O debate em Romanos 6 não é sobre um papel “ativo” do cristão em sua santificação, mas sobre a nova relação do salvo com Deus na condição de servo. Essa nova condição é clara: os salvos em Cristo foram libertos do pecado e feitos servos de Deus (Romanos 6:22).
O que é a santificação?
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“Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção;” (1 Coríntios 1:30).
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“Porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus.” (1 Coríntios 6:20).
A santificação é um dos temas mais profundos e centrais da doutrina cristã, mas, infelizmente, muitas vezes é reduzida a conceitos humanos que giram em torno de moralidade ou comportamento. É comum associar a santificação ao esforço humano para se afastar do pecado, dedicar-se a Deus ou transformar o próprio caráter. Embora esses aspectos sejam relevantes no contexto da mordomia cristã, eles não representam a verdadeira essência da santificação.
Na perspectiva bíblica, a santificação é um ato divino, não um esforço humano. Ela é realizada por meio do lavar regenerador da palavra de Deus e firmada no sangue da Nova Aliança. Essa dádiva o homem alcança por crer em Cristo Jesus (Atos 26:18; Hebreus 10:29). É em Cristo, e somente n’Ele, que o crente é santificado (1 Coríntios 1:2; 6:11). A santidade do crente reflete a vontade de Deus, cumprida por Cristo em Sua obediência plena e entrega sacrificial. Por meio de Sua única oferta, Cristo aperfeiçoou para sempre os que são santificados (Hebreus 10:10,14).
A santificação é realizada, em termos práticos, por meio do “espírito”, que é a palavra de Cristo. O próprio Jesus afirmou que Suas palavras são espírito e vida, com o poder de purificar aqueles que as recebem (João 6:63; 13:10; 15:3). Essa verdade é expressa de forma sublime pelo apóstolo Paulo ao descrever a obra de Cristo em relação à Igreja:
“Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível.” (Efésios 5:25-27)
Cristo santifica a Igreja – composta por cada crente – ao purificá-la com a “lavagem da água pela palavra”. Esse lavar não é apenas simbólico, mas representa uma nova criação operada pelo poder do evangelho. É por meio dessa obra regeneradora que os que creem em Cristo são feitos novas criaturas (Hebreus 13:12). Sem o novo nascimento – pela água e pelo espírito – não há santificação, e sem santificação não há salvação (João 3:5-6).
“Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do SENHOR, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do espírito, e fé da verdade;” (2 Tessalonicenses 2:13).
Paulo explica aos cristãos de Tessalônica que Deus escolheu conceder aos cristãos a salvação, que é realizada por meio da santificação operada pela palavra do evangelho. No entanto, para se tornar participante dessa salvação, é imprescindível crer na verdade. A fé na verdade do evangelho é o meio pelo qual o crente acessa a obra santificadora do espírito, sendo assim criado de novo e reconciliado com Deus.
Santificação e salvação são inseparáveis. A santificação é realizada pela palavra – que é espírito – e pela fé em Cristo, que é crer na verdade. Assim, ser ministro do Novo Testamento significa ser ministro do espírito (2 Coríntios 3:6). Ao proclamar o evangelho, que anuncia a paz tanto para judeus quanto para gentios, por meio dessa mensagem (por um mesmo espírito), ambos têm acesso a Deus (Efésios 2:17-18; Isaías 57:19). Jesus destacou essa realidade ao afirmar:
“Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito.” (João 3:5-6).
Pedro reafirma essa mensagem ao exortar os crentes a purificarem suas almas pelo espírito (Novo Testamento), através da obediência à verdade do evangelho. Essa verdade, que é a semente incorruptível, promove o novo nascimento e opera a santificação daqueles que creem, tornando-os participantes da natureza divina:
“Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor fraternal, não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração puro; Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre.” (1 Pedro 1:22-23)
A santificação ocorre pela obediência ao evangelho – o espírito que Deus prometeu derramar sobre toda carne (Joel 2:28). Cristo foi ungido para anunciar essa mensagem, e Sua palavra proclama o tempo aceitável de Deus (Isaías 61:1-2). É pelo poder regenerador contido na palavra de Deus que o homem é batizado na morte de Cristo. Quando a pessoa obedece ao evangelho e crê em Cristo, o velho homem é crucificado e morto. Esse mesmo poder traz à existência uma nova criatura, participante da natureza divina, pois a semente de Deus permanece nela. Essa nova criação resulta em um novo ser, separado para Deus, e, por isso, santo. Pertencente a Deus, essa pessoa será utilizada conforme o propósito eterno estabelecido em Cristo, que é a preeminência dEle em todas as coisas.
Quando Ocorre a Santificação?
A Bíblia apresenta a santificação como uma condição inerente ao salvo em Cristo. Não é algo que ocorreu no passado, está acontecendo no presente ou continuará no futuro de forma progressiva. A santificação acontece no exato momento em que uma pessoa aceita Jesus como seu Salvador, conforme as Escrituras. Nesse instante, ela é santificada, ou seja, é adquirida e passa a pertencer a Deus. Essa aquisição não se dá de forma parcelada, como um pagamento a prazo, mas de maneira completa e definitiva.
A santificação não deve ser compreendida como o ato de a pessoa dedicar algo a Deus, mas como a realidade de ter sido adquirida por Ele e agora pertencer exclusivamente a Ele, seja na condição de servo ou como um vaso para Seu uso exclusivo. Ela não se refere a uma obra da redenção que ocorre de forma progressiva ou em constante evolução ao longo da vida do cristão. Tampouco é um processo que envolve cooperação entre o salvo e Deus, pois é uma obra completa e exclusiva da graça divina, realizada no momento da regeneração.
Nesse ponto, Wayne Grudem, em sua Teologia Sistemática, erra ao afirmar:
“Santificação é uma obra progressiva de Deus e dos crentes que nos torna cada vez mais livres do pecado e semelhantes a Cristo em nossa vida presente” Grudem, Wayne A. Teologia sistemática / Wayne Grudem ; tradução de Norio Yamakami…[et al]. — 2. ed. rev. ampl. — São Paulo : Vida Nova, 2022. P. 1016.
Esse equívoco decorre da interpretação inadequada de passagens como Tito 3:5, que menciona o “lavar da regeneração”. Muitos consideram erroneamente que a regeneração implica uma mudança moral. No entanto, a regeneração está diretamente ligada ao batismo na morte de Cristo, quando o velho homem é crucificado e o corpo do pecado é destruído, para que o crente em Cristo não mais sirva ao pecado (Romanos 6:4-6). Como Paulo declara, somente aquele que está morto está justificado, ou seja, livre do pecado (Romanos 6:7).
O pecado, como condição herdada de Adão, refere-se a um estado de separação de Deus transmitido a toda a humanidade devido à ofensa original. Essa condição não possui implicação moral intrínseca, pois não diz respeito inicialmente a atos ou comportamentos específicos, mas à natureza espiritual corrompida que resultou na morte espiritual. Conforme Paulo explica em Romanos 5:12, a morte passou a todos os homens porque todos pecaram em Adão. O pecado, nesse contexto, não é uma questão de escolhas morais individuais, mas da herança de uma natureza caída, que só pode ser redimida por meio de Cristo.
O lavar da regeneração refere-se ao batismo na morte de Cristo, no qual o velho homem é crucificado e o corpo do pecado é desfeito, para que o crente em Cristo não mais seja servo do pecado. Nesse processo, o evangelho atua como a água que purifica o pecador, pois, através dele, o homem é conformado à morte de Cristo, tornando-se livre de seu antigo senhor, o pecado. É exclusivamente pela morte com Cristo que o homem pode ser libertado do domínio do pecado, pois é nesse ato que a justiça divina é plenamente satisfeita e a nova vida em santidade é concedida.
