No Sermão do Monte Jesus agrava as exigências da lei para que os seus ouvintes entendessem que nada faziam que os diferenciava dos pecadores, se tão somente fossem ouvintes do que estava nas Escrituras (Rm 2:13).
Não matarás e o Sermão da Montanha
Conteúdo do artigo
“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar, será réu de juízo” (Mateus 5:21).
Introdução
O Sermão do Monte foi anunciado, especificamente, com a finalidade de demover os filhos de Israel dos conceitos que, por tradição, herdaram de seus antepassados. A mensagem de Jesus contém elementos que possibilitaria à multidão reconhecer, através das Escrituras, a pessoa de Jesus de Nazaré como o Filho de Deus, o Filho de Davi (Sl 2:7; 2Sm 7:14).
Discursar para uma multidão composta por judeus não era uma tarefa fácil. Antes do Sermão do Monte, Jesus já havia discursado aos seus compatriotas e, quando abordou duas passagens bíblicas, de uma perspectivava diferente da que os seus concidadãos estavam acostumados a ouvir – as passagens bíblicas da viúva de Sarepta, de Sidom, e de Naamã, o chefe do exército sírio, leproso – quiseram lançá-lo do alto de um precipício: “E todos, na sinagoga, ouvindo estas coisas, se encheram de ira” (Lc 4:28-29).
Como mudar a concepção de um público que possuía entendimento equivocado acerca da lei, sem que ficassem irados? Como destacar a santidade da lei e apontar a necessidade dos seus ouvintes utilizarem a lei, legitimamente? Como destacar que a lei não cumpriu o seu papel (enferma), por causa do argumento que utilizavam (pela carne): – “Temos por pai a Abraão”.
Estas são algumas das censuras paulinas em desfavor dos judeus:
“Instrutor dos néscios, mestre de crianças, que tens a forma da ciência e da verdade na lei” (Rm 2:20).
“Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela usa, legitimamente; sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas” (1Tm 1:8-9).
“Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho, em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne” (Rm 8:3).
O público alvo de Jesus tinha a lei como a plenitude do conhecimento, da sabedoria, da doutrina insofismável, no entanto, o orador à frente da plateia era a própria Verdade encarnada, em quem todos os tesouros da sabedoria e da ciência estavam ocultos, mas não O receberam: “Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim” (Jo 14:6). “Em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Cl 2:3).
A lei, que era tão preciosa aos olhos da multidão, na verdade, tinha por objetivo conduzir os judeus a Cristo. Como seriam conduzidos? Quando informados pela lei que todos os homens pecaram – os judeus não eram exceção – consequentemente, precisariam de um Mediador: Jesus Cristo-homem: “Porque, o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10:4). “Por isso, nenhuma carne será justificada diante dele, pelas obras da lei, porque pela lei, vem o conhecimento do pecado” (Rm 3:20).
Através do Sermão da Montanha, Jesus destaca que a lei não cumpria a sua função por estar débil (enferma), uma vez que os judeus faziam da ‘carne o seu braço’, ou seja, se diziam salvos por serem descendência de Abraão (Jr 17:5).
A lei foi feita para os ímpios, mas como os filhos de Israel não utilizavam a lei, legitimamente, não compreenderam qual era a real condição deles, diante de Deus: pecadores!
O fato de os filhos de Jacó serem descendentes da carne de Abraão, tornou-se um empecilho para reconhecerem que eram pecadores, tal qual os gentios.
Após a leitura deste comentário ao Sermão do Monte, você terá os elementos necessários para compreender como Jesus, através de símiles, parábolas e enigmas, evidenciou aos seus ouvintes as bem-aventuranças dos seus seguidores, sem abrir mão de demonstrar a mensagem dos profetas e censurar os escribas e fariseus:
“Desde os dias de vossos pais, vos desviastes dos meus estatutos e não os guardastes” (Ml 3:7);
“Mas, vós vos desviastes do caminho, a muitos fizestes tropeçar na lei e corrompestes a aliança de Levi, diz o SENHOR dos Exércitos” (Ml 2:8).
No Sermão do Monte, Jesus não podia falar, abertamente, aos seus ouvintes que, ninguém, exceto os seus discípulos, observava a lei: “Não vos deu Moisés a lei? e nenhum de vós observa a lei! Por que procurais matar-me?” (Jo 7:19).
Jesus, também, não podia dizer, abertamente, que ele era o Cristo, o Filho unigênito de Deus, por isso anunciou a bem-aventuranças dos pobres, dos que choravam, dos mansos, dos sedentos, etc., para que seus ouvintes entendessem, pelas Escrituras, que quem lhes falava era o prometido Rebento do troco de Jessé (Is 11:1-4; Is 61:1-3)
Introduzindo mudança de concepção em relação à lei
Antes de apontar o que estava escrito na lei, Jesus deixou claro, aos seus ouvintes, uma impossibilidade:
“Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder à dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus” (Mt 5:21).
O que entender por ‘de modo nenhum entrareis no reino dos céus’? Que o reino dos céus estaria vetado (fechado), justamente, para aquelas pessoas que, desde tenra idade, eram ensinadas todos os sábados, nas sinagogas, que eram ditosas, especificamente, por terem, por pai, o patriarca Abraão.
Em outras palavras Jesus, disse à multidão: – ‘Vocês não entrarão no reino dos céus…’. A assertiva de Jesus foi abrandada pela condição estabelecida, antes da negativa: ‘…se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus” (v. 21). A multidão não se assustou com a impossibilidade, em função da condição estabelecida por Cristo, uma vez que, ainda, seria possível entrar no reino dos céus, se alcançassem justiça superior à dos escribas e fariseus.
Os filhos de Israel estavam acostumados com o surgimento de intermináveis normas e regulamentos, elaboradas pelos escribas – que, por tradição, passavam de pais para filhos, inicialmente, de forma oral (Mishnah), e, posteriormente, de maneira escrita (Talmud) – que não protestaram, quando lhes foi anunciado, que não era possível entrarem no reino dos céus.
Os ouvintes de Jesus, possivelmente, aguardavam mais regras, nos moldes das anunciadas pelos escribas: – Que ações e omissões serão recomendadas, que darão direito a entrar no reino dos céus?
As intermináveis regras, que por tradição os judeus se sujeitavam, foram previstas pelo profeta Isaías:
“Assim, pois, a palavra do SENHOR lhes será mandamento sobre mandamento, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali; para que vão e caiam para trás, se quebrantem, se enlacem e sejam presos” (Is 28:13).
De modo que o povo se aproximava de Deus, somente com a boca, mas o coração estava longe de Deus, pois os mandamentos que cumpriam eram mandamentos de homens, aprendidos de forma rotineira (Is 29:13; Jr 12:2).
Apesar da ordem divina, para contemplarem a pedra preciosa de esquina, assentada em Sião (Is 28:16), as visões tornaram-se, para os filhos de Israel, como as palavras de um livro proibido, para aquele que sabe ler ou como um livro entregue nas mãos de quem não sabe ler (Is 29:11-12).
Diante desse quadro funesto, sete versículos nos chamam a atenção, pois são imprescindíveis para compreendermos a continuação do Sermão da Montanha:
“E naquele dia, os surdos ouvirão as palavras do livro e, dentre a escuridão, e dentre as trevas, os olhos dos cegos as verão. E os mansos terão gozo sobre gozo no Senhor; e os necessitados entre os homens se alegrarão no Santo de Israel. Porque o tirano é reduzido a nada e se consome o escarnecedor e todos os que se dão à iniquidade são desarraigados; Os que fazem culpado ao homem por uma palavra e armam laços ao que repreende na porta e os que, sem motivo, põem de parte o justo” (Is 29:18-21).
O cumprimento de várias profecias
O profeta Isaías predisse acerca de um dia, no qual os surdos haveriam de ouvir as palavras do livro e os olhos dos cegos haveriam de contemplá-las. ‘Surdez’ e ‘cegueira’ são figuras utilizadas pelos profetas para fazerem referência aos filhos de Israel, como nação: “Trazei o povo cego, que tem olhos; e os surdos, que têm ouvidos” (Is 43:8; Is 42:18 e 20; Is 32:3).
