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Uma mudança de concepção (metanoia) nos ouvintes de Jesus era imprescindível, pois tinham zelo de Deus, mas, como profetizou Davi, sem entendimento (Sl 53:3). Por não conhecerem a justiça de Deus, procuraram estabelecer uma justiça própria, não se sujeitando à justiça superior: a que vem de Deus.


As bem-aventuranças e o ministério de Jesus Cristo

Parte II

“E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.” (Lucas 6:20).

Introdução

Este texto é a segunda parte do artigo O Sermão da Montanha e o espírito inatingível da Lei, disponível no Portal Estudos Bíblicos. Caso não tenha lido a primeira parte desse artigo, recomendamos a leitura da primeira parte, a fim de se ter compreensão plena da exposição a seguir.

Na primeira parte do artigo, foram analisadas as beatitudes, através do registro no Evangelho segundo Mateus e, agora, daremos continuidade à análise das beatitudes, por meio do registro efetuado pelo apóstolo Lucas, com especial destaque no público alvo do discurso de Jesus.

Vale salientar que a condição de ‘pobres bem-aventurados’ não tem relação com a condição financeira do indivíduo, pois, entre os apóstolos, havia um médico e um cobrador de impostos e, mesmo assim, Jesus classificou os seus discípulos como pobres.

Se a condição ‘pobre’ bem-aventurado fosse decorrente de questões socioeconômicas, no mínimo, Lucas e Mateus seriam exceções à regra. A bem-aventurança é uma espécie de hebraísmo[1], expressão linguística muito usual nas Escrituras, como encontramos no Salmo 32:

BEM-AVENTURADO aquele cuja transgressão é perdoada e cujo pecado é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o SENHOR não imputa maldade e, em cujo espírito, não há engano” (Sl 32:1-2).

Para um judeu da época de Jesus, falar no aramaico asheré ou no grego makários (bem-estar, abençoados, felizes, bem-aventurados, ditosos, venturosos), pelo contexto, teria o mesmo efeito: seriam remetidos às exclamações enfáticas que permeiam as Escrituras.

 

O evangelista Lucas e as beatitudes

“E, descendo com eles, parou num lugar plano e, também, um grande número de seus discípulos e grande multidão de povo de toda a Judeia, de Jerusalém e da costa marítima de Tiro e de Sidom; os quais tinham vindo para ouvi-lo e serem curados das suas enfermidades, como, também, os atormentados dos espíritos imundos; e eram curados. E toda a multidão procurava tocar-lhe, porque saía dele virtude e curava a todos. E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem e quando vos separarem e vos injuriarem e rejeitarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do homem. Folgai nesse dia, exultai; porque eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim faziam os seus pais aos profetas” (Lc 6:17-23).

Enquanto o evangelista Mateus iniciou registrou o Sermão da Montanha focado na mensagem do discurso, o evangelista Lucas incluiu no registro da mensagem uma descrição do local onde o discurso foi feito, bem como dá detalhes pertinentes ao público que estava ouvindo o Mestre e quando Ele muda a abordagem, em função dos grupos de pessoas que compunham a multidão.

O evangelista Lucas narra que Jesus subiu em um monte para orar e que Ele passou a noite em oração (Lc 6:12). Quando amanheceu, chamou os seus discípulos (seguidores) e, dentre eles, escolheu doze e deu-lhes o nome ‘apóstolos’ (Lc 6:13).

Após a escolha dos doze, Jesus desceu do monte, juntamente com os apóstolos e seus discípulos, e parou em um lugar plano, onde encontrava-se uma outra grande quantidade de discípulos, juntamente com uma grande multidão de diversas regiões da Judéia, Jerusalém e da costa marítima de Tiro e Sidom (Lc 6:17).

Muitos da multidão vieram para ouvir e serem curados por Jesus, pois bastava tocá-Lo para serem livres do mal que lhes afligia (Lc 6:18-19).