Com a morte do velho homem em Cristo, Deus manifesta a Sua justiça, pois a alma que peca deve sofrer a pena, conforme estabelecido pela própria santidade divina. É somente por meio da morte com Cristo, quando o corpo do pecado é desfeito, que a justiça de Deus se une à Sua graça. Nesse ato, Deus permanece justo ao punir o pecado na cruz e, ao mesmo tempo, justificador daqueles que depositam sua fé em Cristo. Assim, a cruz reconcilia a exigência da justiça divina com a oferta da graça, garantindo a redenção e a nova vida ao crente. Deus, como justificador, traz à vida, com Cristo, novas criaturas criadas segundo a Sua vontade, em verdadeira justiça e santidade (Efésios 4:24).
Santificação, Justificação e Regeneração
A santificação ocorre simultaneamente à justificação e à regeneração. Na regeneração, Deus cria uma nova criatura santa e justa. Essa criatura é justa porque foi criada sem culpa ou condenação, e é santa porque pertence exclusivamente a Deus. Essa realidade é expressa por Paulo em 1 Coríntios 6:11:
“E é o que alguns têm sido; mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus.”
A declaração divina de justiça aplica-se exclusivamente à nova criatura, que agora vive em comunhão com o Criador e experimenta uma nova realidade, deixando para trás a velha condição. É por isso que as Escrituras afirmam que Jesus foi entregue por nossos pecados: era necessário que os servos do pecado morressem para seu antigo senhor. Da mesma forma, quando as Escrituras dizem que Ele ressurgiu para nossa justificação, revelam que é somente ao ressurgir com Cristo que o homem é declarado justo diante de Deus, plenamente reconciliado com Ele.
“O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação.” (Romanos 4:25).
Erros na visão moralizante da santificação
O erro de Wayne e outros teólogos está em interpretar a santificação como uma mudança comportamental ou moral progressiva. Essa abordagem considera a relação do homem com o pecado em termos de ações e desejos, ignorando que o pecado, na perspectiva bíblica, está enraizado na condição herdada de Adão, independente de comportamento moral (Romanos 5:12).
O evangelho não apela à moralidade humana, mas à confissão de que Jesus é Senhor e à crença em Sua ressurreição (Romanos 10:9-10). Superar práticas pecaminosas ou adotar novos padrões morais não equivale a morrer para o pecado. A libertação do pecado acontece exclusivamente por meio da doutrina do evangelho, que confere ao homem a condição de filho de Deus e o torna participante de Sua natureza divina (João 1:12; Romanos 1:16).
Enquanto o apóstolo Paulo, em Romanos 6, aborda o pecado como a natureza morta para Deus que todos os homens herdam devido à ofensa de Adão, Wayne Grudem interpreta o pecado sob uma perspectiva comportamental e moral. Quando Paulo afirma que o pecado entrou no mundo por Adão e, pelo pecado, a morte; e que pela ofensa de Adão todos pecaram (Romanos 5:12), ele está destacando que a morte, como consequência da ofensa, passou a todos os homens, sem incluir um elemento moral nessa equação.
Wayne desconsidera que é por meio do Novo Nascimento que ocorre o lavar regenerador, no qual o novo homem é gerado em Cristo, e o antigo homem, herdado de Adão, é extinto, juntamente com a sujeição ao pecado. A morte, que alcança todos os descendentes de Adão, afeta a natureza humana em sua totalidade, mas não envolve diretamente aspectos comportamentais ou morais. Na regeneração, ou novo nascimento, o que ocorre é o recebimento da vida eterna e a restauração da comunhão com Deus, que é a própria vida. Não se trata de uma mudança de caráter ou de uma transformação moral, mas de uma nova criação espiritual.
No novo nascimento, o homem recebe vida eterna, e não uma mudança de caráter ou uma transformação moral. Do ponto de vista bíblico, somente peca aquele que é escravo do pecado (João 8:34). Se uma pessoa é declarada justa por Deus, ela não pode mais ser servo do pecado, porque Cristo não é ministro do pecado (Gálatas 2:17). Como Cristo foi separado dos pecadores, os cristãos também compartilham dessa condição; ainda neste mundo, eles são como Ele é (1 João 4:17).
Regeneração: Base para Justificação e Santificação
Na regeneração, ocorrem simultaneamente a justificação e a santificação. A regeneração é uma obra exclusiva de Deus, que traz à existência uma nova criatura, santa e justa. Essa nova criatura é justa porque é criada sem culpa ou condenação, e santa porque pertence única e exclusivamente a Deus. Por isso, o apóstolo Paulo trata a santificação nos mesmos termos que a regeneração e a justificação, como aspectos inseparáveis da obra redentora de Deus, realizada plenamente em Cristo.
“E é o que alguns têm sido; mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus.” (1 Coríntios 6:11);
“Agora, pois, irmãos, encomendo-vos a Deus e à palavra da sua graça; a ele que é poderoso para vos edificar e dar herança entre todos os santificados.” (Atos 20:32).
Wayne destacou corretamente que a expressão grega *τοῖς ἡγιασμένοις* (“eles foram santificados”) refere-se a uma obra concluída no passado, cujos efeitos permanecem. Essa realidade é exemplificada pelo fato de que os discípulos foram santificados pela palavra que Jesus lhes havia falado (João 15:3). Essa santificação é ainda mais clara no episódio em que Jesus lavou os pés dos discípulos e explicou a Pedro que ele já estava limpo, mas deveria se submeter à lavagem dos pés como parte do exemplo simbólico que Jesus estava deixando para eles (João 13:5-15).
Entretanto, a ideia de Wayne de que “o passo inicial na santificação inclui uma ruptura definitiva com o amor ao pecado e seu poder hegemônico, de modo que o crente já não é regido nem dominado pelo pecado e não o ama mais”, apresenta um viés moral. Ele entende “estar morto para o pecado ou ser liberto dele” como “o poder de superar atos ou padrões de comportamento pecaminoso na vida de uma pessoa”.
Essa interpretação não está em conformidade com as Escrituras. O convite do evangelho não possui um apelo moralizante, como se observa nas conversas de Jesus com Nicodemos e com a mulher samaritana. A proposta central do evangelho é a confissão de que Jesus é o Senhor, baseada na fé de que Deus o ressuscitou dentre os mortos (Romanos 10:8-12).
“Superar atos ou padrões de comportamento pecaminoso” não é algo impossível aos homens, pois mudanças de comportamento podem ocorrer simplesmente pela adoção de uma nova filosofia de vida ou moral, ou pela influência de um grupo social. No entanto, rejeitar certas práticas contrárias à moralidade humana não equivale a morrer para o pecado. Da mesma forma, um temperamento explosivo não indica que alguém está sob domínio do pecado, assim como um temperamento calmo não significa que alguém é salvo.
A relação do homem com o pecado está vinculada à morte, consequência da ofensa de Adão. Por isso, Paulo descreve o pecado como o aguilhão da morte (1 Coríntios 15:55-56), e o autor de Hebreus afirma que o medo da morte sujeitava os homens àquele que detinha o império da morte, o diabo (Hebreus 2:14-15).
“Reorientação de desejos” ou “mudança dos desejos primordiais” não é suficiente para libertar o homem do pecado. O que o liberta é o poder contido na doutrina do evangelho (Romanos 6:17-18). Assim como havia poder no mandamento dado no Éden – no qual o homem morreria no dia em que desobedecesse – também há poder no evangelho, que concede vida eterna aos que se tornam filhos de Deus pela fé em Cristo (João 1:12; Romanos 1:16).
Contradições Teológicas Gravíssimas
Wayne sugere “em termos práticos” que é necessário defender duas afirmações:
- Os cristãos nunca serão capazes de dizer que estão completamente livres do pecado.
- Os cristãos não devem aceitar que o pecado os derrotou, como no caso de um temperamento explosivo (Wayne, 2022, p. 1018).
Se um cristão admite que não está completamente livre do pecado após crer em Cristo, isso implica em uma série de contradições teológicas graves. Tal posição de Wayne sugere que é possível a um salvo servir a dois senhores, o que é impossível, pois Jesus declarou:
“Ninguém pode servir a dois senhores” (Mateus 6:24).