O dia que Isaías previu, diz do dia sobremodo oportuno (Is 25:9), pois a salvação em Cristo seria manifesta por Deus e Cristo seria dado por aliança do povo de Israel e luz para os gentios (Is 42:6; Is 49:5-9).
Mas, por que os filhos de Israel (surdos e cegos) ouviriam e veriam as palavras do livro, somente no dia aprazado? Porque os filhos de Israel estavam como bêbados, porém, não era de vinho, nem de bebida forte. Sobre os filhos de Israel pesava um espírito de profundo sono, torpor que se assemelha aos que estão bêbados, de modo que os olhos deles estavam como que, vedados, e os ouvidos como que, agravados (Is 29:10).
O dia aprazado por Deus diz do evento em que Jesus anunciaria bem-aventuranças (regozijo e alegria) aos mansos e necessitados (Is 29:19), quando Cristo, o Santo de Israel, julgaria e repreenderia os mansos e pobres, segundo a reta justiça, diferente dos líderes de Israel, que julgavam segundo o ouvir dos seus ouvidos e segundo a vista dos seus olhos, ou seja, segundo a aparência: “Mas julgará com justiça aos pobres e repreenderá, com equidade, aos mansos da terra; e ferirá a terra com a vara de sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará ao ímpio” (Is 11:4).
Enquanto Jesus anunciava as bem-aventuranças do Sermão do monte, as profecias registradas nos capítulos 11 e 29, de Isaías, se cumpriam. Jesus é o rebento que brotou do tronco de Jessé, sobre quem o espírito do Senhor repousava e, que se apresentou aos filhos de Israel, anunciando boas novas aos pobres: “Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: que os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho” (Lc 7:22; Is 61:1).
Embora Jesus estivesse se apresentando ao povo como a fortaleza do pobre e do necessitado e preparando uma festa para que todos os povos pudessem ser participantes, destruindo a morte e enxugando a lágrimas, ao retirar o opróbrio do seu povo de toda a terra (Is 25:4 -8), os filhos de Israel não O reconheceram como o Senhor, anunciado pelos profetas (Is 25:9).
É em função de rejeitarem a Cristo que o profeta anunciou: – ‘Quando eu vim, por que ninguém apareceu? Quando chamei, por que ninguém respondeu?’ (Is 50:2). Quem é o Senhor que, quando chamou ninguém respondeu? O mesmo Senhor que, quando veio, se fez servo e deu as suas costas aos que O feriam (Is 50:6). O mesmo servo do Senhor, o rebento da raiz de Jessé, que o espírito do Senhor estava sobre Ele, e que, portanto, tinha a língua instruída para dar descanso ao cansado (Is 50:4).
O leitor do Sermão do Monte não pode perder de vista que os eventos registrados por Isaías, pois alguns aspectos dessas profecias estavam se cumprindo enquanto Jesus falava aos filhos de Israel.
Enquanto Jesus anunciava o reino, a obra de Deus estava sendo executada, em meio ao povo de Israel e a sabedoria dos líderes de Israel destruída (Is 29:14). Os líderes de Israel (tiranos), homens escarnecedores e dados à iniquidade, estavam sendo reduzidos a nada (Is 29:20). “Porque os estranhos se levantam contra mim e tiranos procuram a minha vida; não têm posto Deus perante os seus olhos. (Selá)” (Sl 54:3). “Ó Deus, os soberbos se levantaram contra mim e as assembleias dos tiranos procuraram a minha alma e não te puseram perante os seus olhos” (Sl 86:14).
Os líderes de Israel, a pretexto de uma lei, forjaram o mal contra o justo, condenando quem não tinha culpa alguma (Sl 94:19-20). A profecia do Salmo 94 é a mesma anunciada pelo profeta Isaías, pois fala de tiranos, escarnecedores e iníquos que fariam o Cristo culpado; que armariam laços para Ele, por repreender na ‘porta’, e que, por fim, negariam justiça ao inocente (Is 29:21).
‘Porta’ é referência ao local onde os juízes, príncipes e anciões se reuniam: “Seu marido é conhecido nas portas e assenta-se entre os anciãos da terra” (Pv 31:23). Quando é dito: “Levantai, ó portas, as vossas cabeças” (Sl 24:7), é uma previsão referente ao futuro, quando todos reunidos em uma assembleia serão convocados a se postarem de pé, visto que o rei da glória estará adentrando ao recinto.
Os lideres de Israel, homens que se assentavam à porta e que armariam laços, se opuseram a Cristo durante o Seu ministério e negaram-lhe justiça, quando O condenaram à morte, o Filho de Deus que tinha zelo da casa do Pai e os seus irmãos se tornaram estranhos: “Aqueles que se assentam à porta, falam contra mim; e fui o cântico dos bebedores de bebida forte” (Sl 69:12; Sl 69:8-9; Jo 2:17).
Cristo tinha uma causa: obediência ao Pai (Jo 4:34). Por causa da obra do Pai, Jesus ‘repreendia na porta’ e os líderes de Israel se opunham (Sl 69:12). O Filho de Deus se fez servo, obedecendo ao Pai até a morte e morte de cruz (Fl 2:8), mas os seus negaram-lhe justiça e o mataram (At 3:13; Is 53:8; At 8:33).
Sabedor dos eventos previstos nas Escrituras, Jesus instrui os seus ouvintes sobre o homicídio!
“Não vos deu Moisés a lei? E nenhum de vós observa a lei. Por que procurais matar-me?” (Jo 7:19; Jo 8:37 e 40)
Não matarás
“21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar, será réu de juízo” (Mt 5:21).
Após afirmar, categoricamente, que, caso a justiça dos seus ouvintes – uma multidão composta de judeus – não fosse superior à justiça dos escribas e fariseus, de maneira nenhuma herdariam o reino dos céus, Jesus chamou a atenção dos seus ouvintes, ao lembrá-los do que ouviram, acerca do que foi anunciado aos antigos:
“Não matarás; mas, qualquer que matar, será réu de juízo” (v. 21).
Como Jesus falava à multidão, não afirmou: ‘Está escrito’, e nem questionou: ‘Nunca lestes?’, ou ‘O que está escrito?’, ou ‘Como lês?’, etc., antes, fez referência ao que ouviram, pois mais de 97% dos que ali estavam eram analfabetos[1]: ‘Ouvistes que foi dito aos antigos: …’ (v. 21). “Nós temos ouvido da lei, que o Cristo permanece para sempre” (Jo 12:34; Jo 10:34; Jo 8:17; Lc 19:46; Lc 10:26; Mc 7:6).
A multidão, rotineiramente, ouvia, aos sábados, os mandamentos, conforme o que está escrito no Êxodo: “Não matarás” (Êx 20:13) e suas consequências legais: ‘E quem matar a alguém, certamente, morrerá’ (Lv 24:17; Lv 24:21; Nm 35:30).
Como os judeus passaram à condição de escravos das nações vizinhas, desde a conquista dos Babilônicos, por volta do século V a.C., a autonomia para aplicarem a pena capital inexistia, restando somente submeterem os seus réus, nos casos de homicídios, aos tribunais estrangeiros.
A morte de Jesus, a cargo dos Romanos, deixa claro que os judeus não podiam praticar a pena capital pois, apelaram para Pôncio Pilatos, procurador da Judéia, e tiveram que pressioná-lo para condenar Cristo à morte: “Desde, então, Pilatos procurava soltá-lo; mas os judeus clamavam, dizendo: Se soltas a este, não és amigo de César; qualquer que se faz rei é contra César” (Jo 19:12).
Embora, julgado no Sinédrio (Mt 26:57), corte judaica composta por príncipes, sacerdotes, rabinos, escribas, fariseus, Jesus foi conduzido ao pretório, perante Pilatos (Mt 1:1 -2; Lc 23:1), seguido de grande multidão, para pressionar o governo local a condená-Lo à morte (Jo 19:12 e 15).