O evangelista Mateus enfatiza que Jesus se assentou, ato que indicou à multidão que Ele ia falar, pois à época os mestres ensinavam assentados (Lc 4:20). O evangelista Lucas, por sua vez, evidencia que Jesus selecionou o público alvo da sua mensagem, através de um olhar: “E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres…” (Lc 6:20).

Jesus olhou para os seus discípulos e enfatizou que eles eram bem-aventurados porque o tão almejado reino dos céus pertencia aos seus seguidores. Entretanto, Jesus não falou abertamente esta verdade, antes disse: “Bem-aventurados vós, os pobres…” (Lc 6:20).

Se os discípulos eram ‘os pobres’ e aos pobres ‘pertence o reino dos céus’, certo é que os discípulos eram ditosos, venturosos, pois estavam de posse do reino dos céus – Cristo (Jo 1:12).

E o que dizia os profetas acerca do reino de Deus?

“Do aumento deste principado e da paz não haverá fim, sobre o trono de Davi e no seu reino, para o firmar e o fortificar com juízo e com justiça, desde agora e para sempre; o zelo do SENHOR dos Exércitos fará isto” (Is 9:7).

Os profetas anunciavam que o Messias seria firmado e fortificado com juízo e justiça sobre o trono de Davi. Como o reino é firmado e fortificado em juízo e justiça, e a essência do reino é o principado d’Aquele que se assenta sobre o trono de Davi, quem recebeu o rei está farto de justiça (Jo 1:12).

Os seguidores de Cristo que eram famintos, agora são ditosos, por serem fartos de justiça. A tristeza, o abatimento, foram substituídos por alegria, ou seja, eles foram consolados (Is 61:3).

Ao profetizar acerca do reino do Messias, o Salmista declarou que o rei se compadecerá do necessitado que clamar, como também do aflito e dos necessitados. O rei não fará acepção: atenderá o necessitado que clamar, de modo que todas as nações o servirão: “E todos os reis se prostrarão perante ele; todas as nações o servirão. Porque ele livrará ao necessitado quando clamar, como também ao aflito e ao que não tem quem o ajude. Compadecer-se-á do pobre e do aflito e salvará as almas dos necessitados” (Sl 72:11-13).

Quem são os pobres, aflitos e necessitados? Responde-se: – Aqueles que invocam o nome do Senhor!

“E há de ser que todo aquele que invocar o nome do SENHOR será salvo; porque no monte Sião e, em Jerusalém, haverá livramento, assim como disse o SENHOR e, entre os sobreviventes, aqueles que o SENHOR chamar” (Jl 2:32);

“Compadecer-se-á do pobre e do aflito e salvará as almas dos necessitados (Sl 72:13).

O publicano, quando orou, de pé e ao longe, no templo, portou-se como necessitado, pois invocou a Deus, dizendo: – “Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!”  (Lc 18:13). O publicano invocou o Senhor como pobre, tradução do termo grego ‘ptojói’, que remete a alguém em absoluta miséria, penúria total. Reconheceu a sua condição miserável: – ‘Sou pecador’!

E os necessitados serão livres do que? Da opressão econômica? Do descaso social? Das políticas governamentais opressoras? Das lutas de classes? Da discriminação racial? Não! Ele libertará o homem que clamar – do engano, da violência (Sl 72:14).

Mais adiante, abordaremos essas duas figuras: ‘engano’ e ‘violência’, que compõem a parábola do Salmo de Salomão.

Cristo é a pedra de tropeço, a rocha de escândalo, colocada em Israel por Deus e todo aquele que n’Ele cresse, não seria confundido. Enquanto os filhos de Israel esperavam um rei que estabelecesse um governo, o rei veio para estabelecer um santuário. Antes de restaurar o reino de Israel, Ele veio edificar um templo – a Igreja – um santuário, uma casa de oração para todos os povos: “Então ele vos será por santuário; mas servirá de pedra de tropeço e rocha de escândalo às duas casas de Israel; por armadilha e laço aos moradores de Jerusalém” (Is 8:14); “Também os levarei ao meu santo monte e os alegrarei na minha casa de oração; os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceitos no meu altar; porque a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (Is 56:7).