Além disso, essa visão insinua que Cristo é ministro do pecado, o que Paulo rejeita enfaticamente:
“Pois, se nós, que procuramos ser justificados em Cristo, nós mesmos também somos achados pecadores, é porventura Cristo ministro do pecado? De maneira nenhuma.” (Gálatas 2:17).
Essa postura também contradiz a verdade de que o crente, mesmo neste mundo, é semelhante a Cristo:
“Nisto é aperfeiçoado em nós o amor, para que no dia do juízo tenhamos confiança; porque, assim como Ele é, somos nós também neste mundo” (1 João 4:17).
Mais ainda, admitir que o salvo em Cristo contém alguma treva contradiz o fato de que Deus é luz e que nEle não há nenhuma treva:
“Deus é luz, e não há nele treva nenhuma” (1 João 1:5);
“Qualquer que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus está nele, e ele em Deus.” (1 João 4:15).
O aspecto mais grave dessa compreensão errônea é que ela implicaria que o crente ainda pertenceria ao diabo.
“Quem comete o pecado é do diabo;” (1 João 3:8).
Essa confissão de permanência no pecado após a fé em Cristo nega a transformação operada pela regeneração e a liberdade completa que Cristo concede: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8:36). Portanto, o cristão, sendo nova criatura em Cristo, está completamente livre do pecado e vive em novidade de vida:
“Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (2 Coríntios 5:17).
Os Filhos de Deus não Pecam
“E que é manifesta agora pela aparição de nosso Salvador Jesus Cristo, o qual aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho;” (2 Timóteo 1:10).
]O apóstolo João é categórico ao afirmar: “Qualquer que permanece nele não peca; qualquer que peca não o viu nem o conheceu” e “Quem comete o pecado é do diabo, porque o diabo peca desde o princípio” (1 João 3:6, 8). Isso significa que só pertence ao diabo aquele que não viu a Deus nem o conheceu.
Essa realidade, no entanto, não pode ser aplicada aos que creem em Cristo, pois Jesus declarou: “Bem-aventurados os que não viram e creram” (João 20:29). Além disso, Ele afirmou: “Quem me vê a mim vê o Pai” (João 14:9), indicando que os que creem n’Ele têm plena comunhão com Deus.
João também reforça essa verdade ao afirmar que “qualquer que guarda a sua palavra, nele verdadeiramente o amor de Deus é aperfeiçoado; nisto conhecemos que estamos nele” (1 João 2:5). E Paulo complementa dizendo: “Mas, se alguém ama a Deus, esse é conhecido dele” (1 Coríntios 8:3).
Na frase ποιῶν τὴν ἁμαρτίαν, a forma verbal ποιῶν, traduzida como “fazendo” ou “praticando,” é um particípio presente ativo, nominativo singular masculino. Nessa construção, o particípio funciona como um adjetivo ou substantivo, descrevendo alguém que realiza uma ação de maneira contínua ou habitual. O substantivo ἁμαρτίαν, traduzido como “pecado,” está no singular e no caso acusativo, servindo como objeto direto do particípio ποιῶν.
A frase ποιῶν τὴν ἁμαρτίαν descreve mais do que uma ação pontual de cometer pecado; ela retrata um estado contínuo ou habitual que define o indivíduo. O uso do particípio presente ativo (ποιῶν) sugere que a pessoa mencionada não está simplesmente envolvida em atos isolados de transgressão, antes vive sob uma condição permanente de sujeição ao pecado. Essa perspectiva está em harmonia com as palavras de Jesus registradas por João:
“Todo aquele que comete pecado é servo do pecado” (João 8:34).
João não limita sua abordagem à ideia de persistência ou intenção em cometer atos contrários à moral humana, mas descreve um estado profundo de separação de Deus, no qual o pecado domina a totalidade do ser humano. O uso de ἁμαρτίαν vai além da concepção grega de “errar o alvo”; ele aponta para a realidade de que todo o indivíduo, em sua essência, está comprometido pelo pecado.
A perspectiva de João reflete diretamente as palavras de Jesus registradas por ele: “Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado.” (João 8:34). Aqui, Jesus não trata o pecado como atos isolados, mas como um estado ou condição que define o indivíduo. Ser “servo do pecado” não é apenas uma consequência de cometer pecados, mas a própria condição que caracteriza o homem como alguém que peca. Essa ideia enfatiza que o pecado não surge apenas de escolhas momentâneas, mas de uma sujeição contínua que molda o ser humano em sua totalidade.
O uso do termo ἁμαρτίαν (hamartían) neste contexto transcende a noção grega simplificada de “errar o alvo” (hamartía), frequentemente limitada a uma falha técnica ou moral. João apresenta o pecado como algo que afeta o próprio indivíduo em sua essência. Para que alguém “erre o alvo,” todo o seu ser está comprometido: o movimento do corpo, a angulação do arremesso e o momento de soltar a lança estão corrompidos. Assim, não é apenas a falha no objetivo final que caracteriza o pecado, mas o fato de que o indivíduo inteiro opera sob a influência do ἁμαρτίαν.
Essa visão amplia a compreensão do pecado como uma separação de Deus que envolve todo o ser humano, e não apenas a falha pontual de não atingir um objetivo moral ou espiritual. O pecado, portanto, não é apenas o resultado de uma escolha errada, mas uma condição profunda decorrente da morte que passou a todos os homens que os torna alienados de Deus. É essa condição que Jesus destaca ao afirmar que o pecado faz do homem um escravo, por ser o aguilhão da morte.
João, ao escrever sobre o pecado, não está enfatizando a conduta moral dos cristãos, como faz Tiago ao declarar que “todos tropeçam em muitas coisas” (Tiago 3:2). Em vez disso, João apresenta uma perspectiva mais profunda e essencial: ele descreve a nova natureza dos nascidos de Deus. Aqueles que foram regenerados possuem a semente divina, e essa transformação fundamental os torna incapazes de viver sob o domínio do pecado. Como João afirma de forma categórica em 1 João 3:9: “Todo aquele que é nascido de Deus não comete pecado.”
Quando João afirma: “Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado” (1 João 3:9), ele enfatiza que os filhos de Deus não mais estão sob o domínio ou a escravidão do pecado. Esse argumento reflete a nova natureza que possuem aqueles que são gerados de novo. Os nascidos de Deus, ao receberem a semente divina, são libertos da servidão ao pecado e vivem em novidade de vida, como Paulo também declara:
“Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça” (Romanos 6:14).
O raciocínio de João encontra um paralelo interessante no relato histórico-filosófico de Helena de Teodecto, mencionado por Aristóteles em sua obra Política. Nessa referência, Helena, filha dos deuses segundo a mitologia grega, rejeita ser chamada de escrava, dizendo:
“Escrava, eu? Que homem tão audacioso poderia chamar assim uma filha dos deuses.”
Esse exemplo literário ilustra bem o argumento teológico de João. Assim como Helena argumenta que sua ascendência divina a exclui da condição de escrava, João afirma que a filiação divina, conferida aos nascidos de Deus, os livra do domínio do pecado. A lógica é a mesma: a condição e a identidade de quem nasceu de Deus são incompatíveis com a escravidão ao pecado, pois, como filhos de Deus, eles são separados, santificados e participantes da natureza divina.
Para João, é impossível que os filhos de Deus estejam sob o poder do pecado. Esse estado de sujeição é característico apenas daqueles que ainda são servos do pecado, enquanto os nascidos de Deus não podem pecar porque foram gerados por Deus e a semente divina permanece neles (1 João 3:6). Esse conceito não se refere a uma perfeição moral ou ausência de erros momentâneos, mas a uma impossibilidade de estar vivo para o pecado. O pecado, no pensamento joanino, é incompatível com a nova condição espiritual dos que permanecem em Cristo.
Assim, João contrasta radicalmente a condição dos servos do pecado com a dos filhos de Deus, evidenciando que a regeneração vai além da perspectiva de mudança de comportamento, mas que se refere a uma nova criação. Por isso, o nascido de Deus vive em comunhão com Ele e está livre do domínio do pecado, pois é um novo ser gerado de Deus.