Por fim, a pena capital não foi aplicada por apedrejamento, mas, por crucificação, que, segundo a lei mosaica, qualquer que fosse pendurado no madeiro, seria maldito de Deus: “Responderam e disseram-lhe: Se este não fosse malfeitor, não to entregaríamos. Disse-lhes, pois, Pilatos: Levai-o vós e julgai-o segundo a vossa lei. Disseram-lhe então os judeus: A nós não nos é lícito matar pessoa alguma. (Para que se cumprisse a palavra que Jesus tinha dito, significando de que morte havia de morrer)” (Jo 18:30-32). “Quando, também, em alguém houver pecado, digno do juízo de morte, e for morto, e o pendurares num madeiro, o seu cadáver não permanecerá no madeiro, mas, certamente, o enterrarás, no mesmo dia; porquanto o pendurado é maldito de Deus; assim, não contaminarás a tua terra, que o SENHOR teu Deus te dá em herança” (Dt 21:22-23).
Decorrente do mandamento ‘Não matarás’, havia, ainda, a obrigação dos filhos de Israel, de se afastarem do falso testemunho, bem como, de não matarem o inocente e o justo: “De palavras de falsidade te afastarás e não matarás o inocente e o justo; porque não justificarei o ímpio” (Êx 23:7).
Os filhos de Israel tinham o dever de testemunhar, verazmente, segundo o que viram e ouviram, pois, pela palavra de duas pessoas, uma outra podia ser morta: “Todo aquele que matar alguma pessoa, conforme depoimento de testemunhas, será morto; mas, uma só testemunha, não testemunhará contra alguém, para que morra” (Nm 35:30). “Por boca de duas testemunhas, ou três testemunhas, será morto o que houver de morrer; por boca de uma só testemunha não morrerá” (Dt 17:6; Jo 8:17).
Os filhos de Israel foram alertados para não seguirem a maioria, tomando parte com a maioria, para torcer o direito, o que fizeram quando condenaram a Jesus: “Não seguirás a multidão, para fazeres o mal; nem, numa demanda falarás, tomando parte com a maioria para torcer o direito” (Êx 23:2).
Segundo a lei, a pena capital não podia passar da pessoa do transgressor, ou seja, a alma que pecasse, essa mesma, morreria: “Os pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos pelos pais; cada um morrerá pelo seu pecado” (Dt 24:16; Ez 18:4). E, se a pena fosse açoites, a quantidade de açoites não poderia ultrapassar uma quarentena, para o condenado não ser aviltado: “Quarenta açoites lhe fará dar, não mais; para que, porventura, se lhe fizer dar mais açoites do que estes, teu irmão não fique envilecido aos teus olhos” (Dt 25:3).
Tudo o que estava estabelecido na lei servia para preservar os filhos de Israel como povo e de aviso para não participarem da morte de Cristo, no entanto, acabaram torcendo o direito, ao se deixarem guiar por homens inescrupulosos, que se utilizaram de testemunhas mentirosas e entregaram Jesus para ser morto: “Ora, os príncipes dos sacerdotes, os anciãos e todo o conselho, buscavam falso testemunho contra Jesus, para o conduzirem à morte; E não o achavam; apesar de se apresentarem muitas testemunhas falsas, não o achavam. Mas, por fim, chegaram duas testemunhas falsas, e disseram: Este disse: Eu posso derrubar o templo de Deus e reedificá-lo em três dias” (Mt 26:59-61); “E os principais dos sacerdotes e todo o concílio buscavam algum testemunho contra Jesus, para o matar, mas não o achavam. Porque muitos testificavam falsamente contra ele, mas os testemunhos não eram coerentes. E, levantando-se alguns, testificaram falsamente contra ele, dizendo: Nós o ouvimos dizer: Eu derrubarei este templo, construído por mãos de homens e, em três dias, edificarei outro, não feito por mãos de homens” (Mc 14:55-58); “E, LEVANTANDO-SE toda a multidão deles, o levaram a Pilatos. E começaram a acusá-lo, dizendo: Havemos achado este pervertendo a nossa nação, proibindo dar o tributo a César e dizendo que ele mesmo é Cristo, o rei” (Lc 23:1-2).
Portanto, os filhos de Israel feriram o Justo (Jo 18:22-23), deixaram que fosse açoitado por estrangeiros (Jo 19:1) e, por fim, entregaram-no para ser morto (Jo 19:16; Jo 19:23).
Os escribas e fariseus faziam o que bem entendiam com a lei, como se lê:
“Responderam-lhe os judeus: Nós temos uma lei e, segundo a nossa lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus” (Jo 19:7);
“Disse-lhes, pois, Pilatos: Levai-o vós e julgai-o, segundo a vossa lei. Disseram-lhe, então, os judeus: A nós não nos é lícito matar pessoa alguma“ (Jo 18:31).
Assim, se cumpriram as Escrituras, que dizem:
“Pode acaso associar-se contigo o trono da iniquidade, que forja o mal, tendo por pretexto uma lei? Eles se ajuntam contra a alma do justo e condenam o sangue inocente” (Sl 94:20 -21).
Não há sociedade entre a justiça e a injustiça e nem entre a luz e as trevas (2Co 6:14), portanto, os homens que exerciam domínio politico e religioso em Israel, tendo por base a lei, se uniram contra o Justo e o condenaram.
Vale destacar que, quando Davi estava no deserto de Parã com os seus homens, conviveram com os servos de Nabal, no Carmelo. Os homens de Davi não tomaram nada do rebanho de Nabal e ainda protegeram os servos de Nabal de toda sorte de ataques (1 Sm 25:15-16).
Quando Davi soube que o rico Nabal tosquiava as suas ovelhas, enviou seus servos a Nabal para pedirem, em nome de Davi, que ele concedesse alguma dádiva do que estava à mão. Nabal não mediu as palavras e disse aos servos de Davi: – “Quem é Davi, e quem é o filho de Jessé? Muitos servos há hoje, que fogem ao seu senhor. Tomaria eu, pois, o meu pão, a minha água e a carne das minhas reses, que degolei, para os meus tosquiadores e o daria a homens que eu não sei donde vêm?” (1 Sm 25:10-11).
Quando soube do agravo de Nabal, Davi ordenou aos seus homens que cingissem a espada, deixou duzentos homens cuidando da bagagem e subiram em quatrocentos homens com o propósito de por fim a Nabal e à sua casa: “E disse Davi: Na verdade que, em vão, tenho guardado tudo quanto este tem no deserto e nada lhe faltou de tudo quanto tem e ele me pagou mal por bem. Assim, faça Deus aos inimigos de Davi, e outro tanto, se eu deixar até amanhã de tudo o que tem, até mesmo um menino” (1 Sm 25:21-22).
Abigail, mulher de Nabal, quando soube do agravo que o seu marido fez a Davi, rapidamente tomou consigo presentes e foi ao encontro de Davi. Quando viu a comitiva de Davi, de imediato prostrou-se em terra e avocou para si a transgressão do seu marido.
Apesar de Davi ser um homem de guerra, Abigail foi enviada, por Deus, para que Davi não derramasse sangue e as suas próprias mãos lhe servissem de salvação (1 Sm 25:26). Por Deus, Abigail acentuou a Davi, que ele não foi posto para fazer suas próprias guerras e nem para defender a sua própria honra (1 Sm 25:31).
Embora fosse um homem de guerra, Davi não podia matar para defender a sua honra, assim como qualquer um em Israel não podia. Nabal era um louco, tanto no nome, quanto nas atitudes, conforme o testemunho de Abigail, porém, Davi não tinha o direito de lançar mão da vida de Nabal, da mesma forma que não podia lançar mão de Saul (1 Sm 24:6).
O mandamento: “Não matarás”, não comportava exceções! Não podia matar um ungido, bem como, não podia matar qualquer do povo. Os filhos de Israel não podiam matar quem pagasse mal por bem, quanto mais, por inveja: “Porque sabia que por inveja o haviam entregado” (Mt 27:18).