Os discípulos creram em Cristo – a rocha de escândalo para as duas casas de Israel (Judá e Israel) – portanto, os discípulos não foram confundidos, daí o título de bem-aventurados. Ao crerem no enviado de Deus, os discípulos estavam de posse do reino dos céus, portanto, eram fartos de justiça e consolados por Deus. Por terem recebido o grande rei, o Filho de Davi, foram feitos filhos de Deus (Jo 1:12).

Jesus frisou que os discípulos eram bem-aventurados quando odiados e quando os homens buscassem separá-los, injuriando e rejeitando-os como maus, por causa d’Ele. Quando acontecesse de serem injuriados e rejeitados, era para os discípulos não se entristecerem, antes deveriam exultar, folgar, porque a recompensa do Pai celeste seria grande (Mt 6:19-20), visto que, os filhos de Israel, no passado, também haviam perseguido os profetas de Deus.

Diferente dos escribas e fariseus que ajuntavam tesouro na terra, os discípulos, quando perseguidos, estariam ajuntando tesouro nos céus, onde a traça e a ferrugem não destroem e nem está ao alcance de ladrões (Mt 6:19, compare com Mt 5:12).

 

Peso sobre os ricos

O evangelista Lucas registrou alguns ‘ais’ anunciados por Jesus, durante a exposição do Sermão do monte e o evangelista Mateus, por sua vez, não faz esse registro. Somente no capítulo 23 o evangelista Mateus registra a censura do Senhor Jesus contra os líderes judaicos, porém, em outro contexto.

Após anunciar a venturosa alegria dos discípulos, o evangelista Lucas registra uma censura através de imprecações de ‘ais’, que Jesus fez, desfavorável a algumas pessoas que estavam ouvindo o discurso.

Seria contrassenso os discípulos serem congratulados e censurados no mesmo discurso. Os seguidores de Cristo não poderiam ser ‘pobres’ e ‘ricos’, portanto, a censura de Jesus torna evidente que o público alvo do Sermão mudou. Observe:

“Mas ai de vós, ricos! Porque já tendes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais fartos, porque tereis fome. Ai de vós, os que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis. Ai de vós, quando todos os homens de vós disserem bem, porque assim faziam seus pais aos falsos profetas” (Lc 6:24-26).

A conjunção adversativa ‘mas’ e o peso ‘ai’, indicam que Jesus deixou de falar com os seus seguidores e que o juízo que estava sendo anunciado tinha por alvo um outro grupo de pessoas. Isto significa que Jesus deixou de olhar para os seus discípulos e direcionou o seu olhar para um outro público, em meio à multidão: “E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós…” (Lc 6:20).

Para censurar certo grupo de pessoas em meio à multidão, Jesus introduz a figura do ‘rico’. Jesus estava falando da condição social de algumas pessoas em meio à multidão? Não!

Qual o significado da figura dos ‘ricos’ no discurso de Jesus?

O salmista Asafe fez uma descrição das pessoas que se enquadram no perfil dos ‘ricos’:

“3 Pois eu tinha inveja dos néscios, quando via a prosperidade dos ímpios.

4 Porque não há apertos na sua morte, mas firme está a sua força.

5 Não se acham em trabalhos como outros homens, nem são afligidos como outros homens.

6 Por isso a soberba os cerca como um colar; vestem-se de violência como de adorno.

7 Os olhos deles estão inchados de gordura; eles têm mais do que o coração podia desejar.

8 São corrompidos e tratam maliciosamente de opressão; falam arrogantemente.

9 Põem as suas bocas contra os céus e as suas línguas andam pela terra.

10 Por isso, o povo dele volta aqui e águas de copo cheio se lhes espremem.

11 E eles dizem: Como o sabe Deus? Há conhecimento no Altíssimo?

12 Eis que estes são ímpios e prosperam no mundo; aumentam em riquezas (Sl 73:3-12).

Para ler esse salmo e compreender as figuras utilizadas pelo salmista Asafe é necessário conhecimento básico de alguns recursos utilizados para a construção da poesia hebraica.

