Tiago

Tiago: epístola de palha?

Se a pergunta de Tiago fosse feita pelo evangelista João, seria assim: “Meus filhinhos, que proveito há se alguém disser que ama, e não tiver obras? Pode esse amor salvá-lo? ” “Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade.” (1 João 3.18).


Tiago estimula o assistencialismo?

Introdução

Qualquer leitura de um texto é realizada sob uma perspectiva subjetiva, influenciada pelas lentes de uma bagagem sociocultural acumulada ao longo da vida. Nesse processo, o leitor interage com o conteúdo objetivo proposto pelo autor, abstraindo o que foi exposto. O resultado da leitura, então, se mistura à sua bagagem preexistente, enriquecendo-a e tornando-a ainda mais densa.

Quando se trata da leitura de uma carta, esse processo adquire uma nova dimensão. Isso porque: a) as partes podem já se conhecer; b) o tema abordado pode ser de conhecimento mútuo; ou c) ambos os fatores podem estar presentes, isto é, as partes se conhecem e compartilham familiaridade com o assunto.

No caso da carta de Tiago, o processo de leitura e compreensão não foge a essa lógica. O leitor, com sua bagagem sociocultural, se aproxima de um texto objetivo, cujo tema principal – o evangelho de Cristo – é de conhecimento tanto do autor quanto do destinatário.

Contudo, para alcançar a excelência no conhecimento de Jesus Cristo, como exemplificado pelo apóstolo Paulo, é necessário que o indivíduo abandone toda sua bagagem sociocultural. Isso inclui pressupostos morais, práticas religiosas, vínculos familiares, formação acadêmica e filosofias de vida. Paulo expressa essa renúncia de maneira contundente:

“E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como escória, para que possa ganhar a Cristo,” (Filipenses 3:8).

O evangelho de Cristo, conforme anunciado pelos apóstolos, não se fundamenta em sabedoria humana ou filosofias terrenas. Antes, é transmitido com base no ensino do Espírito Santo, que compara coisas espirituais com espirituais. Esse método bíblico de ensino, essencialmente comparativo, frequentemente utiliza figuras de linguagem para ilustrar conceitos espirituais profundos (1 Coríntios 2:13-14).

Outro fator que influencia a compreensão de textos bíblicos é a linguagem empregada. Certos vocábulos, mesmo dentro de uma língua comum como o grego do Novo Testamento, ganharam novos significados no contexto de um grupo específico de pessoas unidas pelo evangelho de Cristo.

Entre os cristãos da igreja primitiva, havia subgrupos com vocabulário próprio, como os cristãos convertidos dentre os judeus. Essa diferença linguística se reflete nas epístolas. Por exemplo, enquanto Paulo escreveu principalmente para gentios, Tiago direcionou sua carta aos cristãos judeus. Isso explica nuances linguísticas e temáticas que marcam o público-alvo de cada autor, evidenciando a riqueza e a profundidade do testemunho apostólico.

 

Epístola de palha

No prefácio à tradução do Novo Testamento de 1522, Martinho Lutero deixou registrado um pensamento profundamente significativo e crítico a epístola de Tiago:

“Se eu tivesse que ficar sem uma ou outra — ou as obras ou a pregação de Cristo — eu antes ficaria sem suas obras do que sem sua pregação. Pois as obras não me ajudam, mas suas palavras dão vida, como ele mesmo diz. Ora, João escreve muito pouco sobre as obras de Cristo, mas muito sobre sua pregação.

Os outros evangelistas escrevem muito de suas obras e pouco de sua pregação. Portanto, o evangelho de João é aquele terno, verdadeiro, de longe o principal evangelho a ser preferido aos outros três e colocado acima deles. Assim, também, as epístolas de São Paulo e São Pedro, ultrapassam de longe os outros três Evangelhos, Mateus, Marcos e Lucas.

O evangelho de João e sua primeira epístola, as epístolas de Paulo, especialmente Romanos, Gálatas e Efésios, e a primeira epístola de Pedro são livros que te mostram Cristo e te ensinam tudo o que é necessário e salvífico conhecer, ainda que jamais vejas ou escutes outro livro ou doutrina. Por isso a epístola de Tiago, comparada com eles, é realmente uma epístola de palha, já que não há nenhuma característica evangélica nela.” Luther, Works of Martin Luther – The Philadelphia Edition, trans. C. M. Jacobs, vol 6. Preface to the New Testament (Grand Rapids: Baker Book House, 1982), páginas 439-444. Conforme citado em Bercot, David W., Will The Real Heretics Please Stand Up, (Scroll Publishing, 1989), página 112.

No mesmo ano, na segunda edição de sua tradução do Novo Testamento, Martinho Lutero fez alterações significativas, incluindo a suavização de sua crítica à Epístola de Tiago. Ele omitiu a famosa expressão “epístola de palha”, que havia usado anteriormente para descrever Tiago, indicando que a considerava menos relevante em comparação com outros livros do Novo Testamento, como as cartas de Paulo ou os Evangelhos.

“Mesmo que tenha sido rejeitada pelos antigos, eu louvo esta epístola e a considero boa, pelo fato dela não propor doutrina humana, e por promover duramente a lei de Deus. Para dar minha opinião, porém, sem prejuízo de ninguém, considero-a não escrita por apóstolo. Primeiro porque, contrariamente a Paulo e toda a Escritura, ela dá justiça às obras. . . Segundo, porque ao querer ensinar a cristãos, não lembra em sua longa doutrina o sofrimento, a ressurreição, o Espírito de Cristo. . . Tiago não faz outra coisa do que instar para a lei e suas obras, misturando tão confusamente uma coisa na outra que imagino que tenha sido algum homem bom e piedoso que captou alguns ditos de discípulos dos apóstolos e assim os lançou sobre o papel. . . Designa a lei como lei da liberdade (1.25), sendo que Paulo a chama de lei da servidão, da ira, da morte e do pecado (Gl 3.23s e Rm 7.11,23). . . Em suma, ele quis combater os que confiavam na fé sem obras, e foi fraco demais. Quer alcançá-lo pela promoção da lei, quando os apóstolos o conseguem atraindo para o amor. Por isso eu não posso colocá-lo entre os livros principais, mas com isso não quero impedir ninguém a fazê-lo, e a destacá-lo como lhe apetece, pois no mais contém muitas boas afirmações.” Idem.

Embora Lutero mantivesse sua visão crítica sobre o conteúdo da epístola – argumentando que ela parecia dar mais ênfase às obras do que à fé, em contraste com o ensino paulino da justificação pela fé – essa mudança demonstra uma tentativa de apresentar suas ideias de forma mais equilibrada e talvez menos polêmica.

Analisaremos os comentários de Martinho Lutero e, à luz das Escrituras, avaliaremos se sua argumentação encontra respaldo bíblico.

 

Objetivo da lei

No comentário à segunda edição de sua tradução, Martinho Lutero, apesar de suavizar sua crítica à Epístola de Tiago, a elogia e a considera boa por dois motivos:

  1. Não propõe doutrina humana;
  2. Promove de forma rigorosa a lei de Deus.

No entanto, as proposições apresentadas por Lutero são contraditórias, uma vez que, com o advento de Cristo, qualquer promoção da lei mosaica, ainda que rígida, não passa de doutrina humana. Como isso pode ser explicado?

Primeiro, porque, como afirma o apóstolo Paulo: “Tudo o que a lei diz, o diz aos que estão debaixo da lei” (Romanos 3:19). Ou seja, a lei foi dada aos judeus, com o propósito de calar toda boca e tornar o mundo inteiro condenável diante de Deus (Romanos 3:19; 9:4). A função central da lei era revelar que a nação de Israel estava sob o domínio do pecado e apontar Cristo como Salvador.

Segundo, mesmo para os judeus, o uso legítimo da lei deveria conduzi-los à consciência de sua condição como transgressores, já que a lei foi dada não aos justos, mas aos injustos (1 Timóteo 1:9). Assim, a lei servia para demonstrar que os judeus eram tão pecadores quanto os gentios (Romanos 3:9) e tinha como objetivo levá-los a Cristo, o Descendente prometido a Abraão, através de quem todas as nações seriam abençoadas (Romanos 10:4; Gálatas 3:23-24).

Portanto, qualquer promoção da lei que ultrapasse esse propósito central – demonstrar o pecado de Israel e apontar para Cristo – não passa de doutrina humana. Como Paulo explica:

“Logo, para que é a lei? Foi ordenada por causa das transgressões, até que viesse a posteridade a quem a promessa tinha sido feita; e foi posta pelos anjos na mão de um medianeiro. ” (Gálatas 3:19).

As justificativas de Lutero para validar sua avaliação da Epístola de Tiago, no entanto, promovem maior confusão. Ele afirmou que:

  1. Tiago, contrariando o apóstolo Paulo e a Escritura, atribui justiça às obras;
  2. Ao ensinar os cristãos, Tiago não faz referência clara às questões centrais do evangelho, como o sofrimento, a morte e a ressurreição de Cristo.

Ora, qualquer ensino contrário à Escritura e à doutrina dos apóstolos não deve ser louvado, nem considerado bom, e tampouco deve ser aceito ou saudado pelos cristãos:

“Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem o saudeis.” (2 João 1:10).

Se a Epístola de Tiago ensina que a justiça de Deus é alcançada pelas obras da lei, tal ensino é anátema. E se alguém se apresenta como mestre do evangelho sem anunciar o sofrimento, a morte e a ressurreição de Cristo como a causa da justiça de Deus, não prega o evangelho de fato.

Portanto, ao considerar essas questões, percebemos que, apesar de parecer atenuar sua crítica, Lutero manteve sua posição de que Tiago confunde o propósito da lei e mistura indevidamente elementos que deveriam ser claramente separados. Ele concluiu que Tiago apenas instigou a obediência à lei e às suas obras, mas de maneira tão confusa que mesclou conceitos que não deveriam ser misturados.

 

O evangelho na epístola de Tiago

Na segunda edição de sua tradução do Novo Testamento, Lutero criticou a Epístola de Tiago insinuando que o autor era alguém sem grande compreensão do que ouviu dos apóstolos, resultando em uma redação confusa. Além disso, acusou Tiago de chamar a lei de “lei da liberdade”, apontando como exemplo o versículo 25 do primeiro capítulo:

“Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecido, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito.” (Tiago 1:25).

No entanto, ao tecer essa crítica, Lutero cometeu um erro de interpretação colossal. No ponto em que afirma que Tiago chama a lei de “lei da liberdade”, na verdade, Tiago utiliza um recurso linguístico chamado metonímia. Esse recurso consiste no uso de uma palavra fora de seu contexto semântico usual, atribuindo-lhe uma significação relacionada ao conteúdo ou referente em questão. Aqui, “lei perfeita da liberdade” refere-se ao evangelho de Cristo, não à lei mosaica.

O evangelho, descrito por Tiago como a “lei perfeita da liberdade” (εἰς νόμον τέλειον τὸν τῆς ἐλευθερίας), possui duas características fundamentais que essa figura de linguagem exalta:

  1. O evangelho promove a liberdade:

“Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.” (João 8:36; Lucas 4:19);

“Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão.” (Gálatas 5:1).

  1. O evangelho é o mandamento de Deus.

Ao entregar Seu Filho unigênito por amor à humanidade, Deus estabeleceu um mandamento: “Que creiamos no nome de Seu Filho Jesus Cristo” (1 João 3:23; João 12:50). Este mandamento garante que todo aquele que crê não pereça, mas tenha vida eterna (João 3:16).

Antes de usar o termo “lei perfeita da liberdade”, Tiago já havia feito diversas alusões ao evangelho de Cristo:

  • O evangelho é sujeição a Cristo: Tiago se apresenta como servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, reconhecendo Sua autoridade (Tiago 1:1).
  • O evangelho é promessa de vida aos que amam a Cristo: A promessa é feita aos que obedecem, ou seja, que amam a Deus (Tiago 1:12; Romanos 8:28; 1 João 2:25).
  • O evangelho é a palavra da verdade: Tiago afirma que a palavra de Deus, como semente incorruptível, gera um novo homem segundo a vontade divina (Tiago 1:18). Isso está em harmonia com textos como Efésios 1:13, João 1:12-13, 1 Pedro 1:22-25, João 17:17, 2 Coríntios 6:7, 2 Timóteo 2:15, Colossenses 1:5, 1 Coríntios 16:15 e Êxodo 13:2.
  • O evangelho é a palavra que salva: Tiago diz que a palavra deve ser recebida com mansidão, pois é poderosa para salvar (Tiago 1:21; Romanos 1:16; Efésios 1:13; 1 Coríntios 1:18, Colossenses 2:12);
  • O evangelho exige obediência: Tiago exorta os cristãos a serem cumpridores da palavra e não apenas ouvintes (Tiago 1:22; Mateus 7:24).
  • O evangelho é anunciado e exige perseverança: Tiago compara o ouvinte negligente àquele que se olha no espelho e logo esquece sua aparência (Tiago 1:22-23), e recomenda perseverança no evangelho, descrito como a “lei perfeita da liberdade” (Tiago 1:25; Mateus 24:13).

A lei perfeita da liberdade é, de fato, o evangelho de Cristo, a palavra da verdade que transforma vidas e não pode ser apenas ouvida e esquecida. Tiago enfatiza a necessidade de uma resposta ativa à palavra, como descrito em Tiago 1:25:

“Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecido, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito.”

Ao comparar esse versículo com Tiago 1:22-24, percebe-se que o evangelho não é algo passivamente recebido, mas requer ação e perseverança:

“E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não cumpridor, é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era.”