Metanoia
Ao lembrar a multidão, acerca do que ouviram da lei (não matarás, não adulterarás,…), Jesus estabeleceu um ponto de apoio à sua exposição, que terá o seu clímax nas questões dos versos 46 e 47: “Não fazem os cobradores de impostos o mesmo?”; “Não fazem os gentios também assim?”.
Sabedor de que o único argumento que os filhos de Israel escutavam, ao seu próprio modo, era a lei, Jesus lembra aos seus ouvintes alguns mandamentos da lei para poder evidenciar a impossibilidade de alcançarem justiça superior à dos seus líderes, por meio das práticas que, por tradição, receberam dos seus pais.
Jesus precisava operar nos seus ouvintes, uma revolução no modo de interpretar (metanoia) a Lei, os Profetas e os Salmos, entretanto, não podia dizer a sua mensagem abertamente, assim como o apóstolo Paulo, quando escreveu aos Gálatas: “E é evidente que, pela lei, ninguém será justificado diante de Deus, porque o justo viverá da fé” (Gl 3:11).
O apóstolo Paulo disse, abertamente, aos da sinagoga de Antioquia da Pisídia, que, pela lei de Moisés, não podiam ser justificados: “E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por ele é justificado todo aquele que crê” (At 13:39). Jesus Cristo, por sua vez, tinha que evidenciar essa verdade, por meio de parábolas e enigmas.
Lembrando Jesus não podia dizer abertamente: – “Eu sou o Cristo”, e por isso mesmo proibia aos seus discípulos que anunciassem que Ele era o Cristo (Mt 16:20), isto porque os filhos de Israel deviam identifica-Lo como o Cristo por intermédio da sua doutrina (Jo 7:16 -17).
Quando Jesus apresenta a necessidade de adquirir justiça superior à dos escribas e fariseus, na verdade, evidencia a fraqueza e a inutilidade da lei, para aquilo que os filhos de Israel pretendiam: direito a entrar no reino dos céus (Hb 7:18; Gl 4:9).
A lei é proveitosa, porque evidencia a condição dos homens e anuncia bem-aventurança a todas as famílias da terra, através do descendente de Abraão, não pelos rudimentos fracos e pobres que os seus seguidores abstraíram, como ’guardar dias, meses, tempos e anos’, ou ordenanças, que tem por base ‘não toques, não proves, não manuseies’ (Cl 2:21).
O que a multidão ouviu, acerca do que foi dito por Deus aos antigos (Êx 20:1 e 22), somado ao que Jesus estava propondo, compunha os elementos necessários para que os seus ouvintes considerassem que tudo o que faziam, tendo por pretexto a lei de Moisés, os gentios e os publicanos, igualmente, faziam o mesmo. Como os filhos de Israel faziam o mesmo que os gentios e publicanos, Jesus introduz algumas questões para considerarem: – “Eu, porém, vos digo…” (Mt 5:22).
Os ouvintes de Jesus estavam acostumados com o ensinamento de que não poderiam ser (roubadores, injustos e adúlteros) como os demais homens (gentios), nem mesmo como os publicanos (judeus, cobradores de impostos para Roma). Também não bastava ser judeu ou prosélito, antes eram necessárias as práticas de jejuns, dízimos, etc. “O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana e dou os dízimos de tudo quanto possuo” (Lc 18:11-12).
As observações: ‘Que recompensa tereis? Que fazeis de mais? Não fazem os publicanos o mesmo? Não fazem os gentios, também, assim?’ remontam ao que foi dito pelo apóstolo Paulo aos cristãos em Roma:
“PORTANTO, és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu, que julgas, fazes o mesmo” (Rm 2:1).
Jesus frisou à multidão: – ‘Ouvistes o que foi dito aos antigos…’, em vez de: – ‘Praticais o que foi dito aos antigos’, o que remete à observação paulina:
“Porque os que ouvem a lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados” (Rm 2:13).
Como obteriam justiça superior aos escribas e fariseus, se eram somente ouvintes da lei? Como teriam direito a entrar no reino dos céus, se praticavam as mesmas ações que os gentios (demais homens) e cobradores de impostos? Apesar de os gentios não terem lei, naturalmente, faziam as mesmas coisas que eram da lei!
”Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem, naturalmente, as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; Os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando, juntamente, a sua consciência e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” (Rm 2:13-15).
Jesus precisava fazer a multidão entender que eram transgressores da lei, tanto eles, quanto os seus mestres, pois o ensinamento dos seus mestres resumia-se em proibir matar, roubar, furtar, adulterar, etc. “Tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve adulterar, adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes sacrilégio? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus, pela transgressão da lei? Porque, como está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios, por causa de vós” (Rm 2:21-24); “E testificaste contra eles, para que voltassem para a tua lei; porém eles se houveram soberbamente e não deram ouvidos aos teus mandamentos, mas pecaram contra os teus juízos, pelos quais o homem que os cumprir viverá; viraram o ombro, endureceram a sua cerviz e não quiseram ouvir” (Ne 9:29).
Observe que o Sermão tem por alvo a multidão composta por judeus, pessoas que precisavam compreender que o reino de Deus estava no meio deles e, que, portanto, a argumentação de que tinham por pai a Abraão, não era válida. Que a vantagem, em relação aos gentios, de ser confiada, primeiramente, a palavra de Deus aos judeus (circuncisão), de modo algum tornava os da circuncisão melhores que os gentios, pois a lei que os judeus tinham como forma da ciência e da verdade, realizava um papel inclusivo, demonstrando que os judeus também eram pecadores (Rm 3:1-31).
O maior dos equívocos, acerca do Sermão do Monte, é entender que Jesus estabeleceu um novo código moral ou um novo padrão de conduta que os seus discípulos deveriam seguir.
Observe esta colocação, que consta do Novo Comentário Bíblico do Novo Testamento:
“Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus. Esse foi o clamor de Jesus, ao iniciar Seu ministério público na Galileia (Mt 4.17). Sua mensagem rapidamente se espalhou e grandes multidões vieram ouvi-lo da Galileia, de toda Síria e de Decápolis e, também, de Jerusalém, da Judéia e dalém do rio Jordão (Mt 4.24,25). Todos iam a Ele para ouvir sobre o Reino; Jesus, em vez disso, falava sobre o estilo de vida daqueles que queriam viver no Reino. 0 Sermão do Monte contém a essência do ensinamento moral e ético de Jesus”. O Novo Comentário Bíblico do Novo Testamento, com Recursos Adicionais — A Palavra de Deus ao alcance de todos. Editores Earl Radmacher, Ronald B. Allen e H. Wayne House, Rio de Janeiro, 2010, pág. 27.
Os editores do ‘O Novo Comentário Bíblico do Novo Testamento’, inicialmente, destacaram a mensagem de Jesus, no início do seu ministério: ‘Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus’. Em seguida, destacam que a mensagem de Jesus se espalhou, rapidamente, e grandes multidões o procuravam. Até esse ponto, a abordagem dos editores do comentário bíblico, em questão, está correta.
O problema está na assertiva de que todos queriam ouvir Jesus sobre o Reino, pois o texto bíblico não diz assim. Observe:
“E percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas suas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando todas as enfermidades e moléstias entre o povo. E a sua fama correu por toda a Síria e traziam-lhe todos os que padeciam, acometidos de várias enfermidades e tormentos, os endemoninhados, os lunáticos e os paralíticos e ele os curava. E seguia-o uma grande multidão da Galileia, de Decápolis, de Jerusalém, da Judéia e de além do Jordão” (Mt 4:23-25).
O interesse das multidões estava nas curas que Jesus operava e os editores do ‘O Novo Comentário’ inferiram que as multidões estavam interessadas em ouvir sobre o reino. Em seguida, afirmam que Jesus ‘falava sobre o estilo de vida daqueles que queriam viver no Reino’, o que não condiz com o exposto nos Evangelhos.