Os salmos, provérbios e a maioria das profecias são construídos através de um elemento formal denominado paralelismo. A poesia hebraica não possui rima, mas, sim, um encadeamento lógico que substitui a rima e o ritmo, que muitos chamam de “ritmo de sentido”.

O verso 3: “Pois eu tinha inveja dos néscios, quando via a prosperidade dos ímpios”, foi construído através de um paralelismo sintético (ou: formal, construtivo), em que a segunda frase do verso amplia e acrescenta um conceito à primeira frase.

Asafe, profeticamente, diz que ‘tinha inveja dos néscios’, dos loucos e, em seguida, a justificativa: por causa da prosperidade dos ímpios! Se a inveja decorre da prosperidade, certo é que os ‘néscios’ são ‘ímpios’ e vice-versa.

Tudo o que é descrito nos versos seguintes rementem aos ímpios, por conseguinte, aos néscios e/ou loucos. Daí outra pergunta? Quem são os loucos? Ou, quem são os ímpios?

Considerando o que o apóstolo Paulo asseverou: “Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus” (Rm 3:19), visto que os judeus se achavam exceção, e que o termo ‘lei’ empregado por ele engloba a lei, os profetas, os provérbios e os salmos (Escrituras), os ‘loucos’ em questão refere-se aos filhos de Israel, como foi dito por Moisés:

“Recompensais assim ao SENHOR, povo louco e ignorante? Não é ele teu pai, que te adquiriu, te fez e te estabeleceu?” (Dt 32:6).

Quando é dito no Salmo 74: “Lembra-te disto: que o inimigo afrontou ao SENHOR e que um povo louco blasfemou o teu nome” (Sl 74:18). O inimigo que afrontou ao Senhor diz da Babilônia que derribou o tempo e ateou fogo ao santuário. Já o povo louco que ‘blasfemou’ o nome do Senhor diz dos filhos de Israel, como diz o profeta: “Porque, como está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por causa de vós” (Rm 2:24).

A censura de Deus recai sobre o seu próprio povo:

“Deveras o meu povo está louco, já não me conhece; são filhos néscios e não entendidos; são sábios para fazer mal, mas não sabem fazer o bem” (Jr 4:22);

“Eu, porém, disse: Deveras estes são pobres; são loucos, pois não sabem o caminho do SENHOR, nem o juízo do seu Deus” (Jr 5:4);

“Chegarão os dias da punição, chegarão os dias da retribuição; Israel o saberá; o profeta é um insensato, o homem de espírito é um louco; por causa da abundância da tua iniquidade, também haverá grande ódio” (Os 9:7).

Retornando ao Salmo 73, o salmista descreve os ‘loucos’, ou o povo de Israel com outras figuras: a ‘soberba’ os envolvem como um colar, vestidos de ‘violência’ (Sl 73:6), ‘prosperam’ no mundo e aumentam em ‘riqueza’ (Sl 73:12).

O salmista estaria falando do acumulo de riquezas materiais? Não! A figura possui outro significado.

O que seria a violência que usam como vestimenta? O profeta Isaías responde:

“As suas teias não prestam para vestes nem se poderão cobrir com as suas obras; as suas obras são obras de iniquidade e obra de violência há nas suas mãos” (Is 59:6).

Em lugar de vestes de justiça produzidas por Deus, os ‘loucos’ se cobrem com obras de iniquidade, trapos de imundície que, diante de Deus, são obras de violência. Em lugar do espírito do Senhor (palavra), preferem a força: “E respondeu-me, dizendo: Esta é a palavra do SENHOR a Zorobabel, dizendo: Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos” (Zc 4:6).