Portanto, ao descrever o evangelho como a “lei perfeita da liberdade”, Tiago realça sua essência libertadora e salvadora, em contraste com o jugo da lei mosaica, que condenava os transgressores.

Se Lutero confundiu a ‘lei da liberdade’ com a lei mosaica, o que dizer de sua interpretação da relação entre ‘fé’ e ‘obras’?

Tiago não promove a lei mosaica nem sugere que as obras sejam a causa da salvação.

Tiago foi fraco em seu ensino? Promoveu a lei mosaica? Sua epístola carece de características evangélicas? Absolutamente não. A epístola de Tiago está repleta de elementos que apontam para o evangelho, a liberdade em Cristo e a necessidade de perseverança na fé verdadeira. A crítica de Lutero, nesse ponto, reflete um mal-entendido que, ao invés de enfraquecer Tiago, ressalta a importância de interpretar as Escrituras com cuidado e à luz do contexto bíblico mais amplo.

 

O evangelho de João é melhor que os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas?

Antes de desclassificar a Epístola de Tiago, Lutero declarou que, dentre os Evangelhos, o de João deveria ser preferido aos demais, considerando-o superior aos sinóticos:

“Portanto, o evangelho de João é aquele terno, verdadeiro, de longe o principal evangelho a ser preferido aos outros três e colocado acima deles. “ Idem.

Embora os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas possuam semelhanças notáveis – motivo pelo qual são chamados de Evangelhos Sinóticos –, cada um deles é único do ponto de vista literário e teológico. Essa singularidade torna inviável qualquer classificação que valorize um evangelho mais do que outro.

De fato, o Evangelho de João apresenta uma narrativa diferente em estilo e propósito. No entanto, essa diferença não justifica colocá-lo como superior ou inferior aos sinóticos. Cada evangelista escreveu com um propósito específico e para um público particular, como se observa a seguir:

O Evangelho de Mateus

Mateus direciona sua narrativa principalmente aos judeus, seus irmãos segundo a carne, com o propósito de apresentar Jesus como o Messias prometido nas Escrituras. Ele começa seu evangelho com a genealogia de Jesus, conectando-O diretamente a Abraão, o pai da nação judaica, e ao rei Davi, símbolo da realeza messiânica:

“Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão.” (Mateus 1:1).

Essa introdução destaca que Jesus é o cumprimento das promessas feitas por Deus a Abraão e Davi, reforçando Sua legitimidade como o Messias esperado. Ao longo de sua narrativa, Mateus cita repetidamente o Antigo Testamento para evidenciar o cumprimento das profecias, utilizando expressões como “para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta…” (Mateus 1:22; 2:15; 4:14). Essa abordagem permite que o leitor, especialmente o judeu, reconheça em Jesus a realização das promessas de Deus.

Além disso, Mateus estrutura sua narrativa de maneira a enfatizar os ensinamentos de Jesus, organizando-os em cinco grandes discursos, possivelmente para ecoar os cinco livros de Moisés. Essa estrutura reforça a ideia de que Jesus é o novo legislador e intérprete da vontade divina, trazendo à plenitude a Lei e os Profetas.

Dessa forma, Mateus conduz o leitor a compreender que Jesus não apenas cumpre as expectativas messiânicas, mas também inaugura o Reino de Deus, apresentando-o como o Rei e Salvador, não apenas de Israel, mas de todas as nações.

O Evangelho de Marcos

O Evangelho de Marcos, por sua vez, apresenta uma narrativa direta e objetiva, voltada para demonstrar a autoridade de Jesus como o Filho de Deus. Desde o primeiro versículo, Marcos declara:

“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.” (Marcos 1:1).

A estrutura do Evangelho de Marcos é marcada por uma ênfase nas ações de Jesus, especialmente nos sinais e milagres que Ele realizou ao longo de Seu ministério. Essa abordagem impactante reflete uma preocupação em evidenciar o poder divino de Cristo, algo que ressoava profundamente com seu público-alvo, possivelmente cristãos judeus em Jerusalém, dado os judeus buscavam sinais, que precisavam difundir a mensagem do evangelho diante de perseguições e adversidades.

Os milagres narrados por Marcos, como a cura de enfermos, a expulsão de demônios e a ressurreição dos mortos, não são apresentados como atos isolados, mas como testemunhos que confirmam a identidade messiânica e divina de Jesus. Além disso, Marcos destaca o papel do sofrimento de Cristo, deixando claro que o Filho de Deus veio para servir e dar a Sua vida em resgate de muitos:

“Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos.” (Marcos 10:45).

Com seu estilo conciso e dinâmico, o Evangelho de Marcos reflete uma narrativa que busca encorajar seus leitores a reconhecerem a autoridade de Jesus como o Messias prometido e a seguirem-no em obediência, mesmo diante de desafios e tribulações.

O Evangelho de Lucas

Lucas escreve com o objetivo explícito de fornecer a Teófilo – provavelmente um cristão de posição elevada – uma narrativa ordenada e confiável dos eventos relacionados à vida e obra de Jesus Cristo. Ele explica sua intenção nos versículos iniciais:

“Também a mim me pareceu bem, depois de haver investigado tudo cuidadosamente desde o começo, escrevê-lo de modo ordenado para ti, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas certeza plena das verdades em que foste instruído.” (Lucas 1:3-4).

A abordagem de Lucas é marcadamente investigativa e histórica. Ele situa os eventos do evangelho no tempo e no espaço, mencionando governantes, líderes e circunstâncias históricas que permitem ao leitor contextualizar os acontecimentos. Por exemplo, ele cita César Augusto e o recenseamento durante o governo de Quirino (Lucas 2:1-2) e menciona figuras como Herodes, Pilatos e Caifás ao longo de sua narrativa.

Como médico, Lucas demonstra um cuidado meticuloso e um olhar atento aos detalhes, seja ao descrever eventos, seja ao apresentar as palavras de Jesus. Sua atenção minuciosa eleva o Evangelho de Lucas ao patamar de um tratado bem organizado, refletindo um processo investigativo rigoroso. Essa característica também é evidente no início do livro de Atos, onde ele reafirma o método cuidadoso de sua pesquisa:

“Escrevi o primeiro livro, ó Teófilo, relatando todas as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar.” (Atos 1:1).

Lucas destaca não apenas os fatos, mas também o significado espiritual dos eventos, vez que o ministério de Jesus era apregoar o evangelho aos necessitados de Deus (pobres), evidenciando a universalidade do evangelho. Assim, sua narrativa é única em sua profundidade histórica, seu rigor acadêmico e sua ênfase na graça de Deus para toda a humanidade.

O Evangelho de João

O Evangelho de João, em sua narrativa, evidencia ser o mais tardio dos quatro evangelhos a ser escrito. Seu público-alvo principal é a igreja, já composta por judeus e gentios, embora sua linguagem e simbologia tenham uma afinidade mais evidente com o contexto judaico.

O próprio evangelista João explicita o propósito de sua obra ao afirmar:

“Jesus, na verdade, operou ainda muitos outros sinais na presença de seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” (João 20:30-31).

Dado o período em que foi escrito – já com a igreja bem estabelecida –, o Evangelho de João apresenta uma abordagem distinta em comparação aos evangelhos sinóticos, como o de Mateus. Enquanto Mateus se preocupa em estruturar a narrativa de forma que o leitor, especialmente o judeu, seja conduzido gradualmente à conclusão de que Jesus é o Messias, João, desde o início, faz declarações claras e contundentes sobre a divindade de Cristo. Isso é evidente já nos primeiros versículos:

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” (João 1:1).

Assim, João não busca apenas narrar os eventos da vida de Jesus, mas apresenta uma reflexão teológica profunda, conectando os sinais operados por Cristo à sua identidade como o Filho de Deus e ao propósito de Sua missão: trazer vida eterna aos que creem. Essa abordagem direta e enfática reflete o contexto mais amadurecido da igreja, com uma compreensão mais consolidada do evangelho.

A Relação entre Sinais e Pregação no Evangelho de João

Os milagres descritos no Evangelho de João não são apenas manifestações de poder, mas também estão profundamente ligados à mensagem de Cristo. Por exemplo:

  • Multiplicação dos pães: Este milagre dá suporte à declaração de Jesus: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu” (João 6:51). Sem esse sinal, seria impossível traçar o paralelo entre a alimentação do povo no deserto com o maná e a provisão espiritual em Cristo.
  • Cura do cego de nascença: Este sinal confirma que Jesus é o Filho de Davi e a luz do mundo (João 9:5).
  • Ressurreição de Lázaro: Este milagre antecipa a ressurreição de Cristo e autentica Sua declaração: “Eu sou a ressurreição e a vida.” (João 11:25).

Os sinais registrados por João são descritos como testemunhos evidentes de que Jesus foi enviado pelo Pai:

“Mas eu tenho maior testemunho do que o de João; porque as obras que o Pai me deu para realizar, as mesmas obras que eu faço, testificam de mim, que o Pai me enviou.” (João 5:36);

“Respondeu-lhes Jesus: Já vo-lo tenho dito, e não o credes. As obras que eu faço, em nome de meu Pai, essas testificam de mim.” (João 10:25);

“Crede-me que estou no Pai, e o Pai em mim; crede-me, ao menos, por causa das mesmas obras.” (João 14:11).

Portanto, é evidente que no Evangelho de João os milagres e a pregação estão entrelaçados, cada um complementando o outro. A afirmação de Lutero de que João escreveu pouco sobre as obras de Jesus e se concentrou mais na pregação não se sustenta à luz do texto. João demonstra que os milagres de Jesus não eram apenas demonstrações de poder, mas sinais que apontavam para Sua identidade como o Filho de Deus e o Salvador do mundo.

Cada Evangelho tem sua singularidade e propósito específico, refletindo a inspiração divina em diferentes contextos e públicos. Mateus, Marcos, Lucas e João compõem uma harmonia perfeita, revelando diferentes aspectos da vida e obra de Jesus. Ao destacar os sinais de Cristo como testemunho de Sua divindade, João confirma que não há separação entre os milagres e a pregação: ambos caminham juntos, declarando a glória de Deus e a salvação em Cristo. Portanto, qualquer tentativa de hierarquizar os Evangelhos, como fez Lutero, ignora a riqueza e a unidade da mensagem das Escrituras.

Tiago e as figuras

A Epístola de Tiago utiliza diversas figuras de linguagem para transmitir suas mensagens, sendo que algumas, como o rico com anel de ouro e o pobre andrajoso (Tiago 2:2-4) ou o irmão ou irmã nus e famintos (Tiago 2:15-16), são emblemáticas e frequentemente associadas à necessidade de uma “fé prática”, voltada para ações concretas de cunho humanitária. Contudo, antes de analisarmos se essas figuras visam promover o assistencialismo nas igrejas, é útil observar outras imagens menos discutidas, mas igualmente significativas.

A Onda do Mar: Dúvida e Inconstância (Tiago 1:6-8)

A primeira figura apresentada por Tiago na epístola é a onda do mar, usada para descrever o homem que duvida. Ele afirma que aquele que falta sabedoria deve pedi-la a Deus, que dá liberalmente a todos. No entanto, há uma condição: o pedido deve ser feito com confiança, sem dúvidas algumas. Caso contrário, aquele que duvida é comparado a uma onda do mar, impelida e agitada pelo vento:

“Peça-a, porém, com fé, em nada duvidando; porque o que duvida é semelhante à onda do mar, que é impelida e agitada pelo vento.” (Tiago 1:6).

Essa figura revela a consequência prática da falta de confiança: a inconstância. Tiago conclui que uma pessoa assim não receberá o que pediu a Deus (Tiago 1:7) e descreve o tal como “dúplice de coração” e instável em todos os seus caminhos (Tiago 1:8).

A Figura do Cristão Imaturo (Efésios 4:14)

Essa imagem de Tiago encontra eco na descrição de Paulo em Efésios 4:14, onde ele compara o cristão imaturo a “meninos inconstantes”, facilmente enganados e levados por “todo vento de doutrina”:

“Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente.” (Efésios 4:14).

Ambas as figuras destacam a necessidade de sabedoria e maturidade espiritual para evitar a instabilidade e a vulnerabilidade diante de influências externas. Um cristão sem sabedoria é descrito como inconstante e sujeito a ser manipulado por doutrinas enganosas, assim como uma onda do mar é agitada e levada pelo vento.

A Figura da Flor da Erva

A próxima figura utilizada por Tiago constrói um paralelismo através da volatilidade da flor da erva (Tiago 1:10-11). Ao tratar da questão da humildade, Tiago parece inicialmente abordar a condição social e financeira dos cristãos, sugerindo que o irmão de baixo grau tem motivo de se gloriar em sua alta posição em Cristo.

No entanto, há uma nuance importante no texto: o humilde é explicitamente chamado de “irmão”, enquanto o rico, que aparenta ser alguém abastado financeiramente, não recebe essa designação. O rico é orientado a se gloriar em sua insignificância, pois, assim como a flor da erva, ele é fugaz e passageiro.

A figura apresentada por Tiago é marcante: o sol, ao sair, fustiga a flor com seu ardente calor, fazendo com que ela caia e a erva murche (Tiago 1:11). Em seguida, Tiago traça o comparativo: o rico murchará em seus caminhos, evidenciando a transitoriedade das riquezas que ele acumula (Lucas 12:21; Mateus 6:19-20).