Vale destacar na frase πᾶς ὁ ἐν αὐτῷ μένων οὐχ ἁμαρτάνει, traduzida como “Qualquer que permanece nele não peca”, que o verbo μένω, particípio presente ativo, nominativo singular masculino, significa “permanecendo” ou “aquele que permanece”. Essa forma verbal remete ao conceito de “ser uma nova criatura” mencionado em 2 Coríntios 5:17.
Por sua vez, o verbo ἁμαρτάνω, presente ativo indicativo, terceira pessoa do singular, é traduzido como “peca” ou “comete pecado”. No presente do indicativo no grego, não há distinção entre as formas “eu peco” e “eu estou pecando”. Essa conjugação verbal, que pode corresponder ao presente ou ao gerúndio na língua portuguesa, é utilizada para expressar:
- Uma ação que ocorre no momento da fala.
- Uma ação habitual ou contínua.
- Uma verdade atemporal.
- Características do sujeito.
- Ações que acontecerão em um futuro próximo.
Considerando o contexto no qual essa frase está inserida, percebe-se que João não está se referindo a uma ação no momento da fala, uma ação habitual ou continua e nem a ações que acontecerão em um futuro próximo, antes ele descreve a condição da nova criatura, ou seja, a característica do sujeito e expressa uma verdade atemporal.
Além do mais, na frase πᾶς ὁ ἐν αὐτῷ μένων οὐχ ἁμαρτάνει, a partícula οὐχ funciona como um advérbio de negação, uma vez que modifica o verbo ἁμαρτάνει (peca) para expressar que a ação descrita não ocorre. A partícula οὐχ atua como um advérbio porque modifica diretamente o verbo ἁμαρτάνει, negando a possibilidade da ação. É usada para expressar negação direta e objetiva, indicando algo que não acontece ou não é verdadeiro. Isso a distingue de outras partículas gregas de negação, como μή, que frequentemente expressam negação subjetiva, condicional ou em contextos diferentes, como subjuntivo ou imperativo.
O Enunciados Joaninos e os Princípios da Lógica
O encadeamento lógico das expressões utilizadas por João está cuidadosamente estruturado para comunicar uma verdade que atende aos três princípios básicos da lógica clássica, conferindo clareza e coerência às suas afirmações.
- Princípio da identidade:
- Esse princípio estabelece que algo é igual a si mesmo: “Uma mesa é uma mesa” ou “Um livro é um livro.”
- Em 1 João 3:6, quando João afirma: “Todo aquele que permanece nele não peca”, ele identifica claramente o estado do indivíduo que está em Cristo como incompatível com o pecado. Essa proposição define a natureza dos que permanecem em Cristo de forma inequívoca, assegurando a identidade entre permanecer em Cristo e não estar sujeito ao pecado.
- Princípio da não contradição:
- Esse princípio afirma que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo e no mesmo sentido.
- João evita qualquer contradição ao apresentar verdades absolutas: “Quem permanece em Cristo não peca” (1 João 3:6) e “Quem comete pecado não o viu nem o conheceu.” Essas proposições são logicamente consistentes, excluindo a possibilidade de uma pessoa permanecer em Cristo e, ao mesmo tempo, estar sob domínio do pecado.
- Princípio do terceiro excluído:
- Esse princípio determina que uma proposição deve ser verdadeira ou falsa; não há terceira possibilidade.
- A estrutura dos argumentos de João exemplifica isso de maneira clara. Por exemplo, ele coloca as pessoas em duas categorias: ou permanecem em Cristo e não pecam, ou vivem no pecado e não conhecem a Deus. Não há espaço para uma condição intermediária, reforçando o caráter absoluto das verdades espirituais que ele comunica.
Integração dos princípios na teologia de João:
João utiliza esses princípios lógicos para transmitir verdades espirituais de forma acessível e irrefutável. A lógica serve como um alicerce para sua teologia, destacando que a comunhão com Deus transforma a essência do ser humano. Essa abordagem não apenas reforça a clareza de sua mensagem, mas também assegura que suas proposições resistam a interpretações contraditórias ou ambíguas. Assim, a estrutura lógica do pensamento de João sustenta a coerência interna de suas afirmações, alinhando-se aos princípios fundamentais do evangelho de Cristo.
A essência do que João apresenta está em 1 João 3:3:
“E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro.”
Quem tem esperança em Cristo de ser semelhante a Ele em Sua manifestação gloriosa purificou-se a si mesmo (Colossenses 3:4). Isso não significa que a pessoa deva purificar-se abandonando práticas consideradas contrárias a moral humana, mas que a esperança em Cristo resulta, objetivamente, na purificação proporcionada pela lavagem da regeneração (Tito 3:5).
A verdade apresentada em 1 João 3:3 é reafirmada em 1 João 3:7, configurando um tipo de paralelismo: assim como Cristo é simultaneamente puro e justo, aquele que deposita sua esperança n’Ele purifica-se a si mesmo ao praticar a justiça que vem pela fé, tornando-se, dessa forma, também puro e justo, tal qual Ele é (Romanos 4:13; 5:17; Filipenses 3:9).
A verdade apresentada em 1 João 3:4 é reafirmada em 1 João 3:8, configurando outro tipo de paralelismo que reforça uma ideia central: ao definir que o “pecado” é “iniquidade” ou “desobediência,” João enfatiza que quem peca também pratica iniquidade e pertence ao diabo, estando assim em igualdade de condição com ele (João 8:48).
O evangelista apresenta, de forma clara, o elemento que distingue os filhos de Deus dos filhos do diabo: a prática da justiça. Essa distinção é expressa de maneira objetiva em 1 João 3:10:
“Nisto são manifestos os filhos de Deus, e os filhos do diabo. Qualquer que não pratica a justiça, e não ama a seu irmão, não é de Deus.”
Espírito e Carne: Ambos Requer Submissão
“Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis.” (Gálatas 5:17).
A questão central nesse debate é a submissão a um senhorio, representado por duas categorias: “pecado” e “obediência”. A definição de João sobre o pecado, descrito como iniquidade ou desobediência, implica que o oposto disso, a obediência, é a prática da justiça. A relação entre pecado e iniquidade, obediência e justiça é estabelecida como uma questão sujeição, onde cada indivíduo está subordinado a um desses dois senhores.
Paulo aborda a mesma temática em Romanos 6:16-18, ao afirmar:
“Não sabeis vós que a quem vos apresentardes por servos para lhe obedecer, sois servos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça? Mas graças a Deus que, tendo sido servos do pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues. E, libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça.”
Aqui, Paulo reforça o princípio de que o senhorio espiritual define a condição do ser humano. A submissão ao pecado, determinada pela ofensa de Adão, conduz à morte. Por outro lado, a submissão à obediência, conforme a obediência de Cristo que venceu a morte, resulta em tornar-se servo da justiça, o que conduz à vida. Essa transformação não é apenas uma mudança de comportamento, mas uma mudança de senhorio: de estar sob o domínio do pecado e da morte para estar sob o domínio da justiça e da vida em Cristo.
O raciocínio lógico, conforme estruturado por proposições que se conectam, forma o que chamamos de silogismo, no qual a conclusão deriva necessariamente das premissas. No contexto das Escrituras, ao nos depararmos com proposições como “Deus é luz” (1 João 1:5) ou “Deus é justo” (1 João 1:9), assumimos a verdade objetiva dessas proposições, porque elas são fundamentadas na revelação divina e na autoridade das Escrituras.
Diferentemente da lógica formal, que não avalia a veracidade dos enunciados, mas apenas a sua validade estrutural, a teologia bíblica utiliza essas proposições como verdades absolutas e ponto de partida para a construção de raciocínios sobre Deus e a realidade espiritual. Nesse contexto, as proposições não apenas se conectam de maneira lógica, mas também servem como base para a compreensão da essência divina, de sua justiça e de seu relacionamento com a humanidade.