No Sermão do Monte, Jesus não estava propondo um estilo de vida aos seus ouvintes e nem abordando questões de cunho moral e ético. Até porque, o que foi dito no Sermão do Monte não se constitui uma regra de conduta para a igreja de Cristo, antes, são argumentos que visavam mudar a concepção dos judeus, para que cressem em Cristo.
Não encontramos nos Evangelhos Jesus orientando os seus discípulos acerca de questões éticas e morais, até porque, para os cristãos, tudo é licito, ressalvado o que não é conveniente e o que não edifica: “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam” (1 Co 10:23).
No Novo Testamento, não temos ordenanças e mandamentos, mas, recomendações, orientações, como se lê:
“Porquanto, ouvimos que alguns que saíram dentre nós vos perturbaram com palavras e transtornaram as vossas almas, dizendo que deveis circuncidar-vos e guardar a lei, não lhes tendo nós dado mandamento” (At 15:24); “Recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o que também procurei fazer com diligência” (Gl 2:10).
‘Estilo de vida’ é uma expressão moderna que se refere à forma pela qual uma pessoa ou, um grupo de pessoas, se porta no mundo e, em consequência, faz suas escolhas. O evangelho de Cristo não trata do comportamento ou das escolhas que as pessoas fazem no seu cotidiano, antes, se restringe em revelar Deus ao mundo: “Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou” (Jo 1:18).
Questões éticas e morais decorrem de julgamentos segundo o que é aparente e Jesus não julgava segundo as aparências: “E deleitar-se-á no temor do SENHOR; e não julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos” (Is 11:3).
“O ensino de Jesus era de que o ser humano não será julgado, apenas, por suas ações, mas sim, e ainda mais, por seus desejos, embora jamais tenham chegado a transformar-se em ação. Segundo as pautas morais do mundo, uma pessoa é boa se não cometer ações proibidas; o mundo não tem interesse em julgar os pensamentos. Segundo a pauta moral que Jesus propõe, ninguém pode ser considerado bom, a menos que jamais deseje fazer o proibido; Jesus Se interessa, profundamente, pelos pensamentos humanos. Disto surgem três coisas”. Barclay, William. Comentário do Novo Testamento.
Barclay afirma que a pauta moral de Jesus é proibir pensamentos e desejos, acerca do que era vetado na lei. Ora, Jesus não impôs proibições à multidão, antes, Ele veio salvar o que se havia perdido, tanto que Ele não julgava os seus interlocutores: “E se alguém ouvir as minhas palavras e não crer, eu não o julgo; porque eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo” (Jo 12:47); “Vós julgais segundo a carne; eu, a ninguém julgo” (Jo 8:15).
Seria um contrassenso impor restrições comportamentais a quem já foi julgado e está sob condenação – condição própria a todos os homens – pois nenhuma conduta adotada por um condenado pode livrá-lo da pena: “Pois, assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação…” (Rm 5:19).
Os ouvintes de Jesus foram ensinados que não eram pecadores por serem descendentes da carne e do sangue de Abraão. No entanto, como os da promessa é que são contados como descendência de Abraão (Rm 9:8-9), os ouvintes de Jesus eram pecadores, por serem descendentes da carne e do sangue de Adão, assim como Ismael, o filho da escrava Agar.
O julgamento e a condenação da humanidade ocorreram no Éden e lá todos foram apenados com a morte: destituição da glória de Deus. Dessa penalidade não há o que o homem faça ou deixe de fazer, pense ou deixe de pensar, queira ou deixe de querer que o absolva da condenação (Jo 3:18).
O julgamento das obras no Tribunal do Grande Trono Branco visa às ações dos homens, não pensamentos e desejos, assim como o julgamento dos salvos no Tribunal de Cristo: “E vi os mortos, grandes e pequenos, que estavam diante de Deus e abriram-se os livros; e abriu-se outro livro, que é o da vida. E os mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras“ (Ap 20:12).
Na verdade, quando Jesus evoca o que a multidão ouvia acerca dos assassinatos, adultérios, perjúrios, etc., simplesmente, era para destacar que os escribas e fariseus nada faziam de extraordinário, pois os publicanos, que eram tidos por eles como pecadores, igualmente não matavam, não adulteravam, não cometiam perjúrio, etc.
Zaqueu é um exemplo, pois como chefe dos publicanos e sendo rico, demonstrou ser integro, pois propôs devolver quadruplicado qualquer ganho ilícito, caso houvesse defraudado alguém sem perceber, segundo o que estabelecia a lei, além das contribuições que fazia aos pobres.
Isto demonstra que Zaqueu não era corrupto, pois se os seus bens fossem oriundos de corrupção, não teria como devolver o que defraudou quadruplicado: “E, levantando-se Zaqueu, disse ao Senhor: Senhor, eis que eu dou aos pobres metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, o restituo quadruplicado” (Lc 19:8).
Os versos 21 a 45, do capítulo 5, de Mateus, devem ser vistos sob o argumento que segue:
“Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos, também, o mesmo? E, se saudardes, unicamente, os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos, também, assim?” (Mt 5:46-47).
Esse princípio também foi abordado pelo evangelista Lucas, pois é uma espécie de ‘alavanca’ que visa promover a mudança de concepção (metanoia) dos judeus que ouviam o discurso de Jesus.
“E se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? Também, os pecadores amam aos que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também, os pecadores fazem o mesmo. E se emprestardes àqueles de quem esperais tornar a receber, que recompensa tereis? Também, os pecadores emprestam aos pecadores, para tornarem a receber outro tanto” (Lc 6:32-34).
Quem eram os publicanos? Eram judeus a serviço de Roma que exerciam o ofício de cobrar impostos dos seus patrícios. Aos olhos da multidão, os publicanos eram pecadores e Jesus utilizou a figura, justamente, dos publicanos, para ilustrar algumas parábolas, como a ‘Parábola do Fariseu e do Publicano’, a ‘Parábola dos dois filhos’ e a ‘Parábola da Ovelha Perdida’.
Como é possível às meretrizes e aos publicanos terem direito ao reino dos céus e os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo, não?
“Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram-lhe eles: O primeiro. Disse-lhes Jesus: Em verdade, vos digo, que os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no reino de Deus” (Mt 21:31).
A mensagem do Sermão do Monte possui o seguinte viés: mudar a concepção dos seus ouvintes, para que façam a vontade de Deus, pois somente os que fazem a vontade de Deus são irmãos e mãe de Jesus: “Mas, respondendo ele, disse-lhes: Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a executam” (Lc 8:21).
Irmão
“22 Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno.
23 Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti,
24 Deixa ali, diante do altar, a tua oferta e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta.
25 Concilia-te, depressa, com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao oficial e te encerrem na prisão.
26 Em verdade te digo que, de maneira nenhuma, sairás dali, enquanto não pagares o último ceitil” (Mt 5:22-26).
Antes de prosseguir, o leitor precisa lembrar-se de uma passagem profética de Deuteronômio:
“O SENHOR teu Deus te levantará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis” (Dt 18:15).
Vale destacar que o apóstolo Pedro aplica a passagem de Deuteronômio à pessoa de Cristo, o irmão ‘escolhido’, dentre os filhos de Israel:
“Porque Moisés disse aos pais: O Senhor vosso Deus levantará de entre vossos irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser” (At 3:22).
Faz-se necessário lembrar que os métodos de ensino, ou a didática, na antiguidade, difere muito da didática dos nossos dias, que é carregada de definições e conceitos. Um método de ensino da antiguidade era a dialética, no qual o papel do instrutor consistia mais em perguntar e inquirir, do que responder ou, contestar, o aprendiz. Outro, o método maiêutico, era baseado na ironia e no diálogo, etc.
Na matemática, por causa dos ‘operadores lógicos’ ou, ‘conectivos lógicos’, é possível estabelecer uma prova por ‘contradição’ ou ‘redução ao absurdo’, do latim ‘reductio ad absurdum’[2].