O Irmão Humilde e o Rico: Significados Espirituais

O irmão humilde é aquele que reconheceu sua necessidade da misericórdia de Deus e encontrou essa graça em Cristo (Provérbio 22:4). Ele é alçado a uma posição elevada, que jamais murchará, pois está firmada na palavra eterna de Deus:

“Porque fostes regenerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva e que permanece para sempre.” (1 Pedro 1:23).

“Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre. Porque Toda a carne é como a erva, E toda a glória do homem como a flor da erva. Secou-se a erva, e caiu a sua flor; Mas a palavra do SENHOR permanece para sempre. E esta é a palavra que entre vós foi evangelizada.” (1 Pedro 1:23-25).

O irmão humilde mencionado por Tiago é aquele que se fez servo de Deus pela fé em Cristo. Este não será mais como a flor da erva que murcha, porque foi regenerado pela semente incorruptível, a palavra viva e permanente de Deus. Sua nova condição espiritual é eterna, firmada na graça e nas promessas de Deus:

“Porque fostes regenerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva e que permanece para sempre.” (1 Pedro 1:23).

A questão abordada por Tiago não se refere à pobreza material, mas à humildade espiritual – o “pobre de espírito”, para quem Deus promete demonstrar Seu favor:

“Porque assim diz o Senhor: […] Mas olharei para este: para o pobre e abatido de espírito, e que treme da minha palavra.” (Isaías 66:2).

Esse “humilde” é aquele que reconhece sua total dependência de Deus, e se faz servo de Deus crendo em Cristo. Ele é exaltado por Deus e colocado em uma posição elevada, como filho e herdeiro do Reino de Deus, conforme prometido por Cristo:

“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus.” (Mateus 5:3).

Por outro lado, o rico representa mais do que alguém com recursos financeiros; ele simboliza aqueles que confiam em sua posição religiosa, herança sanguínea ou obras segundo mandamentos de homens. Tiago provavelmente se refere aos judeus que se gloriavam em sua descendência de Abraão, na posse da lei, nos profetas, nas alianças e nas promessas feitas a Israel (Tiago 2:6). Contudo, essa confiança terrena é vazia e destinada ao fracasso:

“Há caminho que ao homem parece direito, mas o fim dele são os caminhos da morte.” (Provérbios 14:12).

“Atendei agora, ricos: chorai e pranteai por causa das desgraças que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas roupas estão comidas pela traça.” (Tiago 5:1-2).

Tiago não está promovendo uma dicotomia entre riqueza e pobreza material, mas destacando a necessidade de o homem se humilhar a si mesmo, abandonando o serviço a si próprio e se tornando servo de Deus (Lucas 16:13). Ele aponta para a verdadeira humildade espiritual, que consiste em reconhecer a própria necessidade de Deus e sujeitar-se à Sua vontade.

O humilde, aquele que reconheceu sua total dependência de Deus, é exortado a se gloriar em sua posição elevada em Cristo – uma posição que transcende as circunstâncias deste mundo, permitindo que ele deixe de se apegar aos rudimentos do mundo:

“Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo.” (Colossenses 2:8);

“Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos sujeitais ainda a ordenanças como se vivêsseis no mundo?” (Colossenses 2:20).

Essa exortação de Tiago reflete o tema central do evangelho:

“Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes.” (Tiago 4:6).

O Reflexo no Espelho

A terceira figura apresentada por Tiago é a do reflexo no espelho (Tiago 1:23-24). Após exortar os cristãos a serem praticantes da palavra e não apenas ouvintes, Tiago compara aquele que ouve, mas não obedece, a alguém que, depois de se observar no espelho, vai embora e logo se esquece de sua aparência.

Ao construir essa figura, Tiago estava enfatizando que, quem se esquece do rosto facilmente, sempre estará frente ao espelho verificando como é o seu rosto natural. Mas, do que adianta estar continuamente diante do espelho, se ao se retirar dali, logo se esquecerá de como é o rosto?

Com essa figura, Tiago enfatiza a futilidade de ouvir a palavra de Deus e não obedecer. Assim como é inútil estar constantemente diante do espelho sem lembrar do próprio reflexo, também é vazio ouvir a palavra de Deus constantemente e, seguir a avareza (riqueza, Mamom, ventre). Não adianta estar continuamente exposto à palavra se, ao se afastar, honra a Deus com a boca, mas o coração se afasta dele (Isaías 29:13; Marcos 7:6-7; Tito 1:14).

Essa figura remete à advertência de Deus através do profeta Ezequiel:

“Quanto a ti, ó filho do homem, os filhos do teu povo falam de ti junto às paredes e nas portas das casas; e fala um com o outro, cada um a seu irmão, dizendo: Vinde, peço-vos, e ouvi qual seja a palavra que procede do SENHOR. E eles vêm a ti, como o povo costumava vir, e se assentam diante de ti, como meu povo, e ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra; pois lisonjeiam com a sua boca, mas o seu coração segue a sua avareza. E eis que tu és para eles como uma canção de amores, de quem tem voz suave, e que bem tange; porque ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra.” (Ezequiel 33:30-32).

Assim como no tempo de Ezequiel, o povo ouvia as palavras de Deus, mas não as praticava. Suas ações eram movidas por interesses egoístas e não por um coração comprometido com o Senhor. Essa mesma atitude é abordada por Jesus em uma parábola que expõe a resistência espiritual dos homens de Sua geração:

“E disse o Senhor: A quem, pois, compararei os homens desta geração, e a quem são semelhantes? São semelhantes aos meninos que, assentados nas praças, clamam uns aos outros, e dizem: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamo-vos lamentações, e não chorastes. Porque veio João o Batista, que não comia pão nem bebia vinho, e dizeis: Tem demônio; Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo dos publicanos e pecadores. Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos.” (Lucas 7:31-35).

Essas passagens mostram que, independentemente do que os enviados de Deus fizessem, o povo continuava inerte e desobediente, recusando-se a agir conforme a palavra de Deus.

Aplicação Prática das Figuras

As três figuras analisadas até aqui – a onda do mar, a flor da erva e o reflexo no espelho – não exigem do ouvinte ações impossíveis, como acalmar o mar, interromper o vento, proteger-se do sol ou fixar na memória sua própria imagem refletida. Elas exigem algo mais profundo: uma resposta espiritual genuína, que se manifesta em práticas concretas.

Para cumprir o que Tiago ensina através dessas figuras, é necessário:

  1. Perseverança, mesmo nas provações;
  2. Gloriar-se com aquilo que tem valor diante de Deus, e não em questões desta vida, e;
  3. Obediência ao evangelho para ser bem-aventurado.

 

Qual o Tratamento em uma Sinagoga?

A próxima figura é introduzida de forma fraternal por Tiago:

“Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, em acepção de pessoas.” (Tiago 2:1).

Os “irmãos” mencionados por Tiago são seus irmãos em Cristo, pois os destinatários da carta eram filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus (1 João 3:1-2). Além disso, eram também seus irmãos de nacionalidade, uma vez que ele escreveu às doze tribos da dispersão, ou seja, cristãos judeus dispersos entre as nações gentílicas (Tiago 1:1).

A orientação de Tiago soa como um apelo: não tenham a fé em nosso Senhor Jesus Cristo com acepção de pessoas. O termo grego πίστιν (pistin), traduzido como “fé”, refere-se ao evangelho de Cristo. Esse termo deriva do conceito de algo fiel, leal, verdadeiro, ou verídico. No contexto deste versículo, πίστιν carrega o sentido de evangelho, palavra da verdade, ou doutrina, uma metonímia, uma figura de linguagem que substitui o autor pela obra. Fé, no contexto, refere-se ao Senhor Jesus, o autor e consumador da fé.

Se de fato os cristãos das doze tribos da dispersão haviam sido regenerados pela palavra da verdade (Tiago 1:18) e eram as primícias das criaturas de Deus; se de fato haviam recebido com mansidão a palavra implantada, poderosa para salvar suas almas (Tiago 1:21); se de fato eram cumpridores da palavra, e não apenas ouvintes (Tiago 1:22); se de fato possuíam a fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos (Judas 1:3), então eles não deveriam fazer acepção de pessoas!

Todo o conteúdo do capítulo 1 da Epístola de Tiago foi estruturado para preparar os leitores da carta para essa exortação:

“Como crentes em Cristo, não façam acepção de pessoas!”

O rico com anel de ouro e o pobre com trajes sujos

Tiago, em seguida, apresenta um exemplo ilustrativo para reforçar sua exortação:

“Porque, se no vosso ajuntamento entrar algum homem com anel de ouro no dedo, com trajes preciosos, e entrar também algum pobre com sórdido traje, e atentardes para o que traz o traje precioso, e lhe disserdes: Assenta-te tu aqui num lugar de honra, e disserdes ao pobre: Tu, fica aí em pé, ou assenta-te abaixo do meu estrado, porventura não fizestes distinção entre vós mesmos, e não vos fizestes juízes de maus pensamentos? ” (Tiago 2:2-4).

No Novo Testamento, o termo grego συναγωγή (sunagógé), traduzido como “sinagoga” ou “ajuntamento”, aparece 56 vezes. Contudo, em cartas do Novo Testamento, sua única ocorrência está neste trecho de Tiago, excetuando-se o Livro do Apocalipse, onde é usado para se referir à “sinagoga de Satanás”.

Normalmente, o termo συναγωγή (sunagógé) é utilizado para descrever o templo ou o local de reunião dos judeus, diferentemente do termo igreja (ekklesia), que é associado aos cristãos. Essa distinção levanta uma questão: ao descrever o exemplo do homem rico e do homem pobre, Tiago está se referindo a um evento que ocorre em um ajuntamento cristão (igreja) ou em uma sinagoga judaica?

O texto grego de Tiago 2:2 apresenta a expressão:

“εαν γαρ εισελθη εις την συναγωγην υμων…”
Traduzido literalmente: “Se, pois, entrar em vossa sinagoga…”

A proposta de Tiago é hipotética: “Se, pois…”, indicando uma suposição. Ele sugere a possibilidade de o evento ocorrer em uma sinagoga, lugar próprio de culto dos judeus, e não necessariamente em um ajuntamento cristão. Tiago, então, imagina a seguinte cena: um homem rico, adornado com um anel de ouro e vestes luxuosas, entra na sinagoga, juntamente com um homem pobre, em trajes sujos. Ele descreve um comportamento comum àqueles que dão preferência ao rico:

‘… e atentardes para o que traz o traje precioso, e lhe disserdes: Assenta-te tu aqui num lugar de honra, e disserdes ao pobre: Tu, fica aí em pé, ou assenta-te abaixo do meu estrado, porventura não fizestes distinção entre vós mesmos, e não vos fizestes juízes de maus pensamentos? ’.

Tiago conclui que tal atitude revela uma discriminação entre eles próprios e os torna culpados de juízo perverso.

A Ética Judaica na Sinagoga

Tiago utiliza esse exemplo para demonstrar o quão absurdo seria um judeu fazer acepção de pessoas em uma sinagoga com base em critérios socioeconômicos. Para os judeus, o que realmente importava era o vínculo de sangue – a identidade como descendentes de Abraão. Assim, tanto o rico quanto o pobre, ao comparecerem em uma sinagoga, deveriam ser igualmente aceitos e tratados de maneira justa. Mesmo que o pobre estivesse malvestido, a expectativa ética e moral seria a de igualdade, visto que a condição social não deveria interferir na forma como os judeus se relacionavam entre si.

O Apelo de Tiago aos Judeus Cristãos

Tiago usa esse cenário para instruir os judeus cristãos a não fazerem acepção de pessoas em sua fé em Cristo (Tiago 2:1). Se já seria inadmissível para um judeu discriminar outro judeu com base na condição social, quão mais absurda seria tal distinção entre cristãos – especialmente entre judeus cristãos e gentios cristãos! O evangelho ensina que todos os crentes são um em Cristo, independentemente de etnia, status social ou econômico:

“Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28).

Ao apresentar um exemplo hipotético em uma sinagoga (Tiago 2:2-4), Tiago evidencia o absurdo de fazer distinções baseadas em questões socioeconômicas, algo contrário à ética judaica e, ainda mais, ao evangelho de Cristo. Ele exorta os judeus cristãos a rejeitarem qualquer discriminação, especialmente em sua relação com cristãos gentios, mostrando que a fé em Cristo não admite preferencias ou favoritismos. A verdadeira fé é imparcial e se baseia na igualdade de todos diante de Deus. Assim, Tiago reforça que o comportamento cristão deve refletir a justiça, a misericórdia e a igualdade que caracterizam o evangelho.

Um judeu permanece judeu, independentemente de onde esteja ou de sua condição social: seja rico ou pobre, senhor ou servo, livre ou escravo. Jamais um judeu deveria ser aceito ou rejeitado por outro judeu com base em sua posição econômica ou social – especialmente em uma sinagoga. Para os judeus, o que realmente possui valor é o vínculo de sangue, a identidade compartilhada como descendentes de Abraão. Assim, tanto o rico quanto o pobre deveriam ser igualmente aceitos e tratados com dignidade em uma sinagoga, mesmo que o pobre estivesse malvestido. Este é o comportamento ético e moral esperado de um judeu.

Em resumo, ao exortar os judeus cristãos a não terem a fé em Jesus Cristo com acepção de pessoas (Tiago 2:1), Tiago apresenta um exemplo hipotético que evidencia o absurdo que seria, em uma sinagoga, judeus fazerem distinção entre si com base em critérios socioeconômicos (Tiago 2:2-4). Este exemplo é utilizado por Tiago para ensinar aos judeus cristãos o comportamento adequado que deveriam adotar em relação aos cristãos gentios. A mensagem é clara: na fé em Cristo, não há espaço para favoritismos ou discriminação, pois todos são igualmente aceitos diante de Deus.