Por que violência? Porque a palavra do Senhor na boca dos ‘loucos’ é transtornada em ‘opressão’ e ‘engano’, como se lê: “Porque desde que falo, grito, clamo: Violência e destruição; porque se tornou a palavra do SENHOR um opróbrio e ludíbrio todo o dia” (Jr 20:8).

Um exemplo de violência é trocar a obediência pelo sacrifício. Enquanto Deus requer do homem a obediência, os sacerdotes incitavam o povo ao sacrifício. Deus requer que o homem seja pobre, abatido de espírito, ou seja, que obedeça (tremer) a sua palavra, porém, cada qual seguiam os desvarios dos seus próprios corações e acabavam praticando a ‘violência’ do sacrifício, como se lê:

“Porque a minha mão fez todas estas coisas e assim todas elas foram feitas, diz o SENHOR; mas para esse olharei, para o pobre e abatido de espírito e que treme da minha palavra. Quem mata um boi é como o que tira a vida a um homem; quem sacrifica um cordeiro é como o que degola um cão; quem oferece uma oblação é como o que oferece sangue de porco; quem queima incenso em memorial é como o que bendiz a um ídolo; também estes escolhem os seus próprios caminhos e a sua alma se deleita nas suas abominações” (Is 66:2-3).

A violência de quem mata um homem é comparável à violência de quem sacrificava um boi a Deus, mas que não se sujeita a Ele.

Por toda a Escritura é utilizada a figura do rico, do violento, do mentiroso, do perverso, do maligno, etc.

“Porque os seus ricos estão cheios de violência, e os seus habitantes falam mentiras e a sua língua é enganosa na sua boca” (Mq 6:12);

“Porque o dia do SENHOR dos Exércitos será contra todo o soberbo e altivo, e contra todo o que se exalta, para que seja abatido” (Is 2:12);

“Estas seis coisas o SENHOR odeia e a sétima a sua alma abomina: Olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, o coração que maquina pensamentos perversos, pés que se apressam a correr para o mal, a testemunha falsa que profere mentiras e o que semeia contendas entre irmãos” (Pv 6:16-19).

Em função de outras passagens do Novo Testamento, verifica-se que a figura dos ‘ricos’, à época de Jesus e dos apóstolos, fazia referência aos escribas, aos fariseus e aos príncipes do povo de Israel. Os homens que condenaram e mataram a Cristo e arrastavam os seus seguidores aos tribunais eram ‘ricos’!

“Porventura, não vos oprimem os ricos e não vos arrastam aos tribunais? Porventura, não blasfemam eles o bom nome que sobre vós foi invocado?” (Tg 2:6-7).

“EIA, pois, agora vós, ricos, chorai e pranteai, por vossas misérias, que sobre vós hão de vir. As vossas riquezas estão apodrecidas e as vossas vestes estão comidas de traça. O vosso ouro e a vossa prata se enferrujaram; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós e comerá como fogo a vossa carne. Entesourastes para os últimos dias. Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram as vossas terras e que por vós foi diminuído, clama; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos do Senhor dos exércitos. Deliciosamente, vivestes sobre a terra e vos deleitastes; cevastes os vossos corações, como num dia de matança. Condenastes e matastes o justo; ele não vos resistiu” (Tg 5:1-6).

Os textos de Lucas e de Tiago contra os ricos não possuem viés marxista, não abordam lutas de classes, não visam questões trabalhistas e sindicalistas e nem dão suporte à teologia da libertação.

Os ‘ricos’ como figura nas Escrituras não são decorrentes da ordem socioeconômica com base escravocrata, não deriva do capitalismo selvagem e nem decorre de ideologias de governo, etc.

‘Rico’ é uma figura empregada pelos profetas, para fazer referência àqueles que confiavam em si mesmos, que faziam da carne a sua força e o coração se apartava do Senhor (Jr 17:5).

Os profetas na Antiga Aliança descreveram tais homens como insensatos, loucos, que ajuntavam riquezas, mas não retamente (Jr 17:11; Sl 49:5-6 e 12-13; Sl 52:7).