Como operar uma mudança de concepção em um povo que se julgava superior aos gentios, por tere uma lei? Negando a lei? Não! Como a lei é santa e o mandamento santo, justo e bom (Rm 7:12), seria necessário enfatizá-la, pois, ela foi introduzida para mudar a concepção dos judeus, para que eles viessem a Cristo. Mas, como a lei se tornou frágil, enferma por causa da carne (Gl 3:24; Rm 8:3), que método de ensino utilizar para operar essa mudança de concepção?
Um método de ensino é lançar mão do absurdo, de uma situação inusitada, ou, do impossível, estabelecendo como base para evidenciar a contradição do pensamento dos recalcitrantes.
Comparando o que Jesus disse aos seus ouvintes: “Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo…” (Mt 5:22), com o que foi prescrito aos antigos: “Não matarás e, quem matar, estará sujeito a julgamento” (Mt 5:21), percebe-se, pela penalidade, que Cristo equiparou o ato de matar alguém, ao sentimento de ira contra um irmão.
A proporcionalidade da pena, em relação às ações, matar e encolerizar, deixa evidente que a proposta de Cristo não era normatizar comportamentos e nem estabelecer princípios éticos e morais. A discrepância entre as penalidades e as ações, tem por objetivo evidenciar uma verdade, como a que foi exposta por Isaías:
“Quem mata um boi é como o que tira a vida a um homem; quem sacrifica um cordeiro é como o que degola um cão; quem oferece uma oblação é como o que oferece sangue de porco; quem queima incenso em memorial, é como o que bendiz a um ídolo; também, estes, escolhem os seus próprios caminhos e a sua alma se deleita nas suas abominações” (Is 66:3).
O que Isaías estava evidenciando? Um novo princípio moral? Uma nova lei? Não! Ele estava destacando o absurdo de alguém que se propõe a oferecer um sacrifício, mas rejeita a palavra de Deus.
Ao comparar quem mata um boi a quem tira a vida de um homem, o profeta Isaías estava evidenciando a gravidade das ações de quem não obedece a Deus, para seguir os seus próprios desígnios: “Estendi as minhas mãos o dia todo a um povo rebelde, que anda por caminho que não é bom, após os seus pensamentos” (Is 65:2); “Contudo o meu povo se tem esquecido de mim, queimando incenso à vaidade, que o fez tropeçar nos seus caminhos e nas veredas antigas, para que andasse por veredas afastadas, não aplainadas” (Jr 18:15).
Um exemplo de absurdo, vemos em Saul, que não obedeceu à ordem de Deus, sob o argumento de que iria sacrificar ao Senhor (1 Sm 15:15). Ao escolher seguir o seu próprio conselho, Saul estava se portando como quem mata um homem ou como quem ofereceu um porco sobre o altar.
Os gentios e os publicanos – considerados pecadores, pela multidão – não matavam, para não serem réus de juízo, e os ouvintes do Sermão da Montanha, por sua vez, não matavam, para não serem, igualmente, réus de juízo e, com isso, esperavam ser recompensados por Deus.
Dessa falta de coerência no pensamento dos judeus, decorre a argumentação de Jesus, no final do capítulo: que recompensa tereis, se os pecadores, também, não matam, para não serem réus de juízo? Que fazeis, demais?
Como os ouvintes de Jesus não estavam utilizando a lei de forma legítima, a proposta de Jesus visava ‘abrir os ouvidos’ dos seus ouvintes, para que pudessem entender qual o objetivo da lei de Deus: “Porque este é um povo rebelde, filhos mentirosos, filhos que não querem ouvir a lei do SENHOR” (Is 30:9).
Quando Jesus anunciou: “Eu, porém, vos digo que qualquer que…”, propõe ações à multidão que superasse o que os gentios e publicanos faziam e muitas dessas ações propostas soam como absurdo. Quem, em sã consciência, arrancaria os olhos para não ser réu do fogo do inferno?
Se os filhos de Israel pensavam que eram melhores que os gentios e publicanos, a pretexto da lei, no mínimo, teriam que temer, serem conduzidos ao tribunal, quando ficassem zangados com o irmão, diferentemente, dos gentios e publicanos, que temiam ser conduzidos ao tribunal, em caso de homicídio.
Jesus introduz essa proposta, porque havia acabado de exigir dos seus ouvintes uma justiça que suplantasse à dos seus líderes religiosos e, ao lembrar o que fora dito aos antigos, através da lei, propõe um comportamento que suplantasse o exigido pela letra da lei, como sugestão, para alcançarem justiça superior à dos escribas e fariseus.
Seria contraproducente intentar alcançar uma justiça que excedesse à dos escribas e fariseus, fazendo somente o que fora dito aos antigos, ou fazendo o que os gentios também faziam, principalmente, porque os gentios faziam as mesmas coisas que os judeus, mesmo não tendo lei.
A proposta de Jesus visava a uma mudança de concepção, demonstrando à multidão a impossibilidade de se justificar, através das exigências da lei: “Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei; porquanto, pelas obras da lei, nenhuma carne será justificada” (Gl 2:16).
Jesus agravou as exigências da lei, para que os seus ouvintes entendessem que nada faziam que fosse superior ao que era feito pelos pecadores, se tão somente fossem ouvintes do que foi dito aos antigos (Rm 2:13).
Seguem as propostas de Jesus:
- qualquer que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo;
- qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio;
- qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno.
Algumas Bíblias contém uma interpolação: ‘sem motivo’, na proposta de Jesus: ‘qualquer que [sem motivo], se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo’, que não há nos melhores manuscritos, tentando suavizar a exigência de Jesus, pois leem o texto como se fosse uma prescrição de comportamento, mas, a abordagem de Jesus é mais profunda ainda.
Primeiro, Jesus evidencia o que ouviram acerca do que foi dito aos antigos: “Não matarás. Mas, qualquer que matar, será réu de juízo”. Em segundo lugar, Ele enfatiza que: “Qualquer que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo”.
Por que Jesus insere a figura do ‘irmão’ na sua abordagem? Por que Jesus chama a atenção dos seus ouvintes para o elemento ‘carne’ e ‘sangue’, que estabelecem os laços fraternos?
Ao trazer à memoria o que foi dito aos antigos, Jesus estava apontando para os escritos de Moisés, onde também está registrado que Deus haveria de levantar um profeta do meio dos filhos de Israel, assim como Moisés, a quem deveriam ouvir:
“Eis lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar” (Dt 18:18);
Historicamente, os filhos de Jacó não aceitavam bem o fato de um dos seus irmãos ser profeta ou sonhador de sonhos, como ocorreu com José do Egito, um tipo de Cristo: “Vendo, pois, seus irmãos que seu pai o amava mais do que a todos eles, odiaram-no, e não podiam falar com ele, pacificamente. Teve José um sonho, que contou a seus irmãos; por isso o odiaram ainda mais” (Gn 37:4-5; Mt 2:15).
Qualquer dos ouvintes de Jesus que quisesse justiça superior à dos escribas e fariseus, deveria aceitar a doutrina de Cristo, portanto, não podia temer os escribas e fariseus, não ser afeito à glória de homens e nem se escandalizar com a doutrina de Jesus “Apesar de tudo, até muitos dos principais creram nele; mas não o confessavam por causa dos fariseus, para não serem expulsos da sinagoga. Porque amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (Jo 12:42-43).
Neste diapasão, os ouvintes de Jesus deveriam confessar a Cristo, o ‘irmão’ anunciado por Moisés – Aquele a quem deviam ouvir -, ou então, estariam se posicionando como opositores (adversários) de Cristo: “Eis que lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar” (Dt 18:18); “Porque o filho despreza ao pai, a filha se levanta contra sua mãe, a nora contra sua sogra, os inimigos do homem são os da sua própria casa” (Mq 7:6); “Portanto, qualquer que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus. Mas qualquer que me negar diante dos homens, eu o negarei, também, diante de meu Pai, que está nos céus. Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, a filha contra sua mãe e a nora contra sua sogra; E assim os inimigos do homem serão os seus familiares” (Mt 10:32-36).