 

Alerta Sobre Acepção de Pessoas na Igreja

No verso 5 do capítulo 2, Tiago avança na sua argumentação, baseada na exortação inicial do versículo 1 e no exemplo ilustrativo dos versículos 2 a 4. Ele convida os cristãos a ouvirem atentamente sua argumentação (Tiago 2:5-11) e, mais do que isso, a colocarem em prática o que é ensinado (Tiago 2:12). As figuras introduzidas anteriormente agora são mais claramente delineadas e aplicadas na mensagem de Tiago.

Tiago direciona os cristãos à essência do evangelho, fazendo um apelo direto:

“Ouvi, meus amados irmãos: Porventura não escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na fé, e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?” (Tiago 2:5).

Quando Deus escolheu os pobres? Essa escolha dos “pobres” está baseada em questões socioeconômicas ou é uma figura?

A resposta para essas perguntas encontra-se nos versículos a seguir:

Compadecer-se-á do pobre e do aflito, e salvará as almas dos necessitados.” (Salmos 72:13);

“Porque assim diz o Alto e o Sublime, que habita na eternidade, e cujo nome é Santo: Num alto e santo lugar habito; como também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e para vivificar o coração dos contritos.” (Isaías 57:15);

“Porque a minha mão fez todas estas coisas, e assim todas elas foram feitas, diz o SENHOR; mas para esse olharei, para o pobre e abatido de espírito, e que treme da minha palavra.” (Isaías 66:2);

“Assim diz o SENHOR: Maldito o homem que confia no homem (em si mesmo), e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do SENHOR! (…) Bendito o homem que confia no SENHOR, e cuja confiança é o SENHOR.” (Jeremias 17:5 e 7).

A Escolha Divina e o Contraste Rico x Pobre

Neste versículo, o termo “pobre” é usado como uma figura que representa aqueles que esperam em Deus, em contraste com o “rico”, que simboliza aqueles que confiam em sua própria força, como ilustrado em Jeremias:

“Assim diz o Senhor: Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço e aparta o seu coração do Senhor.” (Jeremias 17:5);

“Como a perdiz que choca ovos que não pôs, assim é aquele que acumula riquezas, mas não com justiça; no meio de seus dias as perderá, e no fim será insensato.” (Jeremias 17:11).

O “pobre” que Deus se compadece e favorece refere-se aos “pobres de espírito”, uma expressão que abrange tanto os pobres quanto os ricos, tanto senhores quanto servos, tanto homens quanto mulheres – ou seja, todos aqueles que colocam sua confiança na misericórdia de Deus. O que define esse “pobre” não é sua condição socioeconômica, mas sua postura de humildade e submissão diante de Deus.

Tiago destaca que os “pobres de espírito” foram escolhidos por Deus para serem ricos na fé (no evangelho) e herdeiros com Cristo de todas as coisas, pois essa é a promessa feita por Deus àqueles que O obedecem (amam):

“Bem-aventurado o homem que suporta a tentação; porque, quando for aprovado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor tem prometido aos que O amam.” (Tiago 1:12);

“Ouvi, meus amados irmãos: Porventura não escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que O amam?” (Tiago 2:5).

A escolha dos “pobres” se concretizou quando Deus enviou Cristo ao mundo. Por meio de Cristo, aqueles que O amam (ou seja, O obedecem) são elevados à condição de ricos na fé e passam a ser herdeiros com Cristo de todas as coisas. O cumprimento da promessa feita a Abraão é evidência do amor e da graça divina, que não faz acepção de pessoas, mas alcança todos os que se submetem à Sua vontade (Gênesis 12:3).

“Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: (…) e aos pobres anuncia-se o evangelho.” (Lucas 7:22);

“Aos quais Deus quis fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste mistério entre os gentios, que é Cristo em vós, esperança da glória;” (Colossenses 1:27);

“Para que, sendo justificados pela sua graça, sejamos feitos herdeiros segundo a esperança da vida eterna.” (Tito 3:7; Gálatas 3:29).

A Gravidade da Acusação Contra as Doze Tribos Dispersas

Em seguida, vem a repreensão:

“Mas vós desonrastes o pobre. Porventura não vos oprimem os ricos, e não vos arrastam aos tribunais? Porventura não blasfemam eles o bom nome que sobre vós foi invocado?” (Tiago 2.6-7).

A acusação de Tiago é grave: os pobres – judeus e gentios que creram em Cristo – haviam sido chamados por Deus, tornando-se ricos na fé e herdeiros conforme a promessa. No entanto, os interlocutores de Tiago desonravam esses pobres, especificamente os gentios que criam em Cristo. Isso indica que os cristãos convertidos dentre os judeus estavam cometendo acepção de pessoas, não honrando aqueles que eram ricos na fé e herdeiros da promessa, mas, em vez disso, honravam os “ricos”, ou seja, os judeus não convertidos.

Quem eram os “ricos”?

No contexto, os ricos eram os religiosos judeus, aqueles que ainda não haviam se convertido a Cristo. Esses ricos eram conhecidos por oprimir e perseguir aqueles que criam no evangelho, especialmente os cristãos gentios. Eles arrastavam os cristãos aos tribunais e blasfemavam do nome de Cristo.

Com a repreensão, Tiago evidencia a incoerência do comportamento dos cristãos judeus: enquanto desprezavam os pobres (os gentios convertidos), mas ricos na fé , davam honra e preferência aos ricos, ou seja, aos seus concidadãos judeus não convertidos, que os oprimiam e perseguiam por causa de sua fé em Cristo.

É importante lembrar que os “ricos” mencionados por Tiago são uma figura que remete àqueles que rejeitaram e mataram a Cristo:

“EIA, pois, agora vós, ricos, chorai e pranteai, por vossas misérias, que sobre vós hão de vir. (…) Condenastes e matastes o justo; ele não vos resistiu.” (Tiago 5:1).

A mesma dinâmica estava acontecendo com os judeus cristãos: eles enfrentavam perseguições semelhantes às sofridas pelo apóstolo Paulo, que foi repetidamente levado aos tribunais pelos judeus incrédulos.

“Mas, sendo Gálio procônsul da Acaia, levantaram-se os judeus concordemente contra Paulo, e o levaram ao tribunal,” (Atos 18:12).

A Mensagem do Evangelho

A fé em Cristo ensina que não há diferença entre judeu ou grego, rico ou pobre, homem ou mulher, servo ou livre, senhor ou escravo, pois todos, igualmente, são filhos de Deus pela fé em Cristo. Isso é claramente afirmado nas Escrituras:

“Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” (Gálatas 3:26-28);

“E vos vestistes do novo, que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou; Onde não há grego, nem judeu, circuncisão, nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo em todos.” (Colossenses 3:10-11).

Na igreja de Cristo, não há lugar para discriminação ou distinção, pois ela é o corpo de Cristo, e cada cristão é um membro desse corpo:

“Ora, vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em particular.” (1 Coríntios 12:27).

Da mesma forma que na sinagoga, segundo o exemplo apresentado por Tiago (o rico com anel de ouro e o pobre com vestes sujas, Tiago 2:2-4), não havia diferenças entre judeus ricos e pobres, na igreja de Cristo também não deve haver distinções baseadas em nacionalidade, classe social ou qualquer outro critério humano, porque, em Cristo, todos são um só corpo.

Em essência, o uso do termo grego ἐκκλησία (ekklésia), transliterado como “igreja”, no Novo Testamento, remete à ideia de um corpo constituído por “iguais”. Assim como a ἐκκλησία da Grécia Antiga, que representava a principal assembleia democrática de Atenas, era composta por iguais em direitos e voz, o corpo de Cristo é constituído por iguais em dignidade e valor espiritual.

Essa igualdade é reforçada pela designação πρωτότοκος (prōtotokos, primogênitos), referindo-se àqueles que pertencem a Deus. No contexto cristão, todos os crentes são coerdeiros com Cristo, considerados filhos de Deus e igualmente participantes das promessas divinas, independentemente de sua origem ou condição.

O uso do termo “ekklésia” no Novo Testamento sublinha a igualdade entre os cristãos, destacando que não importa se são judeus, gregos, romanos ou bárbaros, pois, no corpo de Cristo, não há diferença entre os membros:

“Assim também nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo, e membros uns dos outros.” (Romanos 12:5).

Essa terminologia reforça a essência da igreja como uma comunidade onde todas as barreiras sociais, culturais ou étnicas são removidas, estabelecendo um ambiente de unidade em Cristo e igualdade entre os crentes.

Pedro e os da Circuncisão

O que estava ocorrendo na comunidade cristã das doze tribos da dispersão era similar ao comportamento reprovável do apóstolo Pedro, descrito em Gálatas 2. Enquanto estava apenas entre gentios, Pedro comia com eles, demonstrando comunhão e igualdade. No entanto, quando chegaram cristãos judeus, Pedro dissimuladamente começou a se afastar dos gentios, preferindo associar-se aos judeus, temendo a reação dos da circuncisão. Essa atitude de Pedro foi prontamente repreendida pelo apóstolo Paulo, que confrontou sua incoerência:

“Porque, antes que alguns tivessem chegado da parte de Tiago, comia com os gentios; mas, depois que chegaram, se foi retirando, e se apartou deles, temendo os que eram da circuncisão. E os outros judeus também dissimulavam com ele, de maneira que até Barnabé se deixou levar pela sua dissimulação. Mas, quando vi que não andavam bem e direitamente conforme a verdade do evangelho, disse a Pedro na presença de todos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus?” (Gálatas 2:12-14).

De maneira semelhante, na comunidade cristã das doze tribos da dispersão, os cristãos judeus estavam demonstrando acepção de pessoas. Eles davam preferência aos judeus, mesmo que incrédulos, enquanto desprezavam os gentios que haviam crido em Cristo. Essa atitude contradizia o princípio central do evangelho, que proclama a igualdade de todos em Cristo, independentemente de origem ou nacionalidade (Gálatas 3:28).

O comportamento de Pedro e da comunidade cristã das doze tribos evidencia como o preconceito cultural e as tradições humanas ainda influenciavam a conduta de alguns crentes, mesmo após aceitarem o evangelho. Contudo, a repreensão de Paulo e as exortações de Tiago destacam que a verdadeira fé em Cristo não admite acepção de pessoas, mas promove comunhão plena entre todos os que creem, independentemente de suas diferenças.

Tiago poderia ter repreendido os cristãos judeus com uma argumentação semelhante à do apóstolo Paulo, que enfatiza a igualdade de todos em Cristo e o rompimento das barreiras culturais e sociais (Gálatas 3:28). Se ao menos cumprissem a lei áurea, registrada na Escritura – “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Levítico 19:18) – estariam agindo corretamente. Contudo, ao fazerem acepção de pessoas, eles se tornavam culpados diante da própria lei que alguns afirmavam observar. Tiago deixa claro:

“Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, bem fazeis. Mas, se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, e sois redarguidos pela lei como transgressores. “ (Tiago 2:8-9);

Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus? Nós somos judeus por natureza, e não pecadores dentre os gentios. Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada. Pois, se nós, que procuramos ser justificados em Cristo, nós mesmos também somos achados pecadores, é porventura Cristo ministro do pecado? De maneira nenhuma. Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, constituo-me a mim mesmo transgressor.” (Gálatas 2:14-18).

Em seguida, Tiago apresenta o espírito da lei, demonstrando que amar o próximo e não fazer acepção de pessoas são mandamentos inseparáveis e interdependentes. Ele evidencia que cumprir parcialmente a lei, guardando apenas o mandamento de amar os seus concidadãos, enquanto faziam acepção de um gentio – seu irmão em Cristo – era uma contradição e, portanto, uma transgressão (Tiago 2:8-9).

Ao destacar a unidade da lei – que um tropeço em um só ponto dela torna o indivíduo culpado de toda a lei –, Tiago não apenas repreende os cristãos das Doze Tribos da Dispersão, que, sob o pretexto de guardar a lei, honravam seus concidadãos judeus nos ajuntamentos solenes enquanto faziam acepção dos gentios, mas também expõe a impossibilidade de alguém se justificar por meio das obras da lei.

“Porque qualquer que guardar toda a lei, e tropeçar em um só ponto, tornou-se culpado de todos. Porque aquele que disse: Não cometerás adultério, também disse: Não matarás. Se tu pois não cometeres adultério, mas matares, estás feito transgressor da lei.” (Tiago 2:10-11).

Tiago confronta a incoerência dos cristãos judeus que alegavam guardar a lei, mas desobedeciam a um de seus princípios fundamentais: não fazer acepção de pessoas (Levítico 19:15). Ele enfatiza que a lei é indivisível; transgredir um único mandamento equivale a quebrar toda a lei. Assim, sua argumentação não apenas denuncia a prática de favoritismo, mas também aponta para a insuficiência da lei como meio de justificação, pois ninguém pode cumpri-la integralmente.

A Lei da Liberdade

Por fim, Tiago apresenta a conclusão de sua exposição, que teve início no verso 22 do capítulo 1:

Assim falai, e assim procedei, como devendo ser julgados pela lei da liberdade. Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia; e a misericórdia triunfa do juízo.” (Tiago 2:12-13).

Se alguém professa ter fé em nosso Senhor Jesus Cristo (Tiago 2:1), que demonstre essa fé também em suas ações, ou seja, não fazendo acepção de pessoas. Tiago instrui os cristãos a viverem de acordo com a lei da liberdade, que é o evangelho de Cristo (Tiago 1:25).