O profeta Amós anunciou o peso do Senhor sobre homens ímpios que estavam em repouso na cidade de Jerusalém. Que, apesar da invasão inimiga iminente por causa da transgressão em Israel, continuavam deitados em camas de marfim, comiam cordeiros e bezerros cevados, cantavam ao som da lira, bebiam vinho e se ungiam com o mais excelente óleo, mas não se afligiam pela ruina da casa de Israel (Am 6:1-7).

Apesar da aparente segurança, os que viviam uma vida regalada em Jerusalém seriam conduzidos ao exílio (Am 6:7).

A figura do ‘rico’ foi utilizada pelos profetas para compor inúmeros símiles e diversas parábolas, e é com base no que foi anunciado na lei, profetas e nos salmos, etc., que Jesus apresentou a parábola do homem rico:

“E propôs-lhe uma parábola, dizendo: A herdade de um homem rico tinha produzido com abundância; E ele arrazoava consigo mesmo, dizendo: Que farei? Não tenho onde recolher os meus frutos. E disse: Farei isto: Derrubarei os meus celeiros e edificarei outros maiores, ali recolherei todas as minhas novidades e os meus bens; E direi à minha alma: alma, tens em depósito muitos bens, para muitos anos; descansa, come, bebe e folga. Mas, Deus lhe disse: Louco! esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? Assim é aquele que para si ajunta tesouros e não é rico para com Deus” (Lc 12:16 -21).

A quem Jesus propôs a parábola do homem rico? Para entendermos a parábola, primeiro temos que identificar quem era o público alvo da mensagem, pois pela quantidade de parábolas, até mesmo os discípulos ficaram confusos e perguntaram: “Senhor, dizes esta parábola a nós, ou a todos” (Lc 12:41).

Havia ajuntado milhares de pessoas ao redor de Jesus, tanto que empurravam uns aos outros (Lc 12:1). Inicialmente, Jesus fala com os seus discípulos, utilizando o fermento com figura para alertá-los da perniciosidade contida na doutrina dos fariseus (Lc 12:1).

Mas, enquanto falava aos seus discípulos, um homem O interrompeu, rogando: – “Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança” (Lc 12:13). Após repreender o homem, deixando claro que a sua função não era de juiz ou divisor de herança, ordenou aos seus ouvintes que se abstivessem da ‘avareza’.

Seria a ‘avareza’ abordada por Jesus um dos sete pecados capitais? Jesus estava falando de quem tem excessivo apego ao dinheiro?

Ora, anteriormente Jesus havia determinado cautela para com o ‘fermento’ dos fariseus, que era a hipocrisia (Lc 12:1; Mt 16:12). Jesus não estava falando de fermento biológico ou fermento químico ou de pão feito de trigo.

Jesus, também, não estava dizendo que a hipocrisia dos escribas e fariseus se resumia em fingirem ter crenças, virtudes, ideias ou sentimentos que não possuíam.

Na verdade, Jesus estava alertando quanto ao preceito de homens que era ensinado pelos escribas e fariseus. Substituir a palavra de Deus por preceitos de homens é o que os profetas declaravam como sendo ‘hipocrisia’. Mesmo que o homem creia piamente que o seu posicionamento seja correto, se não é conforme o mandamento de Deus, é hipocrisia: “Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens” (Mt 15:9).

A ‘hipocrisia’ não diz da falsidade, dissimulação, fingimento, etc., nas relações interpessoais. Certo é que, do ponto de vista das relações humanas, a hipocrisia é perniciosa e reprovável, porém, a hipocrisia abordada por Cristo tem relação com o que foi anunciado pelos profetas:

“Porque os guias deste povo são enganadores e os que por eles são guiados são destruídos. Por isso o Senhor não se regozija nos seus jovens e não se compadecerá dos seus órfãos e das suas viúvas, porque todos eles são hipócritas e malfazejos e toda a boca profere doidices; e nem com tudo isto cessou a sua ira, mas ainda está estendida a sua mão” (Is 9:16-17);

“O hipócrita com a boca destrói o seu próximo, mas os justos se libertam pelo conhecimento” (Pv 11:9).