A exigência de Jesus, com relação à ira, parece ser muito alta, porém, os seus irmãos não suportavam a abordagem que Cristo fazia das Escrituras e, várias vezes, foram tomados pela ira: “E todos, na sinagoga, ouvindo estas coisas, se encheram de ira” (Lc 4:28).
E a ordem: “Irai-vos e não pequeis” (Ef 4:26), não é contrária ao posicionamento de Jesus?
O Salmo 4, verso 4, diz: “Perturbai-vos e não pequeis; falai com o vosso coração sobre a vossa cama e calai-vos”. Algumas traduções vertem: Irai-vos e não pequeis. O termo hebraico רָגַז, transliterado ragaz, comumente vertido por ‘irai’ ou, ‘perturbai’, na verdade, deveria ser vertido por ‘tremei’, significando ‘obedeça’.
O sentido do termo é semelhante ao empregado nestes versos: “Ouvi a palavra do SENHOR, os que tremeis da sua palavra” (Is 66:5); “Servi ao SENHOR com temor, e alegrai-vos com tremor” (Sl 2:11); “Vinde, meninos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do SENHOR” (Sl 34:11).
Após recomendar que se deixe a mentira e que se fale a verdade, cada qual com o seu próximo, conforme expresso pelo profeta Zacarias (Ef 4:25; Zc 8:16), o apóstolo Paulo ordena aos cristãos que obedeçam (tremei), pois estas eram as coisas a serem observadas para não pecarem.
Como a pessoa poderia ser réu do Sinédrio, somente por nomear o seu irmão de ‘raca’? O termo ‘raca’ pode ser entendido como imprestável, desprezível, vil, baixo, etc., termo de origem semita, transliterado para o grego.
Ora, a profecia apontava para o Cristo como ‘desprezado e o mais indigno dos homens’ (Is 53:3), portanto, era de se ter cuidado, pois ao desprezar algum irmão, chamando-o de ‘raca’, pois, poderia estar desprezando o ‘Servo’ do Senhor – o profeta anunciado por Moisés, que seria levantado, dentre os filhos de Jacó, do qual estava escrito que os filhos de Israel não fariam caso algum: “QUEM deu crédito à nossa pregação? E a quem se manifestou o braço do SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha beleza, nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores e experimentado nos trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado e não fizemos dele caso algum” (Is 53:1-3).
Jesus enfatiza que, qualquer que chamasse o irmão de ‘louco’, seria réu do fogo do inferno. Como entender o fato de Jesus orientar os seus ouvintes, para não chamarem a um irmão de louco, para não estarem sujeitos ao fogo do inferno, mas, Jesus, por sua vez, chama os escribas e fariseus de ‘insensatos’, em outras palavras, de ‘loucos’?
Há uma diferença gritante entre os escribas e Cristo. Cristo julgava segundo a reta justiça, enquanto que os escribas e fariseus julgavam segundo a aparência e a carne: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça” (Jo 7:24).
Segundo o estabelecido nas Escrituras, Jesus a ninguém julgava (Jo 8:15; Is 11:3). Quando Jesus chamou os escribas e fariseus de ‘loucos’, simplesmente, apontou para as Escrituras, que nomeavam de loucos e néscios, àqueles que se alimentavam do povo de Israel, como se fosse pão (Sl 53:1-4). Como os escribas e fariseus eram obreiros da iniquidade, ‘néscios’, era a condição deles diante de Deus e, por isso, Jesus os denominava ‘loucos’, como o fez Moisés (Dt 32:6).
O povo de Israel era louco e ignorante, um julgamento que consta nas Escrituras, portanto, nomeá-los de ‘loucos’, em função das Escrituras, é julgar segundo a reta justiça, não segundo a aparência: “Deveras, o meu povo está louco, já não me conhece; são filhos néscios e não entendidos; são sábios para fazer mal, mas não sabem fazer o bem” (Jr 4:22).
Ora, se, alguém dentre os filhos de Jacó, fosse levantado como profeta e deveria ser ouvido, cada membro da nação deveria ter o seu irmão em honra, pois qualquer um deles poderia ser o Cristo. Se observassem as profecias, não rejeitariam àquele que era desprezado do povo e opróbrio dos homens: “Mas, eu sou verme e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do povo” (Sl 22:6; Is 53:3).
Mas, caso os ouvintes de Jesus tivessem essa disposição de nunca ficarem irados, de esbravejarem ou, de falarem mal do próprio irmão, quando, em particular, fossem ofertar e se lembrassem, junto ao altar, que o ‘irmão’ tinha algo em seu desfavor, que deixassem a oferta junto ao altar e fossem se reconciliar com o seu irmão.
“Mas ao ímpio, diz Deus: Que fazes tu, em recitar os meus estatutos, e em tomar a minha aliança na tua boca? Visto que odeias a correção e lanças as minhas palavras para detrás de ti. Quando vês o ladrão, consentes com ele e tens a tua parte com adúlteros. Soltas a tua boca para o mal e a tua língua compõe o engano. Assentas-te a falar contra teu irmão; falas mal contra o filho de tua mãe!” (Sl 50:16-20).
Perceba que não é o ofertante que tem algo contra o irmão, antes, o irmão que tem algo contra o ofertante e, mesmo assim, o ofertante deveria ter a capacidade magnânima de buscar a reconciliação, mesmo que não tivesse algo contra o irmão.
Jesus propõe que o ônus da reconciliação não fique a cargo de quem ofendeu, mas, que compete ao ‘ofendido’ se retratar, portanto, essa seria uma atitude mais nobre e diferente da atitude dos gentios e pecadores ou, o significado do termo ‘ofendido’, deve ser revisto.
O termo grego traduzido por ‘reconciliar’ é διαλλάσσομαι, transliterado diallassómai, possui o sentido de ‘mudar a mente de qualquer pessoa’, ‘mudar completamente (mentalmente) para conciliar’, o que remete ao arrependimento, a mesma ideia do termo grego μετανοέω, transliterado metanoeó.
Devemos questionar: Por que Jesus não impôs a obrigação de o irmão, que tinha algo desfavorável, vir se retratar? Ora, Jesus queria dar a entender aos seus ouvintes que Ele era o irmão levantado dentre os filhos de Israel como profeta, segundo o que foi dito a Moisés, para mudar a mente dos seus irmãos.
Não era o Servo do Senhor, o opróbrio dos homens e desprezado do povo, que deveria se ‘reconciliar’ com os filhos de Israel, mas, sim, os filhos de Israel que deveriam se reconciliar com Ele. É certo que o profeta anunciado por Moisés, o irmão levantado dentre os filhos de Israel, estaria corretíssimo na sua colocação, portanto, cabe aos irmãos ofertantes, se ‘retratarem’, ou seja, mudarem de concepção, completamente, aceitando o proposto por Ele: “Eis, lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar” (Dt 18:18).
O termo grego μνάομαι[3], transliterado mnaomai, comumente traduzido por ‘recordar’, ‘lembrar’, também possui a forma prolongada μιμνησκω, transliterada mimnesko. O termo μναομαι não tem o sentido de ‘recordar de algo que se esqueceu’, antes, de ‘recordar de’, de ‘fazer-se lembrar’, de ‘ter na lembrança’, de ‘fixo na mente’.
Quando o ofertante chegasse junto ao altar e, aquilo que ouviu do Cristo estivesse fixo na mente, ter na lembrança, não conseguisse esquecer, que deixasse a oferta no altar e retornasse e se ‘conciliasse’ com o irmão (Mt 5:23).
O que o irmão tem que é expresso pelo termo διαλλάσσομαι não é resultado de uma briga, desavença, inimizade, antes é algo que pode mudar a mente, a compreensão. Na verdade, quando o ofertante estivesse diante do altar e viesse à mente a compreensão do ensino dado pelo irmão, que deixasse a oferta no altar e se reconciliasse depressa com Ele.