Por que os cristãos deveriam evitar a acepção de pessoas, se já não estão mais debaixo da lei mosaica, que condenava como transgressor aquele que não a cumprisse? A resposta está no fato de que, como cristãos, eles não seriam mais julgados segundo a lei mosaica, mas pela lei da liberdade, que é a mensagem redentora do evangelho. A lei da liberdade liberta aqueles que estão em Cristo da sujeição à antiga lei mosaica, que foi dada sob maldição. Contudo, essa mesma lei da liberdade também submete os que se apresentam para servir à justiça (Romanos 6:19).

Tiago também alerta para a importância de agir com misericórdia, pois o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia. Este princípio está profundamente enraizado no ensino de Jesus:

“Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.” (Mateus 5:7).

Jesus determinou aos escribas e fariseus que aprendessem a lição da misericórdia:

“Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício. Porque eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento.” (Mateus 9:13).

A instrução de Jesus aponta diretamente para as Escrituras, onde eles deveriam buscar o significado profundo de “Misericórdia quero, e não sacrifício”, uma citação de Oséias 6:6:

“Porque eu quero misericórdia, e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.”

Neste versículo, Deus repreende o povo de Israel, que praticava rituais religiosos (sacrifícios) sem obedece-lo de fato, o verdadeiro amor. O profeta Oséias destaca que Deus valoriza a misericórdia, ou seja, o conhecimento genuíno de Sua vontade do que a observância externa dos rituais religiosos.

A Lição da Misericórdia em Saul

A lição que os escribas e fariseus deveriam aprender estava exemplificada na pessoa de Saul. Ele ouviu a ordem de Deus – “destrói totalmente os amalequitas” – mas, em vez de obedecer, fez a sua própria vontade. Como desculpa, justificou sua desobediência dizendo que tinha proposto fazer um sacrifício ao Senhor (1 Samuel 15:1-23).

“E enviou-te o SENHOR a este caminho, e disse: Vai, e destrói totalmente a estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até que os aniquiles. Por que, pois, não deste ouvidos à voz do SENHOR, antes te lançaste ao despojo, e fizeste o que parecia mau aos olhos do SENHOR? Então disse Saul a Samuel: Antes dei ouvidos à voz do SENHOR, e caminhei no caminho pelo qual o SENHOR me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas destruí totalmente; Mas o povo tomou do despojo ovelhas e vacas, o melhor do interdito, para oferecer ao SENHOR teu Deus em Gilgal. Porém Samuel disse: Tem porventura o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios, como em que se obedeça à palavra do SENHOR? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar; e o atender melhor é do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e o porfiar é como iniquidade e idolatria. Porquanto tu rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei.” (1 Samuel 15:18-23).

Saul é o exemplo claro de alguém que observa o seu rosto natural no espelho, mas, ao sair, esquece de como era (Tiago 1:23-24). Ele ouviu a palavra de Deus, mas não foi cumpridor; limitou-se a ser ouvinte. Os escribas e fariseus estavam na mesma condição: vinham ouvir as palavras de Jesus, mas não as colocavam em prática, assim como ouviam a lei, mas também não a obedeciam:

“Não vos deu Moisés a lei? E nenhum de vós observa a lei.” (João 7:19).

A desobediência de Saul é uma lição importantíssima, reforçada pelos profetas ao longo do tempo:

“Porque eu quero a misericórdia, e não o sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos.” (Oseias 6:6).

Apesar disso, o povo de Israel permaneceu insensível à voz de Deus. Assim como crianças que ficam argumentando e debatendo entre si, os escribas e fariseus discutiam sobre o que deveria ser feito, mas não obedeciam à vontade divina. Eles eram como os meninos descritos por Jesus:

“São semelhantes aos meninos que, assentados nas praças, clamam uns aos outros, e dizem: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamo-vos lamentações, e não chorastes.” (Lucas 7:32).

 

A Figura dos Irmãos e Imãs Nus

Em seguida, Tiago apresenta a figura do irmão e da irmã nus e necessitados de alimentos para ilustrar a natureza da (pistein/crer) e a natureza das obras. Ele usa essa imagem para esclarecer sua argumentação, mas é importante destacar que Tiago não utiliza os termos “fé” e “obras” no mesmo sentido que o apóstolo Paulo.

“Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver as obras? Porventura a fé pode salvá-lo? E, se o irmão ou a irmã estiverem nus, e tiverem falta de mantimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí?” (Tiago 2:14-16).

Para compreender as duas primeiras perguntas feitas por Tiago nesses versículos, é necessário explicar a natureza da e a natureza das obras abordadas por ele. Para isso, precisamos retornar ao capítulo 1, onde Tiago introduz os conceitos fundamentais que ele desenvolve ao longo de sua epístola.

A Lei Perfeita e a Obra

“Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecidiço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito.” (Tiago 1:25).

Vale lembrar que a lei perfeita da liberdade é o evangelho de Cristo, no qual o cristão deve perseverar crendo para alcançar a bem-aventurança prometida:

“Todo aquele que prevarica e não persevera na doutrina de Cristo não tem a Deus; quem persevera na doutrina de Cristo, esse tem tanto ao Pai como ao Filho.” (2 João 1:9).

De outra forma, podemos dizer que a lei perfeita da liberdade é a fé entregue aos santos (Judas 1:3), a mesma fé que os cristãos já possuem (Tiago 2:1) e que devem guardar até o fim da carreira:

“Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé.” (2 Timóteo 4:7).

Atentar (παρακύπτω, parakuptó) para a lei perfeita da liberdade significa atender, obedecer e sujeitar-se ao evangelho. Perseverar (παραμένω, paramenó) implica permanecer firme, guardar, crer, e acreditar continuamente. Esses dois verbos – παρακύπτω (atentar) e παραμένω (perseverar) – resumem-se em uma ideia central: ser um praticante da obra (ποιητὴς ἔργου, poiētēs ergou). Essa prática contrasta diretamente com a atitude de quem é apenas um ouvinte esquecido.

A expressão “praticar a obra”, ou “pôr por obra”, era frequentemente usada pelos profetas para exortar os filhos de Israel à obediência devida a Deus. Não bastava ouvir as palavras de Deus; era necessário colocá-las em prática. A obra não era uma simples ação ritual, mas o resultado da sujeição à vontade de Deus. Quando os filhos de Israel se submetessem verdadeiramente à vontade divina, essa sujeição os transformaria em servos de Deus e, consequentemente, em executores da Sua obra (Mateus 7:21).

“E eles vêm a ti, como o povo costumava vir, e se assentam diante de ti, como meu povo, e ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra; pois lisonjeiam com a sua boca, mas o seu coração segue a sua avareza. E eis que tu és para eles como uma canção de amores, de quem tem voz suave, e que bem tange; porque ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra.” (Ezequiel 33:31-32).

Obra como submissão

Os judeus que iam até o profeta Ezequiel para ouvir a palavra de Deus não a colocavam em prática. Isso demonstra que os filhos de Jacó eram ouvintes esquecidos, que não atentavam nem obedeciam à voz divina. Ouviam, mas não agiam; consequentemente, suas obras eram inúteis e desprovidas de valor diante de Deus. Em vez disso, suas obras eram caracterizadas como iniquidade:

“As suas teias não prestam para vestes nem se poderão cobrir com as suas obras; as suas obras são obras de iniquidade, e obra de violência há nas suas mãos.” (Isaías 59:6).

A metáfora das teias que não servem para vestes revela a fragilidade e a inutilidade das obras dos filhos de Israel, que, ao invés de serem submissão à palavra de Deus, eram ações baseadas em seus próprios conselhos e desejos. Eles não se cobriam com a palavra de Deus, mas buscavam proteção e direção em conselhos humanos, algo que o próprio Deus condenava:

“AI dos filhos rebeldes, diz o SENHOR, que tomam conselho, mas não de mim; e que se cobrem, com uma cobertura, mas não do meu espírito, para acrescentarem pecado sobre pecado;” (Isaías 30:1).

“Porque o Senhor disse: Pois que este povo se aproxima de mim, e com a sua boca, e com os seus lábios me honra, mas o seu coração se afasta para longe de mim e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, em que foi instruído;” (Isaías 29:13).

Ao observar os contextos em que o termo ἔργον (ergon), traduzido como “obra”, aparece, percebe-se que ele pode assumir um sentido positivo ou negativo, dependendo da atitude do homem em relação à palavra de Deus. Se o homem ouve a palavra de Deus e a põe por obra, isso significa que ele obedeceu a Deus. Contudo, se o homem ouve, mas não põe por obra, isso revela que ele desobedeceu.

A palavra de Deus, muitas vezes, é apresentada como “temor”:

“E disse Moisés ao povo: Não temais; Deus veio para vos provar, e para que o seu temor esteja diante de vós, a fim de que não pequeis.” (Êxodo 20:20);

“Então entenderás o temor do Senhor, e acharás o conhecimento de Deus.” (Provérbios 2:5);

“Ao Senhor dos Exércitos, a ele santificai; e seja ele o vosso temor, e seja ele o vosso assombro.” (Isaías 8:13).

Se os filhos de Israel não obedeciam à palavra de Deus, mas cumpriam muitas ordenanças e preceitos, estavam, na verdade, apenas obedecendo a mandamentos de homens. O “temor” que obedeciam não era o temor de Deus, que é o princípio da sabedoria, mas um temor formulado por homens.

“Porque o Senhor disse: Este povo se aproxima de mim com a sua boca, e com os seus lábios me honra, mas o seu coração se afasta para longe de mim; e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu” (Isaías 29:13).

É com base nessa linguagem que o evangelista João instrui os cristãos convertidos dentre os judeus, e o apóstolo Paulo orienta Tito:

“Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade.” (1 João 3:18);

“Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no com as obras, sendo abomináveis, e desobedientes, e reprovados para toda a boa obra.” (Tito 1:16).

O termo obra (ἔργον/ergon), dependendo do contexto, refere-se a um serviço executado por um servo sob o comando de um senhor. Quando repreendeu a multidão por segui-Lo apenas por causa da multiplicação dos pães, Jesus os instruiu a trabalharem pela comida que permanece para a vida eterna:

“Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do homem vos dará; porque a este o Pai, Deus, o selou” (João 6:27).

A multidão, então, perguntou:

“Que faremos para executar as obras de Deus?” (João 6:28).

Essa pergunta equivale a perguntar: “Que faremos para sermos servos de Deus?” Ao que Jesus respondeu:

“A obra de Deus é essa: que creiais naquele que Ele enviou.” (João 6:29).

Para se tornar servo de Deus, basta realizar a Sua obra: crer em Cristo. Essa é a essência do evangelho, conforme ensinado por Jesus. Quem crê em Cristo se torna executor da obra mencionada por Tiago. Essa pessoa atenta para a lei perfeita da liberdade – o evangelho – e não é apenas ouvinte, mas praticante.

“Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecidiço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito.” (Tiago 1:25).

Obra em Tiago e Paulo

O termo “obra” é utilizado por Paulo e Tiago com significados distintos, refletindo os contextos e objetivos específicos de suas mensagens. Enquanto Paulo emprega o termo para se referir às “obras da lei”, Tiago o utiliza para indicar obediência prática à palavra de Deus.

“Meus irmãos, que proveito há se alguém disser que tem fé, e não tiver obras? Pode essa fé salvá-lo? “ (Tiago 2:14).

Essas perguntas de Tiago surgem em um contexto de exortação sobre os ouvintes da palavra de Deus que não são cumpridores, mas ouvintes esquecidos (Tiago 1:22-23). Ele direciona sua mensagem aos cristãos convertidos do judaísmo, que diziam ter fé, mas cuja conduta não refletia essa profissão.

O contexto da pergunta de Tiago está diretamente relacionado ao ouvinte que não é cumpridor da palavra de Deus, comparado a alguém que observa o próprio rosto no espelho, mas logo se esquece de sua aparência (Tiago 1:23-24). Assim, Tiago questiona: Que adianta o “ouvinte esquecido” dizer que tem fé? Pode essa fé, que não é acompanhada de obras, salvá-lo?

Ora, Tiago já havia afirmado que somente o fazedor da obra é bem-aventurado no que faz (Tiago 1:25). Portanto, a obra que ele exige é clara: cumprir a palavra de Deus, que significa crer em Cristo.

Vale destacar que os judeus frequentemente alegavam ter fé em Deus, mas não criam em Cristo. Tiago indaga: Poderia essa fé salvá-los? A resposta é evidente: se não obedecem à palavra de Deus crendo que Jesus é o Cristo, suas declarações de fé são vazias e inúteis.

Essa fé inativa é comparada à insensatez de quem constrói sua casa sobre a areia:

“E aquele que ouve estas minhas palavras, e não as cumpre, compará-lo-ei ao homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia;” (Mateus 7:26).

Jesus mesmo disse aos discípulos:

“NÃO se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim.” (João 14:1).

Essa declaração de Jesus reforça a conexão indissociável entre confissão de e obediência. Não basta professar fé em Deus; é necessário crer também em Cristo, o Filho enviado por Ele.

“E a sua palavra não permanece em vós, porque naquele que ele enviou não credes vós.” (João 5:38);

“Mas, se não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?” (João 5:47);

“Mas, se as faço, e não credes em mim, crede nas obras; para que conheçais e acrediteis que o Pai está em mim e eu nele.” (João 10:38);

Como as Escrituras são o testemunho que Deus deu acerca do Seu Filho, não adianta simplesmente dizer: “tenho fé em Deus”, se essa fé não é acompanhada de obediência ao que Deus declarou acerca de Cristo.