Considerando a mensagem que foi anunciada por Cristo aos homens, por exemplo, temos:
- Premissa fundamental: Deus é luz (1 João 1:5) – Deus é apresentado como a fonte absoluta de pureza, verdade e santidade.
- Premissa derivada: Nele não há treva alguma (1 João 1:5) – Como luz perfeita, Deus está completamente separado de qualquer contaminação, mentira ou pecado.
- Conclusão: Portanto, quem anda na luz, ou seja, em Deus, tem que ter comunhão uns com os outros (1 João 1:7) – Andar na luz implica viver de acordo com o evangelho, o que inevitavelmente conduz à comunhão com os outros que compartilham dessa mesma fé.
- Justificativa: Isso ocorre porque o que os apóstolos viram e ouviram foi anunciado para que todos pudessem ter comunhão com eles, pois a comunhão dos apóstolos é com o Pai e o Filho (1 João 1:3) – A comunhão vertical (com Deus) fundamenta a comunhão horizontal (entre os irmãos), criando uma comunidade unida pela verdade revelada em Cristo: a igreja.
Nesse caso, o raciocínio se dá com base em proposições cuja veracidade é assumida porque refletem a natureza de Deus revelada nas Escrituras. Essa abordagem contrasta com a lógica formal, que se concentra na estrutura do argumento, independentemente de as premissas serem verdadeiras. Em suma, enquanto a lógica formal busca a validade, a teologia baseada nas Escrituras busca a verdade como fundamento lógico.
O que João defende através dessas proposições no início de sua epístola encontra eco nas palavras do apóstolo Paulo:
“ROGO-VOS, pois, eu, o preso do Senhor, que andeis como é digno da vocação com que fostes chamados, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; Um só SENHOR, uma só fé, um só batismo; Um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos vós.” (Efésios 4:1-6).
Os que se Engam ao dizerem “Não Temos Pecado”
Considerando o princípio da identidade, que afirma que algo é igual a si mesmo, podemos entender que, nas proposições de João, “crer em Cristo” é diretamente identificado como a prática da justiça, sendo também a vitória que vence o mundo. Isso é evidenciado quando combinamos os ensinamentos de 1 João 5:1 e 4-5 com 1 João 2:29.
João afirma que é de conhecimento comum entre os cristãos que “todo aquele que é nascido de Deus não peca”, porque “o que de Deus é gerado”, ou seja, aquele que pela fé em Cristo agora é filho de Deus, “conserva-se a si mesmo” (1 João 5:18). Isso ocorre porque o crente possui o testemunho em si mesmo e a vida eterna; em outras palavras, a semente de Deus permanece nele (1 João 5:10, 12; 1 João 3:9). Por essa razão, ele não peca, pois é filho de Deus e não mais servo do pecado (1 João 2:3-5; 3:6).
Assim, a prática da justiça, que consiste em obedecer ao mandamento de crer em Cristo (1 João 3:23), conforme a unidade do espírito (1 João 3:4; Efésios 2:17-18) promove a comunhão entre os filhos de Deus. Todo aquele que crê em Cristo é nascido de Deus e, portanto, participante da natureza divina. Ao praticar a justiça por meio da obediência ao mandamento de crer em Cristo, o crente é justo assim como Cristo é justo, pois assim como Cristo também é nascido de Deus (1 João 2:29; 3:7).
Se os filhos de Deus não pecam, como compreender a declaração de João:
“Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós.” (1 João 1:8)?
João apresenta duas verdades complementares que, à primeira vista, podem parecer contraditórias. Os filhos de Deus são aqueles que ouviram a mensagem proclamada pelos apóstolos, que viram e ouviram que Deus é luz. Ao crerem em Cristo por meio dessa mensagem, foram purificados de todo pecado, pois Cristo veio para desfazer as obras do diabo (1 João 1:3-7; 3:5, 8). Porém, qualquer um que ouve a mesma mensagem, mas alega que não tem pecado, engana-se a si mesmo e faz de Deus um mentiroso (1 João 1:8-9).
A Resistência dos Judeus
Essa rejeição da realidade do pecado foi exemplificada pelos judeus na interação com Jesus. Quando Jesus lhes revelou que eram escravos do pecado, eles retrucaram dizendo:
“Somos descendentes de Abraão e jamais fomos escravos de ninguém” (João 8:33).
Ao se declararem filhos de Abraão, estavam implicitamente afirmando que tinham Deus como Pai e, portanto, que não eram pecadores (João 8:39, 41). Essa alegação era equivalente a dizer que não tinham pecado, contradizendo a mensagem de Cristo.
A distinção entre os filhos de Deus e os que negam o pecado:
- Os filhos de Deus reconhecem o pecado:
Os filhos de Deus são aqueles que reconheceram sua condição de pecadores e creram em Cristo, e assim, são gerados de novo e purificados de todo pecado. Para eles, a purificação é um fato consumado, porque Cristo já desfez as obras do diabo em suas vidas. Sua filiação divina implica que não mais estão sujeitos ao pecado, e por isso, não pecam. - Aqueles que negam o pecado:
Quem ouve a mensagem de que Deus é luz e afirma que não tem pecado engana-se a si mesmo e contradiz a verdade divina. Essa negação da sujeição ao pecado reflete uma postura de autojustificação, como a dos judeus que rejeitaram a oferta de Jesus de libertação do pecado e alegaram uma filiação espiritual com Deus baseada na descendência Abraão.
João não contradiz a ideia de que os filhos de Deus não pecam (1 João 3:6, 9), mas antes aponta para a necessidade de reconhecer a condição de sujeição ao pecado para que possa arrepender-se tendo em vista a chegada do reino dos céus, Cristo. Aqueles que negam a realidade do pecado, como os judeus que se recusaram a admitir sua escravidão espiritual, rejeitam a luz de Deus e permanecem nas trevas. Assim, João harmoniza a doutrina da santidade dos filhos de Deus que aceitaram a doutrina de Cristo com a necessidade universal dos descrentes reconhecerem que são pecadores e que dependem da obra redentora de Cristo.
Acerca de 1 João 1:8, declara Wayne:
“Aqui João exclui de forma explícita a possibilidade de ficarmos completamente livres do pecado em nossa vida. Na verdade, ele afirma que todo aquele que alega estar sem pecado está simplesmente enganando a si mesmo, e a verdade não está nele” (Idem).
Essa perspectiva contraria a verdade essencial das Escrituras, que afirmam que Jesus se manifestou para tirar os pecados dos que creem n’Ele. O apóstolo João declara:
Acrescentando Sentido às Palavras
Na nota de roda pé, item 3, da página 1018, Wayne dá a entender que o termo grego hagiazõ na carta aos Hebreus possui o significado de “justificado” que consta das cartas de Paulo. Ele lista três passagens: Hebreus 9:13; 10:10 e 13:12 de modo a descaracterizar a ideia de que a santificação é uma obra única que não comporta progressão.
Em Hebreus 9:13, o escritor faz uma comparação entre os rituais da Antiga Aliança e a obra de Cristo na Nova Aliança, utilizando os termos ἁγιάζω (santificar) e καθαρότης (purificar). O texto destaca que, na Antiga Aliança, o sangue de novilhos e bodes tinha a função de santificar os ofertantes, promovendo uma purificação cerimonial limitada à carne, ou seja, assegurando uma limpeza ritual temporária.
No entanto, o sangue de Cristo, infinitamente superior, não apenas santifica o crente, mas também purifica suas consciências. Essa purificação das consciências liberta os crentes da necessidade de aderir às práticas da Antiga Aliança, como os sacrifícios repetitivos, porque estas não têm mais relevância no contexto da redenção perfeita realizada por Cristo.