Caso os ouvintes de Jesus não percebessem a nuance do discurso, com relação à possibilidade de estarem contrariando aquele irmão que seria levantado por Deus, em meio aos filhos de Israel, conforme predito por Moisés, o argumento a seguir deveria se considerado:
“Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes, unicamente, os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos, também, assim?” (Mt 5:46-47).
Jesus encerra a abordagem, acerca do que ouviram que foi dito aos antigos, de modo a levá-los a considerar o seguinte:
“Pois, se reconciliardes com quem buscou a reconciliação, que galardão tereis? Não fazem os publicanos, também, o mesmo? E, se esperardes quem vos ofendeu, que venha a se reconciliar, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim?”
Devemos ter em mente que, em relação à carne e ao sangue, os judeus eram irmãos de Jesus, mas, com relação à doutrina, eram ‘adversários’. Com relação à carne e ao sangue, Jesus veio para o que era Seu, mas, com relação à doutrina, os seus irmãos se escandalizaram (não O recebera): “Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” (Jo 1:11); “E assim os inimigos do homem serão os seus familiares” (Mt 10:36; Mq 7:6).
Para compreender a afirmação acima, vale destacar o evento em que Jesus entrou no templo e expulsou todos os que vendiam e compravam e derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. Em seguida, Jesus operou sinais e maravilhas, curando cegos e coxos e as crianças que ali estavam, passaram a dizer: – ‘Hosana ao Filho de Davi’ (Mt 21:12-16).
Os escribas e fariseus, ao ouvirem a confissão das crianças, dentro do templo, indignaram-se. Foi quando questionaram Jesus, dizendo: – “Ouves o que estes dizem?”. Eles não aceitavam que o Jesus de Nazaré fosse o Filho de Davi, portanto, Filho de Deus, sacerdote e rei de Israel.
Os escribas e fariseus queriam que Jesus repreendesse as criancinhas para que parassem de dizer ‘Hosana ao filho de Davi’. Eles não suportavam ouvir as criancinhas clamando por misericórdia ao Filho de Davi.
Do mesmo modo que queriam que os cegos, à beira do caminho, se calassem por gritarem por misericórdia ao Filho de Davi, os escribas e fariseus estavam indignados por ouvirem as crianças dizerem: “Salva-nos agora, ó Tu que habitas nas maiores alturas”, “Salva-nos, te imploramos”, ou seja, as crianças estavam apontando para Cristo, como sendo o Senhor do Salmo 118, verso 25.
“Salva-nos, agora, te pedimos, ó SENHOR; ó SENHOR, te pedimos, prospera-nos. Bendito aquele que vem em nome do SENHOR; nós vos bendizemos desde a casa do SENHOR” (Sl 118:25-26).
Foi quando Jesus respondeu, utilizando o Salmo 8, verso 2:
“E Jesus lhes disse: Sim; nunca lestes: Pela boca dos meninos e das criancinhas de peito, tiraste o perfeito louvor?” (Mt 21:16).
Nesta previsão, o salmista registra que as crianças estavam clamando ao Filho de Davi misericórdia, para calarem os adversários de Cristo, ou seja, os inimigos que, nesse evento, tratavam-se dos escribas e dos fariseus.
“Tu ordenaste força, da boca das crianças e dos que mamam, por causa dos teus inimigos, para fazer calar ao inimigo e ao vingador” (Sl 8:2).
O termo grego ἀντίδικος[4] transliterado antidikos, traduzido por adversário, possui o significado de oponente, inimigo, adversário. Já no Antigo Testamento, o termo צָרַר transliterado tsarar, pode se referir a um inimigo pessoal, como expresso na lei: “Se encontrares o boi do teu inimigo ou o seu jumento, desgarrado, sem falta lhe reconduzirás” (Êx 23:4), mas, também, foi utilizado pelos profetas para descrever os opositores de Cristo.
Os adversários, os inimigos do Filho do homem, eram os seus próprios familiares, pois não O compreendiam e com Ele se escandalizavam: “Sabendo, pois, Jesus, em si mesmo, que os seus discípulos murmuravam disto, disse-lhes: Isto escandaliza-vos?” (Jo 6:61).
Alcançar justiça superior à dos escribas e dos fariseus, por meio das obras da lei, é impossível, ao que Jesus propõe, por parábola, a qualquer que se opusesse a Ele, rejeitando a sua doutrina, o que se segue:
“Sê disposto para com o teu adversário…”, ou “Concilia-te, depressa, com o teu adversário…” (Mt 5:25).
Enquanto a proposta comportamental do cristão é de ter paz com todos os homens, se possível, Jesus orienta a multidão, através do Sermão da Montanha, que fossem dispostos para com o adversário, ou seja, que, urgentemente, se conciliassem com aquele que se opunham a eles, enquanto estavam no caminho: “Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz com todos os homens” (Rm 12:18).
“Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao oficial e te encerrem na prisão. Em verdade, te digo que, de maneira nenhuma, sairás dali, enquanto não pagares o último ceitil” (Mt 5:25-26).
Daí vale questionar: É só se reconciliar com os inimigos, que se adquire direito de entrar no reino dos céus? É certo que não, pois o homem é salvo, somente pela fé em Cristo!
Vale destacar que o ‘adversário’ com quem Jesus ordena aos judeus se reconciliarem, possui maior autoridade que eles, pois é capaz de entregá-los ao juiz. Quem é o ‘adversário’, que os ouvintes de Jesus deveriam conciliar? Por que o adversário que deveriam conciliar está no singular e não no plural?
Uma multidão de ouvintes e só um adversário, com quem deviam estar dispostos, pois ninguém consegue pagar uma dívida com Deus! (Sl 49:7-9; Mt 5:26).
“Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao oficial e te encerrem na prisão” (Mt 5:25).
Continua:
O Sermão do Monte e o adultério
[1] “5.21 — Ouvistes que foi dito. Refere-se aos ensinamentos de vários rabinos, não aos de Moisés. Jesus estava questionando a interpretação dos mestres judeus, não o Antigo Testamento”. O novo comentário bíblico NT, com recursos adicionais — A Palavra de Deus ao alcance de todos. Editores: Earl Radmacher, Ronald B. Allen e H.Wayne House, Rio de Janeiro, 2010, pág. 25.
[2] Reductio ad absurdum (latim para “redução ao absurdo”[1] , provavelmente, originário do grego ἡ εις άτοπον απαγωγη, transl. “e eis átopon apagoge”, que significaria algo próximo a “redução ao impossível”, expressão, frequentemente, usada por Aristóteles, também, conhecida como um argumento apagógico, “Reductio ad impossibile ou, ainda, prova por contradição, é um tipo de argumento lógico, no qual, alguém, assume uma ou mais hipóteses e, a partir destas, deriva uma consequência absurda ou ridícula e, então, conclui que a suposição original deve estar errada. O argumento se vale do princípio da não-contradição (uma proposição não pode ser, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa) e do princípio do terceiro excluído (uma proposição é verdadeira ou é falsa, não existindo uma terceira possibilidade)”, Wikipédia.
[3] “3415 μναομαι (mnaomai), voz média, derivado de 3306 ou, talvez, da raiz de 3145 (da ideia de fixação na mente ou, de posse mental); v 1) fazer lembrar, 1a) relembrar ou, voltar à mente, fazer-se lembrar de, lembrar, 1b) ser trazido à memória, ser lembrado, ter em mente, 1c) lembrar algo, 1d) estar atento a”, Dicionário Bíblico Strong; “3403 μιμνησκω (mimnesko), forma prolongada de 3415 (do qual algo dos tempos são emprestados); v 1) fazer lembrar, 1a) recordar, voltar à mente, lembrar-se de, lembrar, 1b) ser trazido à mente, ser lembrado, ter na lembrança, 1c) lembrar algo, 1d) estar atento a”, Dicionário Bíblico Strong.
[4] “476 αντιδικος (antidikos), de 473 e 1349; TDNT – 1:373,62; n m 1) oponente, 1a) um oponente em um caso de lei, 1b) adversário, inimigo”. Dicionário Bíblico Strong.