“E o Pai que me enviou, Ele mesmo testificou de mim. Vós nunca ouvistes a Sua voz, nem vistes a Sua face. E a Sua palavra não permanece em vós, porque não credes naquele que Ele enviou.” (João 5:37-38).

A verdadeira fé em Deus passa necessariamente por crer em Seu Filho, pois é através de Cristo que o homem crê em Deus:

“E por ele credes em Deus, que o ressuscitou dentre os mortos, e lhe deu glória, para que a vossa fé e esperança estivessem em Deus;” (1 Pedro 1:21).

Tiago questiona: Que proveito há em dizer “tenho fé” e não obedecer ao que Deus diz acerca de Seu Filho? A fé que não reconhece e obedece a Cristo como Senhor e Salvador é vã. Jesus afirmou que o verdadeiro amor a Deus é demonstrado pela obediência à Sua palavra:

“Se me amais, guardareis os meus mandamentos.” (João 14:15).

A obediência ao testemunho de Deus sobre Cristo é a marca de uma fé genuína. Como escreveu o apóstolo João:

“Quem crê no Filho de Deus, em si mesmo tem o testemunho; quem a Deus não crê mentiroso o fez, porquanto não creu no testemunho que Deus de Seu Filho deu.” (1 João 5:10);

“E Jesus clamou, e disse: Quem crê em mim, crê, não em mim, mas naquele que me enviou.” (João 12:44).

Se alguém não tem fé em Jesus, de que adianta dizer: “Tenho fé”? A fé verdadeira não pode ser dissociada de Cristo, pois a obra de Deus é esta:

“Que creiais naquele que Ele enviou.” (João 6:29).

Sem essa obra fundamental – crer em Cristo – qualquer declaração de fé é vazia e ineficaz. Tiago questiona essa fé que não é acompanhada por obra em obediência ao evangelho:

“Se alguém disser que tem fé, e não tiver obras, pode essa fé salvá-lo?” (Tiago 2:14).

A resposta é clara: Não! A fé que não reconhece e obedece a Cristo não pode salvar. A verdadeira fé em Cristo evidencia-se  em confissão verbal, refletindo a submissão àquilo que Deus revelou em Seu Filho.

Portanto, fé sem obediência ao testemunho de Deus acerca de Cristo é inútil. Dizer “tenho fé em Deus” e ao mesmo tempo rejeitar ou negligenciar a obediência a Cristo é uma contradição. A verdadeira fé é inseparável da submissão ao evangelho, que aponta para Cristo como o único caminho, verdade e vida (João 14:6).

Anacronismo na Leitura do Termo “Obras”

Neste ponto do comentário, é necessário retornar ao primeiro parágrafo introdutório deste artigo. Afirmamos que, no cotidiano, qualquer pessoa que lê um texto o faz a partir de uma perspectiva subjetiva, moldada por sua própria bagagem sociocultural. Durante a leitura, o leitor se aproxima de um conteúdo objetivo compartilhado pelo autor, abstrai as ideias apresentadas e, ao processá-las, as interpreta sob o prisma de sua experiência e contexto cultural.

Se analisarmos a história e os ensinamentos de Martinho Lutero, observa-se que, antes de romper com a Igreja Católica, ele foi profundamente influenciado pela doutrina católica sobre a salvação, que enfatizava a importância das obras na obtenção da graça salvadora.

Como isso é possível, considerando que Lutero rompeu com a Igreja Católica ao defender a salvação somente pela fé?

A ruptura de Lutero com a Igreja Católica ocorreu principalmente em relação ao Sacramento da Penitência, que incluía as indulgências. Inicialmente, essas indulgências consistiam em práticas impostas pelo clero aos penitentes, como recitação de orações, atos de piedade, peregrinações, esmolas e caridades. Com o tempo, porém, o clero passou a vender indulgências em troca de dinheiro, corrompendo o propósito original dessas práticas.

Como muitos fiéis preferiam pagar pelas indulgências em vez de realizar as chamadas “obras de amor” ou “obras de misericórdia” – segundo a concepção de Lutero (ver suas teses 41 a 45) –, o termo “obra” passou a ser utilizado por ele de forma pejorativa, como um conceito oposto à fé.

Entendermos segundo a Bíblia que, a obra da fé, que consiste em crer em Cristo, é incompatível com as obras da lei. Contudo, ao associar o termo “obra” às práticas católicas de indulgências, Lutero acabou demonizando o termo, na tentativa de enfatizar a salvação pela fé, e se esqueceu que há também a “obra da fé”.

Embora a Doutrina Católica tenha equívocos fundamentais quanto ao processo de salvação, o uso do termo “obra” por Lutero, vinculado às indulgências e práticas penitenciais, acabou contaminando sua leitura teológica. Enquanto o cristão verdadeiro é chamado a ser tanto um homem de fé, que se aproxima de Deus pelo evangelho, quanto um homem de obra, que obedece a Deus por crer que Jesus é o Cristo, Lutero avançou ao extremo de afirmar que a salvação é exclusivamente pela “fé somente”, no sentido de acreditar, desconsiderando a relação da fé como “evangelho” e “obras” como “obediência”.

Enquanto o cristão é um homem de fé, pois se aproxima de Deus através do evangelho, e é um homem de obra porque crê que Jesus é o Cristo, Lutero chega a loucura de afirmar que a salvação é pela fé somente, mas fé no sentido de acreditar, e que não é por obra, porque Deus escolheu quem haveria de ser salvo.

Lutero chegou a negar que as obras desempenhassem qualquer papel na vida do cristão, em parte devido à sua visão de predestinação. Para ele, Deus já havia escolhido quem seria salvo, e as obras eram irrelevantes nesse processo. Essa abordagem exagerada resultou em uma interpretação unilateral do termo, gerando confusão sobre a relação entre fé (evangelho), fé (crer) e obras (obedecer) no contexto cristão.

O apóstolo Paulo, ao afirmar que ninguém será justificado pelas obras, está se referindo especificamente às obras da lei mosaica, como a circuncisão e outros rituais da lei (Romanos 3:20; Gálatas 2:16). Essas obras não podem justificar o homem diante de Deus, pois a salvação é pela graça, por meio da fé.

Contudo, as pretensas obras praticadas pelos católicos como parte das penitências, como indulgências e atos impostos pelo clero, não eram o alvo das palavras de Paulo. Aqui o anacronismo se faz perceber, pois Paulo não antecipou nos seus escritos as penitencias católicas, antes combateu somente a fé judaica, que se firma nas obras da lei.

“Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado.” (Romanos 3:20);

“Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei.” (Romanos 3:28);

“Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada.” (Gálatas 2:16);

“Todos aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las.” (Gálatas 3:10).

Buscar a salvação através das “obras da lei” é o mesmo que ser “escravo da lei”, ou estar a serviço de uma lei que foi dada sob maldição, como o apóstolo Paulo enfatiza:

“Todos aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque escrito está: Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las” (Gálatas 3:10).

Paulo exorta os cristãos a permanecerem na liberdade conquistada por Cristo e a não se submeterem novamente ao jugo da escravidão:

“ESTAI, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão. Eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. E de novo protesto a todo o homem, que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei.” (Gálatas 5:1-3).

Quando o apóstolo Paulo utiliza o termo “obra”, ele não está se referindo às práticas da Igreja Católica, como os Sacramentos da Penitência, mas sim às obras da lei mosaica. Ele dirige suas palavras especialmente aos seus irmãos judeus, que confiavam na lei como meio de justificação e se gloriavam em sua relação com Deus através dela:

“Eis que tu que tens por sobrenome judeu, e repousas na lei, e te glorias em Deus; E sabes a sua vontade e aprovas as coisas excelentes, sendo instruído por lei; E confias que és guia dos cegos, luz dos que estão em trevas, Instrutor dos néscios, mestre de crianças, que tens a forma da ciência e da verdade na lei;” (Romanos 2:17-20).

Quando o apóstolo Paulo fala que ninguém pode ser salvo por obras, ele tem em vista as obras da lei. Nem judeu, nem prosélito algum pode ser salvo através das obras da lei, pois tudo o que a lei diz, diz aos que estão debaixo da lei, e não aos gentios.

“Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus.” (Romanos 3:19).

Como a lei foi dada especificamente aos judeus, a lei diz o que diz aos judeus, e eles serão julgados segundo a lei. Já os gentios, que não receberam a lei, serão julgados de forma distinta, pois a lei não lhes foi entregue diretamente. Paulo esclarece essa distinção:

“Porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão julgados. Porque os que ouvem a lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados. Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei;” (Romanos 2.12-14).

Quem são os que sem lei pecaram? Os gentios. Estes não receberam a lei mosaica, mas ainda assim pecaram, pois a morte, em decorrência da ofensa de Adão, passou a todos os homens.

Quem são os que sob a lei pecaram? Os judeus. Estes pecaram porque igualmente a morte passou a eles, em função da ofensa de Adão.

“Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram.” (Romanos 5:12).

Historicizando o Uso do Termo “Obra”

É possível alguém se salvar através das práticas do Sacramento da Penitência? Impossível, pois a ideia de penitência segundo a doutrina católica não encontra fundamento bíblico. A penitência católica foi construída com base no pensamento platonista do purgatório, algo que carece completamente de apoio nas Escrituras.

A mensagem de João Batista, por exemplo, ordenava aos ouvintes que mudassem de entendimento (μετανοεω/metanoeo), em preparação para a chegada de Cristo. No entanto, os teólogos católicos traduziram μετανοεω como “fazei penitência”, levando o clero a determinar práticas penitenciais como recitações de orações, jaculatórias, atos de piedade, peregrinações, esmolas e caridades para os que confessavam seus pecados cotidianos. Essa interpretação desvia o foco da transformação espiritual, reduzindo o conceito a um conjunto de rituais impostos pela Igreja.

Quando o apóstolo Paulo afirma que ninguém pode ser salvo pelas obras da lei, ele não está se referindo aos desvios doutrinários da Igreja Católica ou às práticas de outras religiões. Seu foco é exclusivamente sobre as obras da lei mosaica, ou seja, os rituais e mandamentos que os judeus praticavam como meio de justificação diante de Deus.

O apóstolo Paulo abordou o termo “obras” exclusivamente através da perspectiva da lei porque, no contexto de sua época, não havia outro sistema religioso que se contrapusesse ao evangelho de Cristo de forma tão direta e ameaçadora quanto o judaísmo, especialmente por meio dos judaizantes.

Os judaizantes eram judeus que haviam professado fé em Cristo, mas insistiam em impor as práticas da lei mosaica – como a circuncisão, a observância das festas e as restrições alimentares – como requisitos necessários para a salvação. Essa abordagem era contrária à mensagem do evangelho, que proclama a salvação pela graça, por meio da fé em Cristo, independente das obras da lei.

Além disso, os judaizantes não apenas buscavam impor as práticas judaicas, mas também instrumentalizavam politicamente os seguidores de Cristo. Eles viam no movimento cristão uma oportunidade de expandir sua influência e manter controle sobre os novos convertidos, especialmente os gentios, tentando sujeitá-los às tradições judaicas e perpetuar o sistema religioso que lhes dava status e poder, bem como material humano para promover insurreições.

Paulo reconheceu esse perigo e combateu vigorosamente essa distorção do evangelho. Sua insistência em abordar o termo “obras” no contexto da lei mosaica era uma resposta direta à tentativa dos judaizantes de desviar os cristãos da liberdade encontrada em Cristo.

Lutero e a Conotação Negativa de “Obra”

No afã de enfatizar a salvação somente pela fé em Cristo, Lutero acabou negando o livre-arbítrio humano, um ponto teológico que é amplamente contestado pelos reformadores. Nesse processo, o termo “obra” adquiriu uma conotação negativa dentro da doutrina reformada, sendo associado a esforços humanos inúteis para alcançar a salvação, sendo que o uso que Paulo faz está relacionado à lei.

Quando Lutero se deparou com a epístola de Tiago, que utiliza o termo “obra” em um sentido positivo, como os apóstolos fizeram em seus escritos (embora em menor frequência, devido ao público judeu-gentílico), ele rejeitou a epístola, chegando a rotulá-la como uma “epístola de palha”.

Assim como há obras da lei, que não podem justificar ninguém, também existem as obras da fé, que expressam a sujeição à fé, que significa obediência ao evangelho. Enquanto as obras da lei são incapazes de justificar o homem, as obras da fé – ou seja, se submeter ao evangelho crendo em Cristo, é ação essencial a justificação.

Pelas obras da lei, ninguém será justificado, mas todos que realizam a obra da fé – crer, sujeitar, se fazer  servo, estar a serviço da fé – alcançarão a justificação e a vida eterna.

O Evangelista João e o Termo Obra

Com base no proclamado pelos profetas e na linguagem da época, fortemente influenciada pelo contexto aristocrático e cultural dos judeus, o apóstolo João emprega o termo “obra” ao exortar os cristãos a obedecerem à verdade do evangelho:

“Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade.” (1 João 3.18).

Nesse contexto, “obra” é a expressão prática do amor: a obediência ao evangelho. Não se trata apenas de uma declaração verbal ou intenção, mas de um amor demonstrado por meio da submissão ao mandamento contido na verdade do evangelho.

Se este versículo de João fosse formulado como uma pergunta argumentativa, semelhante ao estilo de Tiago, poderia ser assim:

“Meus filhinhos, que proveito há se alguém disser que ama, e não tiver obras? Pode esse amor salvá-lo?”