Em Hebreus 10:10, o termo ἁγιάζω (santificar) carrega o sentido de “tirar pecados” no contexto do sacrifício de Cristo, que, de uma vez por todas, efetua a remissão completa dos pecados daqueles que são santificados. Essa ideia é reforçada nos versículos seguintes (Hebreus 10:11, 14 e 18), onde o escritor contrasta os sacrifícios repetitivos e ineficazes da Antiga Aliança com o único sacrifício perfeito de Cristo, que não apenas tira os pecados, mas torna os salvos perfeitos diante de Deus.
Já em Hebreus 13:12, o termo santificar mantém o mesmo sentido de “tirar pecados”. O texto afirma que Jesus sofreu fora das portas da cidade para santificar o povo com o Seu próprio sangue, indicando que essa santificação é diretamente associada à purificação e remoção dos pecados pelo sacrifício expiatório de Cristo.
“No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.” (João 1:29).
Portanto, em Hebreus, o uso do termo ἁγιάζω está intrinsecamente ligado à obra expiatória de Cristo, enfatizando a remoção dos pecados e a consequente nova condição do crente em alguém que é plenamente aceitável diante de Deus. Essa abordagem difere do vocabulário de Paulo, onde justificação é o termo mais comumente usado para descrever a declaração divina de justiça sobre o crente. Em Hebreus, “santificação” é mais abrangente, englobando não apenas a posição do crente diante de Deus, mas também o resultado efetivo da purificação dos pecados por meio do sacrifício de Cristo. Assim, não há equivalência direta entre santificação em Hebreus e justificação no vocabulário paulino, uma vez que o escritor de Hebreus trata da santificação de forma mais específica e vinculada à remoção dos pecados pelo sangue de Cristo.
Wayne aponta que “ainda que o Novo Testamento fale a respeito de um início definido e claro da santificação…”, ele amalgama esse entendimento com a ideia de que “… também a enxerga como um processo que continua durante toda a nossa vida cristã”. Por fim, ele confessa: “Esse é o sentido principal em que o termo ‘santificação’ é usado na teologia sistemática e nos debates cristãos atuais”.
Por que esse é o sentido principal utilizado pela teologia sistemática e nos debates modernos? A resposta está enraizada em um caldo denso de erros e leituras equivocadas.
Primeiro, os teólogos incorrem no erro de aceitar uma interpretação equivocada oferecida por alguns lexicógrafos acerca do adjetivo grego ἅγιος (hagios). Secularmente, o termo era usado para designar algo puro, sublime, consagrado ou venerável. No entanto, ao encontrar esse termo nas Escrituras, muitos pensadores decidiram agregar a ele um elemento moral, completamente ausente em seu uso original.
Conforme Bancroft descreve:
“A raiz da qual se originam esta e outras palavras correlatas é o vocábulo grego ‘hagios’. O pensamento mais próximo da santidade de que era capaz o grego secular era ‘o sublime, o consagrado, o venerável’. O elemento moral está totalmente ausente. Ao ser adotada esta palavra nas Escrituras, entretanto, foi necessário proporcionar-lhe novo sentido. Empregando a palavra ‘santo’ em seu sentido mais elevado, quando aplicada a Deus, os melhores lexicógrafos definem-na como ‘aquilo que merece e exige reverência moral e religiosa’” (BANCROFT, Emery. H., Teologia Elementar, 3ª edição, 2001, Ed. EBR, p. 261, grifo nosso).
Entretanto, os apóstolos, ao adotar o termo ἅγιος nas Escrituras, não fizeram qualquer adendo explicativo para justificar a necessidade de um novo significado ou de um “sentido mais elevado”. Assim, concluir que o termo carrega em si a ideia de algo que “merece” ou “exige” reverência moral e religiosa não passa de presunção espúria.
Observe que a ideia de moralidade e ética para os pensadores gregos era algo recente, de modo que amalgamar moral a adotar o termo ἅγιος nas Escrituras é uma ousadia desmedida.
“A ideia de que moralidade e ética podiam ser codificadas era recente, mesmo nos dias de Aristóteles, e resultava menos de um impulso para prescrever ou pregar do que da incessante indagação de questões e proposição de soluções que caracterizavam o início da filosofia grega” MCLEISH, K. Aristóteles: a Poética de Aristóteles. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 2000, pág. 13.
Considere, por exemplo, o que Pedro escreveu:
“Mas, como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver; Porquanto está escrito: Sede santos, porque eu sou santo.” (1 Pedro 1:15-16).
Aqui, a santidade de Deus é definida como Sua distinção, pureza, venerabilidade e sublimidade, sem qualquer adição de elemento moral. Da mesma forma, o que define o cristão como santo é o fato de Deus tê-lo chamado, e não a adoção de um modo de vida específico. Santidade, nesse sentido, significa separação divina, não conformidade moral.
O que está em questão ao se nomear algo como santo é o fato de que Deus o separou para Si, destacando-o dentre os demais para pertencer exclusivamente a Ele. Santidade, nesse sentido, refere-se à separação divina, e não a um estado moral ou comportamental intrínseco.
De igual modo, Deus não chama homens perfeitos, mas requer que andem com Ele, pois é nesse relacionamento que encontram a perfeição. Essa perfeição, conforme a perspectiva bíblica, não carrega um elemento moral, mas reflete o cumprimento do propósito para o qual Deus criou e chamou o indivíduo.
“E ser-me-eis santos, porque eu, o SENHOR, sou santo, e vos separei dos povos, para serdes meus.” (Levítico 20:26);
“SENDO, pois, Abrão da idade de noventa e nove anos, apareceu o SENHOR a Abrão, e disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso, anda em minha presença e sê perfeito.” (Gênesis 17:1).
Nesse contexto, o termo “perfeito” também não carrega conotação moral. Como William Barclay explica:
“A ideia grega de perfeição é funcional. Uma coisa é perfeita quando se realiza plenamente o propósito para o qual foi planejado, projetado e feito. Na verdade, esse significado está envolvido na derivação da palavra. O adjetivo teleios é formado a partir do substantivo telos. Telos significa um fim, um propósito, um objetivo, uma meta. Uma coisa é teleios, se realiza a finalidade para a qual foi planejado, um homem é perfeito se ele percebe o propósito para o qual foi criado, e enviado ao mundo.” Barclay, W: O Estudo Diário da Bíblia Series, Rev. ed Filadélfia:. A imprensa de Westminster ou Logos.
Abraão foi chamado para andar com Deus, e, ao fazê-lo, seria considerado perfeito, pois isso estava em conformidade com o propósito divino: de sua linhagem viria Cristo.
“Porque eu o tenho conhecido, e sei que ele há de ordenar a seus filhos e à sua casa depois dele, para que guardem o caminho do SENHOR, para agir com justiça e juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que acerca dele tem falado.” (Gênesis 18:19).
Além de introduzirem conceitos inexistentes em certos termos, também encontramos erros significativos na leitura e interpretação de textos bíblicos. Aqui destacaremos dois pontos apresentados por Wayne.
Wayne argumenta que o cristão desempenha um papel “ativo” na santificação e, para sustentar sua visão, cita dois versículos: “apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos” (Romanos 6:13, cf. 19) e “apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Romanos 12:1). Ele usa esses textos como se corroborassem seu entendimento, mas uma análise mais detalhada de Romanos 6 revela algo distinto.
O capítulo 6 de Romanos trata da relação do homem com o pecado e a justiça por meio de seu corpo. Se o homem é gerado em Adão, ele estará vivo para o pecado e será escravo dele. Porém, ao morrer com Cristo, ele ressuscita com Cristo e, da mesma “massa” que antes era um vaso para desonra em Adão, Deus faz um novo homem cujo corpo agora pertence a Ele e está vivo para Deus (Romanos 9:21).
Assim como no caso de uma mulher que só perde o vínculo com o marido quando este morre (Romanos 7:2-3), o pecado domina o homem enquanto seu corpo está vivo para o pecado. Contudo, se o “corpo do pecado” é desfeito pela morte com Cristo, o homem é livre para pertencer a outro Senhor. Enquanto o homem vivia no pecado, ele estava livre da justiça (Romanos 6:20), mas, ao morrer para o pecado e viver para a justiça, espera-se que os salvos em Cristo apresentem seus corpos e membros como instrumentos de justiça (Romanos 6:16-18).