O ‘hipócrita’ é o que diz ‘doidices’, que em lugar de anunciar a palavra do Senhor, que satisfaz o faminto e sacia o sedento, profere o engano, preceitos de homens que não satisfazem a alma faminta por justiça: “Porque o vil fala obscenidade e o seu coração pratica a iniquidade, para usar de hipocrisia e para proferir mentiras contra o SENHOR, para deixar vazia a alma do faminto e fazer com que o sedento venha a ter falta de bebida” (Is 32:6).

Se a ‘hipocrisia’ diz da doutrina de engano, certo é que a ‘avareza’ não diz daquele que está em busca do lucro econômico mas, sim, do que busca a falsidade, seguindo o devaneio do seu coração corrompido: “E eles vêm a ti, como o povo costumava vir e se assentam diante de ti, como meu povo e ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra; pois lisonjeiam com a sua boca, mas o seu coração segue a sua avareza” (Ez 33:31); “Porque desde o menor deles até ao maior, cada um se dá à avareza; e desde o profeta até ao sacerdote, cada um usa de falsidade” (Jr 6:13).

Ter zelo de Deus, mas não ter entendimento, ou seja, o conhecimento, é o mesmo que hipocrisia e avareza (Rm 10:1-3; Pv 19:2). Não é possível servir a dois senhores, lisonjear um com a boca e o coração seguir a avareza, ou seja, servir a Deus e a Mamom: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom” (Mt 6:24).

Ninguém pode servir a Deus e seguir a sua avareza. Aquele que segue a sua ‘avareza’ elegeu o seu próprio ventre como deus. Lisonjeia a Deus com a boca, mas permanece sendo senhor de si mesmo, ou seja, não se humilha (se faz servo) debaixo das potentes mãos de Deus: “Porque, os tais, não servem a nosso Senhor Jesus Cristo, mas ao seu ventre; e com suaves palavras e lisonjas enganam os corações dos simples” (Rm 16:18).

Jesus destaca que a vida do homem não consiste na abundância de bens que possui (Lc 12:15), isso porque, as Escrituras evidenciam que a vida está em ser um abatido de espírito (Is 57:15), ou seja, alguém que se humilha a si mesmo para servir a Deus. A vida está na palavra de Deus e não no pão cotidiano (Dt 8:3).

Após Jesus anunciar que certo homem alcançou grande lucro e arrazoava consigo mesmo, que construiria celeiros maiores para poder dizer: – “Alma, tens em depósito muitos bens para muitos anos. Descansa, come, bebe e folga” (Lc 12:19) e que Deus lhe disse: – “Louco, esta noite te pedirão a tua alma. Então, o que tens preparado, para quem será?”, Jesus compara ao homem louco qualquer que ajunta tesouro na terra e não é rico para com Deus (Lc 12:21).

O homem rico da parábola é louco por não ajuntar tesouro nos céus e não por ser abastado economicamente. A parábola introduz uma similitude entre aquele que ajunta bens materiais e não sabe quem desfrutará, com aqueles que ajuntam recompensa aqui, e não são ricos para com Deus (Mt 5:19-21).

A parábola do homem rico deriva do que escreveu o Salmista Davi: “Todo homem anda como uma sombra: em vão se inquieta; amontoa riquezas, sem saber quem as levará” (Sl 39:6). O homem rico foi nomeado ‘louco’ por causa do que foi anunciado por Jeremias: “Como a perdiz, que choca ovos que não pôs, assim é aquele que ajunta riquezas, mas não retamente; no meio de seus dias as deixará e no seu fim será um insensato (Jr 17:11).