Essa exortação de João não é isolada; ela ecoa a própria mensagem de Jesus, que ensinou que o amor a Ele se evidencia em obediência aos Seus mandamentos. O amor verdadeiro, segundo Jesus, não é apenas um sentimento ou uma declaração emocionada, mas demonstrado por meio da obediência:

“Se me amais, guardai os meus mandamentos.” (João 14:15);

“Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.” (João 14:21);

” Jesus respondeu, e disse-lhe: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada. Quem não me ama não guarda as minhas palavras; ora, a palavra que ouvistes não é minha, mas do Pai que me enviou.” (João 14:23-24).

O que adianta alguém dizer que ama a Cristo, mas não guarda os mandamentos d’Ele? Pode, porventura, tal amor salvá-lo? Obviamente, não. A essência do amor exigido por Cristo está em sujeitar-se a Ele como Senhor, assumindo a condição de servo por meio da obediência aos Seus mandamentos.

Jesus expôs essa verdade de forma clara:

“E por que me chamais, SENHOR, Senhor, e não fazeis o que eu digo?” (Lucas 6:46).

De que adiantou Simão Pedro dizer: “Sim, Senhor, tu sabes que te amo”, se ele não estava cumprindo a ordem de Cristo de apascentar as Suas ovelhas?

“Disse-lhe terceira vezSimão, filho de Jonas, amas-me? Simão entristeceu-se por lhe ter dito terceira vez: Amas-me? E disse-lhe: SENHOR, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo. Jesus disse-lhe: Apascenta as minhas ovelhas.” (João 21:17).

O diálogo entre Jesus e Pedro deixa evidente que o amor declarado precisava ser confirmado por ações concretas. Cristo exigiu que Pedro demonstrasse seu amor cuidando de Suas ovelhas, ou seja, exercendo seu ministério de forma fiel e obediente.

A essência do amor a Cristo é a obediência. Quem O ama, naturalmente se submete à Sua vontade, reconhecendo-O como Senhor. Esse amor não é um sentimento abstrato ou uma confissão verbal, mas um compromisso real que envolve serviço e fidelidade.

O Apóstolo Paulo e o Termo Obra

A argumentação de Tiago sobre aqueles que alegam ter fé, mas não possuem obras, encontra paralelo na fala do apóstolo Paulo:

Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no com as obras, sendo abomináveis, e desobedientes, e reprovados para toda a boa obra.” (Tito 1:16).

Essa conexão evidencia que a fé verdadeira não é meramente declarada, mas demonstrada por meio de obras. Assim como Tiago, Paulo denuncia a incoerência daqueles que afirmam conhecer a Deus, mas contradizem essa confissão sendo desobedientes.

Amar a Cristo não é apenas um sentimento ou uma confissão verbal. Só ama verdadeiramente a Cristo aquele que toma sobre si o Seu jugo e aprende d’Ele:

Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. (Mateus 11.29).

A sujeição ao jugo de Cristo é um ato de obediência que traz alívio e descanso ao homem cansado e oprimido. O jugo de Cristo, ao contrário de outros jugos, não é pesado ou opressor. É suave e leve, mas exige que o homem o tome voluntariamente. Essa entrega demonstra o verdadeiro amor a Cristo, que se manifesta em obediência à Sua palavra:

“Pois o mesmo Pai vos ama, visto como vós me amastes, e crestes que saí de Deus.” (João 16:27).

O apóstolo Paulo também destaca a importância da obediência em sua missão de levar o evangelho aos gentios. Ele não ousava afirmar ou ensinar nada que Cristo não tivesse realizado por meio dele, e sua missão tinha como objetivo tornar os gentios obedientes por palavra e por obras. Essa ênfase contrasta com o comportamento dos judeus descritos por Paulo, que eram ouvintes da lei, mas não cumpridores dela:

“Porque não ousarei dizer coisa alguma, que Cristo por mim não tenha feito, para fazer obedientes os gentios, por palavra e por obras;” (Romanos 15:18).

Se o homem está cansado e oprimido, Cristo pode lhe dar alívio. Mas como isso ocorre? É necessário que o homem tome sobre si o jugo de Jesus. E aqui surge uma questão: como descansar ou encontrar alívio submetendo-se a um novo jugo? A resposta está na natureza desse jugo. O jugo de Jesus é suave, e o fardo é leve, mas para experimentar esse descanso e alívio, é imprescindível que o homem o tome voluntariamente (Mateus 11:29-30).
Essa verdade é reforçada por Tiago ao falar sobre a coroa da vida destinada aos que amam ao Senhor:

“Bem-aventurado o homem que suporta a tentação; porque, depois de aprovado, receberá a coroa da vida, que o Senhor tem prometido aos que o amam.” (Tiago 1:12).

Amar ao Senhor é obedecer, e obedecer é se fazer servo (Mateus 6:24; Oséias 6:6). Deus promete a coroa da vida aos que O amam, evidenciando que o amor ao Senhor é inseparável da obediência. Aqueles que obedecem tornam-se ricos na fé e herdeiros do reino, pois amar a Deus implica submissão e fidelidade à Sua palavra. Não basta ao homem dizer que tem fé; é imprescindível que ele ponha por obra o mandamento de Deus.

Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem;” (Mateus 23:3).

Abraão, ao receber a ordem de Deus, obedeceu prontamente, demonstrando sua fé em Deus por meio de sua obediência. Ele esteve disposto a oferecer o seu filho Isaque em holocausto, confiando plenamente em Deus e na Sua promessa.

Da mesma forma, os filhos de Abraão – aqueles que seguem seu exemplo de fé – devem fazer a obra de Abraão: obedecer ao evangelho, o mandamento de Deus, que é crer no Descendente prometido. Jesus explicou essa conexão ao confrontar os líderes judeus que alegavam ser filhos de Abraão, mas não obedeciam a Deus como Abraão obedeceu:

“Responderam, e disseram-lhe: Nosso pai é Abraão. Jesus disse-lhes: Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão.” (João 8:39).

Da mesma forma que existe a “lei das obras”, que está relacionada às práticas da lei mosaica, também há a “lei da fé”, e ambas demandam obra. O apóstolo Paulo aponta essas duas leis ao escrever:

“Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé.” (Romanos 3:27).

Se há uma “lei da fé”, é lógico e necessário que exista também a “obra da fé”, que é crer em Cristo.

“Lembrando-nos sem cessar da obra da vossa fé, do trabalho do amor, e da paciência da esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, diante de nosso Deus e Pai,” (1 Tessalonicenses 1:3).

Doar Comida e Roupa é a Obra Exigida por Tiago? 

Retornando à abordagem de Tiago, que questiona a utilidade de alguém dizer que tem fé, mas não possui obras, ele utiliza uma figura para ilustrar essa verdade: o exemplo do irmão ou irmã em necessidade de alimento diário.

“E, se o irmão ou a irmã estiverem nus, e tiverem falta de mantimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí?” (Tiago 2.15-16).

Ao apresentar essa figura, Tiago não está estabelecendo que doar comida ou roupas a um irmão ou irmã em necessidade seja, em si, a obra exigida pela fé. Interpretar essa passagem como uma recomendação de práticas assistencialistas é um equívoco, pois o tema e o contexto em que a figura é inserida não tratam de ajuda humanitária, mas da obediência a Deus.

A intenção de Tiago é utilizar a figura do irmão ou irmã necessitados como uma ilustração prática para evidenciar a inutilidade de uma fé que se limita às palavras e não se manifesta em ações. Assim como dizer a alguém em necessidade “Ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos” sem oferecer ajuda concreta é ineficaz e vazio, da mesma forma, dizer que tem fé, mas não obedecer ao evangelho, é igualmente infrutífero.

A argumentação que valida a figura apresentada por Tiago vem logo em seguida:

Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma.” (Tiago 2:17).

Da figura do irmão ou irmã necessitados, emergem elementos para compreender a obra essencial à fé. No entanto, essa figura não estabelece que a fé só é verdadeira se o cristão ajudar os necessitados. Fazer tal leitura reduz e distorce a profundidade do ensino de Tiago, desprezando o real significado do exemplo.

No contexto apresentado, o termo “obras” significa obediência ao evangelho, especificamente a execução daquilo que Deus propõe. Ser apenas ouvinte do evangelho, ou dizer que crê em Deus sem fazer o que o evangelho exige, é o que Tiago chama de fé sem obras.

Mesmo que alguém ouça o evangelho ou diga que crê, e ainda pratique atos como fazer doações rotineiras a entidades filantrópicas, isso ainda se enquadra como fé sem obras, se essa pessoa não fizer o que Deus ordena no evangelho. A verdadeira obra da fé é fazer exclusivamente aquilo que Deus exige: crer em Cristo.

Os judeus da época alegavam ter fé em Deus, mas rejeitavam a Cristo. Por isso, sua fé era sem obras. Mesmo que um judeu dissesse que tinha fé em Deus, que não fazia acepção de pessoas, e que dava esmolas aos necessitados, sua fé permanecia sem obras, pois ele não obedecia ao mandamento central de Deus: crer no Seu Filho, o Cristo.

Entre os cristãos das doze tribos da dispersão, alguns diziam ter fé, mas praticavam acepção de pessoas. Recebiam os judeus cristãos com honra, dando-lhes lugares privilegiados, enquanto desprezavam os gentios cristãos. Essa fé, segundo Tiago, era sem obras, pois violava um princípio fundamental do evangelho: a igreja é uma assembleia de iguais em Cristo Jesus, onde não há distinção entre judeu ou gentio, rico ou pobre.

A proposta central de Tiago é clara:

“Sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos com falsos discursos.” (Tiago 1:22).

Mas qual é esse falso discurso contra o qual Tiago adverte? É o ato de dizer que tem fé, mas não realizar obras, o que significa que a pessoa não é cumpridora da palavra, não é servo de Deus e não ama verdadeiramente ao Senhor.

Diante da pergunta de Tiago – “Que aproveita, meus irmãos, se alguém disser que tem fé, e não tiver obras?” (Tiago 2:14) –, alguém da comunidade poderia argumentar:

“Tu tens fé, eu tenho obras” (Tiago 2:18), como se respondesse a Tiago que era obediente, um servo obediente.

Tiago, no entanto, responde com veemência:

“Mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras.” (Tiago 2:18).

Tiago deixa claro que é impossível evidenciar que se crê em Deus sem obras, mas é plenamente possível evidenciar que crê por meio das obras, que na Nova Aliança são a manifestação visível da obediência ao evangelho.

A verdadeira fé é acompanhada por uma confissão específica que refletem essa crença. Quem tem fé em Cristo crê com o coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos e confessa com a boca que Ele é o Cristo, o Filho de Deus: (Romanos 10:9-10).

Pedro evidenciou a obra da fé ao confessar:

“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” (Mateus 16:16).

Na adversidade, Marta demonstrou a obra da fé ao responder a Jesus:

“Sim, Senhor, creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo.” (João 11:27).

A ‘obra da fé’ resulta no ‘fruto dos lábios’:

“Portanto, ofereçamos sempre por ele a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome.” (Hebreus 13:15).

 

Eu Creio é em Deus

Em sua argumentação, Tiago contrapõe o discurso daqueles que alegavam ter fé em um só Deus, trazendo à tona o cerne da questão que estava sendo combatida em sua carta:

“Tu crês que há um só Deus; fazes bem. Também os demônios o creem, e estremecem.” (Tiago 2:19).

A declaração “Há um só Deus” é o pilar central da fé judaica, conhecido no Shema Israel:

“Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor.” (Deuteronômio 6:4).

No entanto, Tiago usa esse pilar da fé judaica para contextualizar a repreensão que estava direcionando aos cristãos convertidos dentre os judeus. Ele denuncia que alguém havia se introduzido sorrateiramente entre os cristãos das doze tribos da dispersão, incitando-os a se apoiar exclusivamente na crença de que “há um só Deus” como se só dizer que crê em Deus era suficiente.

Se alguém acredita em um único Deus, faz bem, mas isso, por si só, não é suficiente. Até os demônios creem e estremecem, o que demonstra que essa fé, se não acompanhada de obediência e confiança, não surte efeito.

A verdadeira fé em Deus surte efeito quando o homem confia n’Ele e obedece ao Seu mandamento, como bem expressa o salmista:

“Sê tu a minha habitação forte, à qual possa recorrer continuamente. Deste um mandamento que me salva, pois tu és a minha rocha e a minha fortaleza.” (Salmos 71:3).

Esse mandamento de Deus é claro no evangelho: crer no Seu Filho, Jesus Cristo. Quem diz ter fé em Deus deve, no mínimo, confessar que Jesus é o Cristo, pois as Escrituras são o testemunho que Deus deu acerca do Seu Filho:

“Se recebemos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior; porque o testemunho de Deus é este, que de seu Filho testificou. Quem crê no Filho de Deus, em si mesmo tem o testemunho; quem a Deus não crê mentiroso o fez, porquanto não creu no testemunho que Deus de seu Filho deu.” (1 João 5:9-10).

Crer em Deus sem reconhecer e confessar a Cristo é rejeitar o próprio testemunho de Deus, tornando essa fé ineficaz. Declarar que tem fé em Deus, mas não apresentar a obra exigida por Ele – que é confessar que Jesus é o Cristo – resulta em uma fé inútil. Da mesma forma, afirmar que crê em Cristo, mas não discernir o corpo do Senhor – ou seja, fazer acepção de pessoas, ignorando que qualquer um que crê que Jesus é o Cristo é também filho de Deus – é igualmente uma fé vazia (1 João 5:1).

“Jesus respondeu, e disse-lhes: A obra de Deus é esta: Que creiais naquele que ele enviou.” (João 6:29).