O debate em Romanos 6 não é sobre um papel “ativo” do cristão em sua santificação, mas sobre a nova relação do salvo com Deus na condição de servo. Essa nova condição é clara: os salvos em Cristo foram libertos do pecado e feitos servos de Deus (Romanos 6:22).
E como se deu essa libertação? Pela obediência à forma de doutrina entregue a eles, ou seja, o evangelho (Romanos 6:17). Não há aqui uma progressiva “colaboração” entre o salvo e Deus, mas sim a transformação completa e definitiva que ocorre quando o homem, ao crer no evangelho, é unido a Cristo em Sua morte e ressurreição.
Portanto, a apresentação dos corpos como sacrifício vivo (Romanos 12:1) ou como instrumentos de justiça (Romanos 6:13) não é uma ação ativa que contribui para a santificação, mas a expressão natural e esperada da nova vida que o crente já recebeu em Cristo, como resultado de sua libertação do domínio do pecado.
Como servir à justiça para santificação? Como ter o fruto para santificação?
Wayne destaca a resposta paulina, mas demonstra não compreendê-la, como se observa em sua interpretação de Romanos 8:13:
“Paulo percebe que somos dependentes da obra do Espírito Santo para crescer em santificação, porque afirma: ‘Se, pelo Espírito, mortificardes as práticas do corpo, vivereis’” (idem).
O que Wayne interpreta como uma obra do Espírito Santo no crescimento do cristão em santificação, na verdade, trata-se de um contraponto que Paulo faz entre a lei e o evangelho, identificados respectivamente como “carne” e “espírito”. Wayne não considera que o Novo Testamento é designado como “espírito” (2 Coríntios 3:6), enquanto os elementos da lei, como circuncisão, linhagem, nacionalidade e observância de sábados, são chamados de “carne” (Filipenses 3:4-7).
Evangelho e lei: Espírito e carne
A mensagem de Cristo, chamada de evangelho, também é conhecida como a mensagem da cruz, pregação da fé ou verdade. Em alguns contextos, onde há o exercício da confiança, é denominada “espírito”. Por outro lado, a lei é chamada de ordenanças, mandamento de Deus, ou, em suas distorções, “mandamento de homens”. O apego a esses elementos é descrito como “confiar na carne” (Filipenses 3:4; Jeremias 17:5).
Quando Paulo declara: “Nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Romanos 8:1), ele está evocando a nova condição do salvo: uma nova criatura (2 Coríntios 5:17). Estar em Cristo só é possível ao ouvir o evangelho e crer nele (Efésios 1:13), o que equivale a “viver e andar segundo o espírito” (Gálatas 5:25). Muitas vezes, as pessoas interpretam Romanos 8:1 como se “espírito” se referisse ao Espírito Santo, mas o contexto sugere que Paulo está se referindo à verdade do evangelho.
Justiça pela fé, não pela lei
A justiça de Deus só pode ser alcançada por meio da fé no evangelho (Romanos 9:30-33). Os judeus, no entanto, buscavam a justiça pela lei, apegando-se à “justiça que há na lei” (Romanos 9:31; Filipenses 3:6) e, por isso, andavam “segundo a carne” (2 Coríntios 11:18,22).
Como Paulo enfatiza:
“E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé” (Filipenses 3:9).
A verdadeira mortificação do corpo
Quando Paulo afirma em Romanos 8:13: “Se, pelo Espírito, mortificardes as práticas do corpo, vivereis”, ele não está descrevendo uma ação contínua mediada pelo Espírito Santo para o crescimento do cristão em santificação. Em vez disso, refere-se ao impacto transformador do evangelho, que liberta o crente das obras do corpo sujeito ao pecado e à lei. Assim, aqueles que vivem pelo evangelho (espírito) encontram vida, enquanto aqueles que retornam aos elementos da lei (carne) permanecem na morte espiritual.
Esse entendimento é corroborado em Gálatas 3:2-3, onde Paulo repreende os gálatas:
“Só quisera saber isto de vós: recebestes o espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo espírito, acabeis agora pela carne?”
Portanto, servir à justiça para santificação significa viver segundo o evangelho, pela fé em Cristo, abandonando a confiança na carne ou na lei. O fruto da santificação é o resultado direto da nova condição do crente como nova criatura em Cristo, estabelecida pelo poder transformador da verdade do evangelho.
Quando Paulo diz: “se o espírito daquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus habita em vós” (Romanos 8:11), ele está se referindo à “palavra do evangelho”, como descrito em Colossenses:
“A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando ao Senhor com graça em vosso coração” (Colossenses 3:16).
Se a palavra do evangelho habita no cristão, ele não é devedor à lei (carne) para viver segundo a lei. Isso porque, se os cristãos voltassem aos elementos da lei, estariam sujeitos à morte espiritual. Contudo, se pelo evangelho mortificarem as obras do corpo, que anteriormente estava sujeito ao pecado e à lei, encontrarão vida.
O protesto de Paulo aos gálatas
Quando Paulo afirma: “Só quisera saber isto de vós: recebestes o espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo espírito, acabeis agora pela carne?” (Gálatas 3:2-3), ele está protestando contra o erro dos gálatas, que haviam iniciado no evangelho (espírito) mas, influenciados pelos judaizantes, estavam retornando à carne (lei). A carne, nesse contexto, representa a confiança nos elementos externos e rituais da lei mosaica como base para justificação, em oposição à fé no evangelho.
Espírito da fé versus lei
O que Paulo aborda em Romanos 8 é a contraposição entre o espírito da fé e a lei. Ele deixa isso claro em Gálatas:
“Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. Porque nós, pelo espírito da fé, aguardamos a esperança da justiça” (Gálatas 5:4-5).
Aqui, o “espírito da fé” refere-se à confiança no evangelho, não à terceira pessoa da Trindade (o Espírito Santo). Wayne, entretanto, interpreta Romanos 8:13 como uma referência ao Espírito Santo, afirmando:
“Esse papel ativo que devemos desempenhar é indicado em Romanos 8.13, em que Paulo afirma: ‘Se, pelo Espírito, [vós] mortificardes as práticas do corpo, vivereis’. Aqui Paulo reconhece que é ‘pelo Espírito’ que somos capazes de fazer isso.”
A verdadeira mortificação do corpo
Wayne entende Romanos 8:13 como uma descrição de um papel ativo do cristão na santificação progressiva por meio do Espírito Santo. Contudo, essa interpretação ignora o contexto paulino, que enfatiza o contraste entre viver sob a lei (carne) e viver sob o evangelho (espírito).
Em Romanos 8, “andar segundo o espírito” significa viver de acordo com a verdade do evangelho, pela fé, e não sob o jugo da lei. Mortificar as práticas do corpo, nesse contexto, não é um esforço contínuo para superar comportamentos pecaminosos, mas sim uma condição que resulta da obra completa do evangelho na vida do crente. Como Paulo afirma, alcançar a justiça só é possível pela fé no evangelho, enquanto os que confiam na lei estão separados de Cristo e caíram da graça (Romanos 9:30-33; Gálatas 5:4).
Portanto, “andar segundo o espírito” e “mortificar as práticas do corpo” referem-se à nova condição do crente, estabelecida pela fé no evangelho, que o liberta da condenação e da servidão à lei. Essa liberdade não é o resultado de um esforço contínuo, mas da aceitação plena da obra redentora de Cristo, que torna o crente uma nova criatura, vivendo para Deus em novidade de vida.
Uma má leitura frequentemente conduz a outras interpretações equivocadas. É o caso da interpretação de Wayne sobre Filipenses 2:12-13, onde ele entende que o texto trata de um crescimento em santificação. Ele afirma:
“Os filipenses devem desenvolver esse crescimento na santificação e devem fazê-lo de modo solene e com reverência (“com temor e tremor”), porque o fazem na presença do próprio Deus.” (Idem).
