus falou de muitas maneiras ao povo de Israel através dos profetas. Ora, os profetas eram mensageiros de Deus e toda palavra que eles anunciaram ao povo de Israel permaneceram firme, e toda transgressão e desobediência recebeu o justo juízo. A palavra falada que permaneceu firme era a palavra dos profetas ou a palavra de seres celestiais?
“Porque, se a palavra falada pelos anjos permaneceu firme, e toda a transgressão e desobediência recebeu a justa retribuição,” (Hebreus 2.2).
Pelo contexto, percebe-se que a palavra que permaneceu firme é a falada pelos profetas, sendo que o escritor aos Hebreus utilizou o termo ‘aggelos’ neste verso, e no verso 1, do capítulo 1 ‘prophētais’. O verso 2, do capítulo 2, da epístola aos Hebreus, retoma o que foi exposto no verso 1 do capítulo 1, portanto, o termo ‘ággelos’ (anjos) não se refere a seres celestiais, e sim aos santos profetas, os mensageiros de Deus que antigamente falaram aos pais.
A palavra que permaneceu firme não foi emitida por seres celestiais (Isaías 44.26), antes pelos profetas que falaram de muitas maneiras aos pais (Hebreus 1.1 e Hebreus 2.2), e a mesma mensagem, na plenitude dos tempos, foi notificada pelo Filho aos cristãos (Hebreus 2.3).
“Que confirmo a palavra do seu servo, e cumpro o conselho dos seus mensageiros; que digo a Jerusalém: Tu serás habitada, e às cidades de Judá: Sereis edificadas, e eu levantarei as suas ruínas;” (Isaías 44.26).
Quando escreveu aos Colossenses, o apóstolo Paulo faz referência a um ‘culto aos anjos’. O que seria esse culto? Sabemos que os judaizantes queriam dominar os cristãos com o pretexto de humildade e reverencia cerimonial (θρησκεία) aos anjos (ἀγγέλων), entretanto, verifica-se que os judeus reverenciavam os ‘profetas’, e por isso edificavam os túmulos dos profetas.
“Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, envolvendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão” (Colossenses 2.18);
“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que edificais os sepulcros dos profetas e adornais os monumentos dos justos,” (Mateus 23.29).
Se não considerarmos a passagem de Mateus e o fato de que o termo ‘aggelos’ aplica-se a profetas e seres celestiais, a primeira ideia é estabelecer que os judeus cultuavam seres celestiais, sendo que, na verdade, reverenciavam religiosamente os profetas da Antiga Aliança.
É corrente fazer a leitura do verso 12, de 1 Pedro, capítulo 1, como se os seres celestiais quisessem pregar o evangelho:
“Aos quais foi revelado que, não para si mesmos, mas para nós, eles ministravam estas coisas que agora vos foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho; para as quais coisas os anjos desejam bem atentar“ (1 Pedro 1.12).
Há uma grande diferença entre ‘pregar o evangelho’ e ‘atentar’, ou seja, perscrutar (olhar para dentro, compreender). Considerando o contexto, tem-se os profetas do Antigo Testamento que profetizavam acerca da graça do evangelho que seria dada aos gentios (1 Pedro 1.10), e eles indagavam e investigavam para saber acerca daquilo que anunciavam e quando tais coisas que o espírito de Cristo lhes revelava aconteceriam. Eles de antemão predisseram os sofrimentos de Cristo e a gloria que havia de suceder, porém, sabiam que tal glória não pertencia a eles, pois foi revelado a eles que o que anunciavam não lhes pertencia (1 Pedro 1.11-12).
Mas, a glória que os profetas do Antigo Testamento ministravam, e que agora era anunciada pelos apóstolos através do Espírito Santo aos cristãos, era o que os profetas, os mensageiros (ággelos) de Deus desejavam perscrutar, ou seja, entender, como que olhando para dentro. Ora, o contexto aponta para os profetas e não para seres celestiais. No entanto, a leitura de que anjos desejaram pregar o evangelho se sedimentou ao longo dos anos, o que promove grande prejuízo à compreensão dos cristãos.
Por causa dessas questões apontadas com relação ao termo ‘ággelos’, a leitura do verso 6 de Judas deve ser feita considerando o que foi dito pelo profeta Jeremias acerca dos profetas e dos sacerdotes contaminados, pois o caminho deles foi descrito como escorregadio na escuridão. Analisando os versos 9 em diante, do capítulo 23, de Jeremias, que aborda a questão dos profetas (mensageiros, anjos), a sequência de ideias utilizadas por Judas para falar da destruição dos filhos de Israel que saíram do Egito e não creram (v. 5), bem como dos ‘mensageiros’ que estão guardados em algemas para o dia da visitação (v. 6), que são comparados aos habitantes de Sodoma e Gomorra (v. 7), pois cometeram adultério e estão postos como exemplos, é semelhante a sequência de temas que são abordados na profecia do profeta Jeremias:
“Quanto aos profetas: o meu coração está quebrantado dentro em mim (…) Porque tanto o profeta, como o sacerdote, estão contaminados; até na minha casa achei a sua maldade, diz o SENHOR. Portanto o seu caminho lhes será como lugares escorregadios na escuridão; serão empurrados, e cairão nele; porque trarei sobre eles mal, no ano da sua visitação, diz o SENHOR. Nos profetas de Samaria bem vi loucura; profetizavam da parte de Baal, e faziam errar o meu povo Israel. Mas nos profetas de Jerusalém vejo uma coisa horrenda: cometem adultérios, e andam com falsidade, e fortalecem as mãos dos malfeitores, para que não se convertam da sua maldade; eles têm-se tornado para mim como Sodoma, e os seus moradores como Gomorra.” (Jeremias 23.9 e 11-14).