Se não houver essa obra apontada por Cristo, que é crer n’Ele e viver em obediência ao evangelho, nenhuma outra manifestação, por mais extraordinária que seja, terá valor espiritual.

Falar em outras línguas (mesmo a língua dos anjos), possuir o dom de profecia, conhecer todos os mistérios e toda a ciência, ter toda a fé capaz de mover montanhas, distribuir fortunas aos pobres, ou até entregar o próprio corpo para ser queimado, de nada aproveitaria sem essa obra essencial.

“AINDA que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.” (1 Coríntios 13:1-3).

O amor apontado aqui por Paulo não é meramente um sentimento, mas a obediência ao mandamento de Deus, que exige crer no Filho e reconhecer o corpo de Cristo – a igreja, composta por todos os que creem. Sem essa obra, as demais ações, por mais grandiosas que pareçam, não têm significado espiritual verdadeiro.

“E este é o seu mandamento: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o seu mandamento.” (1 João 3:23).

Só tem amor ou só tem quem ama a Cristo! E quem ama a Cristo cumpre o Seu mandamento, ou seja, toma sobre si o jugo e o fardo de Cristo (Mateus 11:29-30). Assim como a fé sem obras de nada aproveita, a fé sem amor também não tem valor algum! Mas por quê?

O amor descrito pelo apóstolo Paulo não é um mero sentimento de reverência, amizade ou fraternidade. O amor evidenciado pelo apóstolo é sujeição e obediência a Cristo, que se manifesta em fidelidade à Sua vontade (João 14:15). Esse amor é exclusivo e absoluto. É um amor que não pode ser dividido entre dois senhores, pois, em sua essência, é submissão total a um só Senhor (Mateus 6:24; Lucas 16.13).
Aquele que toma sobre si o jugo de Cristo é, de fato, aquele que O ama. Estar sob o jugo de Cristo implica ser sofredor e benigno (2 Timóteo 2:24; 4:5). O servo de Cristo não alimenta inveja, não age com leviandade, nem se enche de orgulho (1 Coríntios 3:3; 1 Timóteo 6:4; Gálatas 5:26; Filipenses 2:3). Ele não é indecente, tampouco busca os próprios interesses (Filipenses 2:4). Não se irrita facilmente, não atribui intenções maliciosas, não se alegra com a injustiça, mas exulta na verdade (Efésios 4:25; 1 Timóteo 6:4).

“O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha;” (1 Coríntios 13:4-8).

O servo obediente submete-se ao seu Senhor em amor, e é por se sujeitar suporta todas as coisas (tudo sofre), crê em todas as promessas, espera com paciência e persevera em meio às dificuldades, pois quem obedece jamais falha. No amor descrito pelo apóstolo Paulo, não há espaço para vanglória, pois que mérito há em um servo se gloriar por se sujeitar ao seu Senhor? Quem ama a Cristo não busca seus próprios interesses, mas se entrega plenamente aos interesses de seu Senhor. A verdadeira obediência nunca é leviana, pois não há como disfarçar submissão.
Esta é a essência do amor:

“E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu conheço-o, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade. Mas qualquer que guarda a sua palavra, o amor de Deus está nele verdadeiramente aperfeiçoado; nisto conhecemos que estamos nele.” (1 João 2:3-5).

Ao explicar o amor, o evangelista João disse:

“No amor não há temor, antes o perfeito amor lança fora o temor; porque o temor tem consigo a pena, e o que teme não é perfeito em amor.” (1 João 4:18).

Na obediência não há lugar para o medo, pois o perfeito amor lança fora todo temor. O medo só encontra razão de existir por causa da pena estabelecida para a desobediência. Assim, quem vive com medo revela sua condição de desobediência, pois ainda não foi aperfeiçoado no amor. O verdadeiro amor, manifestado na obediência, traz segurança e confiança, afastando qualquer temor de punição.

 

Abraão justificado pelas obras

Para concluir sua exposição, Tiago apresenta um argumento final e incisivo:

“Mas, ó homem vão, queres tu saber que a fé sem as obras é morta?” (Tiago 2:20).

Aqui, Tiago se dirige a uma pessoa descrita como tola, vã, destituída da verdade. Para aqueles menos familiarizados com a linguagem dos profetas, pode parecer que Tiago estivesse irado com seus interlocutores. No entanto, expressões como ‘tolo’, ‘louco’ ou ‘vão’ eram frequentemente utilizadas pelos profetas para repreender os filhos de Israel, assim como o adjetivo ‘adúlteros’ (Tiago 4:4), empregado para denunciar a infidelidade espiritual do povo.

Tiago desafia: “Quer realmente entender que a fé sem as obras é morta?” E, em seguida, apresenta dois exemplos para corroborar sua afirmação.

“Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaque? Bem vês que a fé cooperou com as suas obras, e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada. E cumpriu-se a Escritura, que diz: E creu Abraão em Deus, e foi-lhe isso imputado como justiça, e foi chamado o amigo de Deus. Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé.” (Tiago 2.21-24).

Como entender isso? Abraão foi justificado pelas obras? Sim! Ele foi justificado pelas obras que expressaram sua fé. Sua obediência ao oferecer Isaque no altar foi a evidência concreta de sua confiança em Deus.

Abraão não tomou a iniciativa de oferecer algo a Deus; antes, foi Deus quem deu a ordem:

“E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi.” (Gênesis 22.2).

A obediência de Abraão demonstra sua total submissão à vontade de Deus. Ele amava profundamente seu único filho, Isaque, mas teve que obedecer para ser digno de Deus, conforme a exigência que Jesus mais tarde expressou:

“Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim.” (Mateus 10:37).

Essa obediência não foi uma ação isolada ou fruto de mero esforço humano. A fé de Abraão cooperou com suas obras. Ele creu, mesmo contra a promessa que Deus havia estabelecido em Isaque, confiando que Deus era poderoso para ressuscitar seu filho, se necessário:

“Sendo-lhe dito: Em Isaque será chamada a tua descendência, considerou que Deus era poderoso para até dentre os mortos o ressuscitar;” (Hebreus 11:18).

A fé de Abraão, ou seja, o ato de crer, estava enraizada na fidelidade e imutabilidade da palavra de Deus: “Em Isaque será chamada a tua descendência.” (Gênesis 21:12). Deus havia prometido que em Isaque estaria a descendência de Abraão, por meio da qual todas as famílias da terra seriam abençoadas. Essa promessa divina era o firme fundamento daquilo que ele esperava e a prova daquilo que ele não via – a essência da fé descrita em Hebreus:

“Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem.” (Hebreus 11:1).

Como a palavra de Deus é firme e imutável, Abraão creu que, mesmo diante da possibilidade de sacrifício, Deus cumpriria Sua promessa. Ele entendeu que Deus poderia ressuscitar Isaque dos mortos, e, de fato, em figura, recobrou seu filho:

“De onde também, em figura, ele o recobrou.” (Hebreus 11:19).

O que justificou Abraão foi a palavra de Deus que declarou: “Em Isaque será chamada a tua descendência.” (Gênesis 21:12). Ao crer nessa promessa divina, a fé de Abraão (sua crença) cooperou para que ele realizasse a obra de oferecer Isaque. Assim, pelas obras de Abraão, sua fé foi aperfeiçoada, demonstrando a união entre crer e obedecer.

Por meio dessa obra, cumpriu-se a Escritura que afirma: “E creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.” (Gênesis 15:6), e, por esse motivo, ele foi chamado “amigo de Deus” (Tiago 2:23). Ser chamado amigo de Deus requer a mesma disposição de Abraão: submeter-se como servo fiel, confiando plenamente em Deus, mesmo quando aquilo que se espera é colocado à prova. Abraão creu em Deus mesmo quando lhe foi exigida sua maior esperança, pois ele confiava na fidelidade de Aquele que havia prometido.

“Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando.” (João 15:14);

“Se me amais, guardai os meus mandamentos.” (João 14:15).

O termo “amigo”, atribuído a Abraão, remete aos escravos ladinos, aqueles que, por estarem constantemente aos pés de seu senhor, conheciam profundamente sua vontade e se dedicavam fielmente a ela. Esse conceito reforça a ideia de intimidade e obediência absoluta que Abraão tinha em relação a Deus.

Tiago é explícito ao afirmar que o homem é justificado quando obedece a Deus, e não apenas por dizer que possui fé. Para ele, a fé verdadeira se manifesta em obras, demonstrando a autenticidade da crença pela obediência. Já o apóstolo Paulo, ao declarar que o homem é justificado pela fé, tem como referência o evangelho, a manifestação da fé revelada aos homens na pessoa de Cristo (Gálatas 3:23; Judas 1:3).

Quando Paulo ensina que o homem é justificado pela fé, ele aponta para a fé no evangelho, a palavra firme e imutável de Deus, pela qual o justo viverá. Essa fé, que encontra seu fundamento na promessa divina e se cumpre plenamente em Cristo demanda crer que Jesus é o Cristo.

“Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé.” (Tiago 2:24).

O último exemplo que Tiago utiliza para reforçar seu argumento é o de Raabe, a meretriz:

“E de igual modo Raabe, a meretriz, não foi também justificada pelas obras, quando recolheu os emissários, e os despediu por outro caminho? Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta.” (Tiago 3:25-26).

Semelhante a Abraão, Raabe, uma estrangeira e considerada impura aos olhos dos judeus, foi justificada pelas obras. Ao ouvir acerca dos feitos de Deus por meio do povo de Israel, ela creu no Senhor. Suas palavras aos espias demonstram essa fé:

“E disse aos homens: Bem sei que o SENHOR vos deu esta terra e que o pavor de vós caiu sobre nós, e que todos os moradores da terra estão desfalecidos diante de vós. Porque temos ouvido que o SENHOR secou as águas do Mar Vermelho diante de vós, quando saíeis do Egito, e o que fizestes aos dois reis dos amorreus, a Siom e a Ogue, que estavam além do Jordão, os quais destruístes. O que ouvindo, desfaleceu o nosso coração, e em ninguém mais há ânimo algum, por causa da vossa presença; porque o SENHOR vosso Deus é Deus em cima nos céus e em baixo na terra.” (Josué 2:9-11).

Raabe creu porque “a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Romanos 10:17). Sua fé em Deus a levou a agir de forma ousada, escondendo os espias e garantindo sua fuga, mesmo sob risco de vida.

Além disso, quando os espias lhe deram a palavra de que ela e sua família seriam poupados se colocassem uma fita vermelha na janela, Raabe não permaneceu apenas declarando: “Tenho fé em Deus.” Antes, ela obedeceu e prontamente colocou a fita, demonstrando que sua fé era ativa e acompanhada de obras que confirmavam sua confiança.

Tiago conclui sua exposição, que começou no primeiro capítulo, reafirmando a ligação inseparável entre fé e obras:

“Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta.” (Tiago 2:26).

 

O propósito da epístola de Tiago

Tiago escreveu sua epístola com o propósito de alertar os judeus cristãos dispersos entre os gentios sobre a importância de fazer uma boa profissão de fé. O maior desafio que esses judeus cristãos enfrentavam não vinha dos costumes gentílicos, mas de alguns judeus que, embora se declarassem cristãos, infiltravam-se nas comunidades e enfatizavam a crença em um único Deus, sem, contudo, confessar que Jesus é o Cristo.

Nesse contexto, Tiago ressalta o significado profundo da fé no hebraico, ‘emuná’, que carrega em si a ideia de verdade, fidelidade e firmeza, conceitos que estão intimamente ligados à obediência e confiança. Para Tiago, quem confia verdadeiramente em Deus professa que Jesus é o Cristo, pois esse é o testemunho claro das Escrituras.

Um erro comum de interpretação é a ideia de que “não se obedece para ser salvo; obedece-se porque foi salvo e porque não se deseja comprometer a salvação recebida graciosamente de Deus”. Contudo, Tiago e outros textos bíblicos deixam claro que a salvação exige obediência ao evangelho de Cristo.

O autor de Hebreus afirma isso diretamente:

“E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna salvação para todos os que lhe obedecem;” (Hebreus 5:9).

Além disso, o apóstolo Paulo adverte sobre o juízo que virá sobre aqueles que não obedecem ao evangelho:

“Como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo;” (2 Tessalonicenses 1.8).

Obedecer ao evangelho, que é a fé entregue aos santos (Judas 1:3), constitui a obra essencial para quem declara ter fé. Quem crê em Cristo, a fé manifesta (Gálatas 3:23), já realizou a obra exigida por Deus (João 6:29).

Obedecer ao evangelho, a fé dada aos santos, é a obra a ser realizada por quem diz ter fé. Quem crê em Cristo, a fé manifesta (Gálatas 3.23), já realizou a obra estabelecida por Deus (João 6.29), portanto, tem fé (evangelho) e obras (obediência).

Portanto, aquele que possui fé (evangelho) e demonstra obras (obediência) está em harmonia com o que Deus requer. Esse crente entrou no descanso de Deus, tal como Deus descansou após sua obra:

“Porque aquele que entrou no seu repouso, ele próprio repousou de suas obras, como Deus das suas.” (Hebreus 4.10).

Assim, quem crê na fé manifesta, proclamada em todo o mundo (Romanos 1:8), descansa plenamente em Deus. Ele está assentado nas regiões celestiais em Cristo (Efésios 1:3; 2:6), tendo realizado a obra de Deus ao obedecer ao evangelho e viver em conformidade com a fé que professa. Esse é o verdadeiro descanso: o repouso na confiança plena e na obediência ativa ao plano redentor de Deus.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

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