Contudo, essa interpretação desconsidera o contexto imediato do texto. Quando Paulo diz: “De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor; Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2:12-13), ele está se referindo à obediência dos filipenses às suas recomendações dadas anteriormente, nos versos 1 a 4. Essa obediência não está relacionada a um processo de santificação progressiva, mas ao chamado para não agirem por contenda ou vanglória e para considerarem os outros superiores a si mesmos.
Desenvolver a salvação: Com temor e tremor
A obediência mencionada no texto refere-se diretamente às instruções práticas que Paulo lhes deu. Assim como eles obedeceram ao apóstolo em sua presença, ele os exorta a continuarem obedecendo em sua ausência. E como eles deveriam “operar a salvação”? Com temor e tremor.
Aqui, “temor” e “tremor” não estão ligados a uma ideia de santificação progressiva, mas remetem a várias passagens das Escrituras, onde “temor” representa a própria palavra ou ao ensino de Deus, e “tremor” simboliza a obediência prática e devida.
Considere os exemplos:
“Servi ao SENHOR com temor, e alegrai-vos com tremor” (Salmos 2:11);
“Vinde, meninos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do SENHOR” (Salmos 34:11);
“Ouvi a palavra do SENHOR, os que tremeis da sua palavra” (Isaías 66:5).
Em todas essas passagens, “temor e tremor” referem-se a uma atitude reverente em relação à palavra de Deus que resulta em obediência prática a ela, o que se espera de um servo em relação ao seu senhor.
“Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo” (Efésios 6:5);
“O filho honra o pai, e o servo o seu senhor; se eu sou pai, onde está a minha honra? E, se eu sou senhor, onde está o meu temor?” (Malaquias 1:6).
Como se opera a salvação?
A pergunta, portanto, não é “como crescer em santificação”, mas sim “como se opera a salvação?” A resposta é clara: com “temor” e ‘tremor”, ou seja, obedecendo ao mandamento de Deus. Essa obediência, no caso dos filipenses, está diretamente conectada às instruções que Paulo havia dado, especialmente sobre viverem em unidade, humildade e amor prático (Filipenses 2:1-4).
Assim, o foco de Paulo não é sugerir um processo de santificação progressiva, mas enfatizar a necessidade de uma vida de obediência consciente e reverente ao evangelho, demonstrando na prática o que significa ser salvo em Cristo.
O desejo de apresentar a santificação como um processo progressivo leva a interpretações equivocadas de textos como:
“Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hebreus 12:14).
Nesse versículo, os substantivos εἰρήνη (paz) e ἁγιασμός (santificação) não se referem a esforços contínuos do crente, mas personificam a pessoa de Cristo, que foi feito por Deus tanto a nossa paz quanto a nossa santificação:
“Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e derrubando a parede de separação que estava no meio” (Efésios 2:14);
“Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (1 Coríntios 1:30).
A sagacidade em alterar o sentido original de textos bíblicos é evidente na nota de rodapé de Wayne, onde ele afirma que o termo “salvação” em Filipenses 2:12-13 equivale “praticamente” a santificação. Essa afirmação não apenas distorce o texto, mas também revela uma leitura superficial e desconectada do contexto.
O significado de “salvação” em Filipenses 2:12-13
Quando Paulo escreve: “De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2:12-13), ele não está referindo-se à santificação, mas à obediência prática dos filipenses às instruções que já haviam recebido. A “salvação” mencionada aqui tem um sentido corporativo, relacionado à forma como a comunidade de fé deve viver em obediência e unidade, como descrito nos versos anteriores (Filipenses 2:1-4).
A palavra “salvação” (σωτηρία – soteria) em seu contexto primário refere-se ao livramento ou preservação que Deus já realizou em Cristo, e não a um processo de santificação progressiva. Paulo exorta os filipenses a viverem de acordo com a salvação que receberam, demonstrando, com temor e tremor, a obra que Deus já operou neles.
A desconexão entre “salvação” e “santificação”
Equivaler “salvação” a “santificação” nesse texto é ignorar o propósito de Paulo ao escrever aos filipenses. Em momento algum ele sugere que os crentes devem “produzir” ou “crescer” em santificação. Antes, ele enfatiza que Deus é quem opera no crente “tanto o querer quanto o efetuar”, conforme Sua boa vontade (Filipenses 2:13). A obediência prática esperada dos filipenses é uma resposta à obra completa de Deus neles, e não uma tentativa de contribuir para sua própria salvação ou santificação.
De acordo com a sua boa vontade, Deus deseja salvar a humanidade e realiza a salvação de todos aqueles que chegam ao conhecimento da verdade, conforme está escrito:
“O qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:4).
Deus não apenas deseja a salvação, mas também providencia os meios necessários para que os homens sejam reconciliados com Ele. Ele concede o Seu “temor”, que, nas Escrituras, representa a Sua palavra (Êxodo 20:20). Basta, então, que os homens respondam a esse temor com uma atitude de tremor, ou seja, com obediência sincera à palavra de Deus, para operarem a sua salvação.
Esse princípio está exemplificado em passagens como:
“Ouvi a palavra do SENHOR, os que tremeis da sua palavra” (Isaías 66:5), e;
“Vinde, meninos, ouvi-me; eu vos ensinarei o temor do SENHOR” (Salmos 34:11).
Assim, o processo de “operar a salvação” é uma resposta reverente e obediente ao chamado de Deus contido no evangelho, que, pela Sua graça, já disponibilizou todos os recursos necessários para a salvação em Cristo.
Além disso, ao reinterpretar “salvação” como “santificação”, Wayne sobrepõe um conceito progressivo ao texto, algo que não encontra respaldo no contexto imediato nem na teologia paulina mais ampla. Em passagens como Efésios 2:8-9, Paulo deixa claro que a salvação é obra de Deus, recebida pela graça mediante a fé em Cristo.
A tentativa de Wayne de associar “salvação” em Filipenses 2:12-13 a “santificação” é uma distorção que desconsidera o contexto textual e teológico. A “salvação” que Paulo menciona não equivale à santificação progressiva, mas à vivência prática de uma fé que reflete a obra já realizada por Deus. O “operar a salvação” com temor e tremor refere-se à obediência prática, com reverência, ao evangelho recebido, e não a uma construção gradual da santidade pelo esforço humano.
A personificação de Cristo em Hebreus 12:14
Cristo é a nossa paz porque, através de Sua obra redentora, reconciliou-nos com Deus e uns com os outros. Da mesma forma, Ele é a nossa santificação, porque, por meio de Seu sacrifício, somos separados para Deus e purificados de nossos pecados. Assim, Hebreus 12:14 não está exortando os crentes a desempenharem um papel ativo para alcançar a santificação, mas sim a perseverarem em Cristo, que é tanto a paz quanto a santificação de todos os que n’Ele confiam (1 Timóteo 4:16; 2 João 1:9).
A “paz” e a “santificação” mencionadas no texto não são qualidades que o crente deve produzir progressivamente, mas a evidência da obra completa de Cristo. É somente n’Ele que o crente verá o Senhor, pois Cristo é o único mediador entre Deus e os homens (1 Timóteo 2:5) e o único caminho para Deus (João 14:6).
O equívoco da interpretação ativa
Transformar Hebreus 12:14 em um apelo a um papel ativo na santificação ignora o contexto mais amplo da carta aos Hebreus, que continuamente enfatiza a obra completa de Cristo como o sumo sacerdote perfeito e o sacrifício definitivo. A santificação, nesse sentido, não é um processo contínuo, mas uma condição alcançada por meio do sacrifício de Cristo:
“Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez por todas” (Hebreus 10:10).
“Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (Hebreus 10:14).
Portanto, “seguir a paz e a santificação” significa permanecer em Cristo, em quem já temos paz com Deus (Romanos 5:1) e santificação completa. Não se trata de um esforço humano progressivo, mas de viver em fidelidade e dependência da obra perfeita de Cristo, através da qual veremos o Senhor.