“Certamente tu os puseste em lugares escorregadios; tu os lanças em destruição.” (Salmos 73.18).
Na profecia de Jeremias temos três pontos a destacar:
- Quanto aos profetas – os profetas de Israel eram os mensageiros, os anjos, postos por atalaias em Israel, mas que não guardaram a sua função, e deixaram o Senhor que os resgatou, portanto estão em lugares escorregadios na escuridão, preservados para o ano da visitação;
- Nos ministros de Samaria há loucura, mas nos de Jerusalém adultérios;
- São comparáveis as cidades de Sodoma e Gomorra.
Na abordagem de Judas, destacam-se três pontos:
- O povo de Israel foi resgatado do Egito, mas os que não creram foram destruídos;
- Dentre o remanescente que entrou na terra da promessa, os profetas que ficaram por atalaia (Isaias 56.10), não cumpriram com o seu dever (Miqueias 3.11), de modo que foram reservados na escuridão para o juízo do grande dia (Oseias 4.5; Oseias 9.7);
- De modo semelhante as cidades de Sodoma e Gomorra, esses que foram destinados à destruição praticaram imoralidades (prostituição), foram postos como exemplo de punição.
O profeta Jeremias anunciou o juízo de Deus sobre todos habitantes de Jerusalém, incluindo os reis, os príncipes, os sacerdotes e os profetas. Estes homens proeminentes em Israel são os ‘ággelos’ (mensageiros) que não guardaram a sua posição (principado).
“Mas tu dize-lhes: Assim diz o SENHOR: Eis que eu encherei de embriaguez a todos os habitantes desta terra, e aos reis da estirpe de Davi, que estão assentados sobre o seu trono, e aos sacerdotes, e aos profetas, e a todos os habitantes de Jerusalém” (Jeremias 13.13; Oseias 9.7-8).
O termo grego ἀρχή, transliterado ‘arché’, também possui o significado de chefe (acima de tudo), ou seja, diz de quem tem o primado porque está à frente do restante (“preeminente”), ou ‘principado’ (Judas 1.6). Como em algumas passagens bíblicas o termo ‘principado’ aplica-se aos seres celestiais, alguns teólogos consideraram que Judas, neste verso, estivesse tratando de anjos. Ora, não só os anjos exercem domínio, mas os homens também, cada qual em sua esfera de atribuição.
Como os filhos de Israel não deram ouvidos a voz de Deus, e os seus príncipes, profetas e sacerdotes não guardarem a sua posição (principado) e deixaram o Deus de Israel, ou seja, o local da sua habitação, o povo foi deportado segundo o juízo de Deus para Babilônia. Deixarem a própria morada (Deus) para juízo (deportação), o que dá um trocadilho, pois deixaram a própria terra quando foram deportados.
“O Deus eterno é a tua habitação, e por baixo estão os braços eternos; e ele lançará o inimigo de diante de ti, e dirá: Destrói-o” (Deuteronômio 33.27);
“Porque uma voz de pranto se ouviu de Sião: Como estamos arruinados! Estamos mui envergonhados, porque deixamos a terra, e por terem eles lançado fora as nossas moradas” (Jeremias 9.19).
Deus havia predito que haveria um grande dia de juízo, um dia de indignação, densas trevas e escuridão (Sofonias 1.15; Joel 2.2; Amós 518). De longa data Deus conclama os moradores de Jerusalém a se emendarem antes do grande e terrível dia.
“Dai glória ao SENHOR vosso Deus, antes que venha a escuridão e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a mude em sombra de morte, e a reduza à escuridão” (Jeremias 13.16).
Esta é a descrição da filha de Sião:
“Mas este é um povo roubado e saqueado; todos estão enlaçados em cavernas, e escondidos em cárceres; são postos por presa, e ninguém há que os livre; por despojo, e ninguém diz: Restitui” (Isaías 42.22).
“E serão ajuntados como presos numa masmorra, e serão encerrados num cárcere; e outra vez serão castigados depois de muitos dias” (Isaías 24.22).
O profeta Jeremias, ao confessar o pecado de Sião, assim descreve o resultado da ira de Deus:
“Assentou-me em lugares tenebrosos, como os que estavam mortos há muito. Cercou-me de uma sebe, e não posso sair; agravou os meus grilhões” (Lamentações 3.6-7).