O homem rico era um insensato, um louco, pois o que estava ajuntando não o tornava rico para com Deus. O termo ‘louco’ é uma figura que se aplica aos filhos de Israel, desde Moisés: “Recompensais assim ao SENHOR, povo louco e ignorante? Não é ele teu pai que te adquiriu, te fez e te estabeleceu?” (Dt 32:6); “Atendei, ó brutais dentre o povo; e vós, loucos, quando sereis sábios?” (Sl 94:8).

Como tudo o que a lei diz, diz aos que estão debaixo da lei, ou seja, refere-se aos judeus, a figura do ‘louco’ aplica somente aos judeus, o que demonstra que a parábola do homem rico tinha como figurante um judeu (Rm 3:19). Quando é dito: “Todo homem anda como uma sombra”, o texto é inclusivo, demonstrando que os judeus não são exceção à regra, como equivocadamente achavam.

A parábola do homem rico era instrução para os discípulos, mas, como Jesus falava por parábolas ao povo e expôs um grande número de parábolas, isso trouxe um questionamento: – “Senhor, dizes esta parábola a nós, ou a todos?” (Lc 12:41).

Quando era anunciado algo à multidão, o evangelista Lucas deixou frisado: “Disse também à multidão: Quando vedes a nuvem que vem do ocidente, logo dizeis: Lá vem chuva e assim sucede” (Lc 12:54), o que evidencia a importância de se observar o público alvo da mensagem.

Retornemos às beatitudes anunciadas por Jesus aos seus discípulos, segundo o que foi registrado pelo evangelista Lucas:

“Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem e quando vos separarem, e vos injuriarem, e rejeitarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do homem. Folgai nesse dia, exultai; porque, eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim faziam os seus pais aos profetas” (Lc 6:20-23).

Após anunciar as bem-aventuranças, Jesus anuncia um peso contra algumas pessoas, em meio à multidão que estava ouvindo o discurso, ou seja, os ‘ais’ (peso) não eram em desfavor aos discípulos:

“Mas ai de vós, ricos! porque já tendes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais fartos, porque tereis fome. Ai de vós, os que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis. Ai de vós quando todos os homens de vós disserem bem, porque assim faziam seus pais aos falsos profetas” (Lc 6:24-26).

Os escribas e fariseus deviam observar que, enquanto todos os homens diziam coisas boas acerca deles, assim também fizeram no passado os filhos de Israel aos falsos profetas. Os líderes da religião judaica eram os fartos que, em breve, sentiriam o quanto eram miseráveis. Agora estavam alegres, mas em breve haveriam de se lamentar e chorar.

Após anunciar o peso do Senhor através de ‘ais’ contra os líderes da religião, Jesus se dirige à multidão, mudando o público alvo da sua mensagem novamente, dizendo: “Mas a vós, que isto ouvis…” (Lc 6:27).

Após estabelecer um contraponto entre a condição dos Seus seguidores e os mestres da religião judaica através das beatitudes e dos ‘ais’, Jesus se volta à multidão para expor a sua doutrina.

Do capítulo 6 do evangelho de Lucas, dos versos 27 em diante, o público alvo da mensagem de Cristo é a multidão que os escribas e fariseus consideravam maldita: “Mas esta multidão, que não sabe a lei, é maldita” (Jo 7:49).

 

Cristo, a lei e os profetas

“17 Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir.

18 Porque, em verdade, vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja cumprido” (Mt 5:17 -18).

O evangelista Mateus não registrou a censura dos escribas e fariseus e o evangelista Lucas, por sua vez, não registrou a relação de Cristo com a lei e os profetas. Lucas não registrou a censura e a lembrança do que foi determinado nas Escrituras e vai direto para a ordem à multidão de amar os inimigos, o que foi feito por Mateus somente a partir do verso 44 do capítulo 5.

A transição do público alvo da mensagem de Cristo é mais perceptível através do registro do evangelista Lucas, como vemos no seguinte apelo: “Mas a vós, que isto ouvis, digo: Amai…” (Lc 6:27), no entanto, essa mesma transição de público ocorre no evangelho de Mateus, quando Jesus diz: “Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas…” (Mt 5:17).

O pronome na terceira pessoa do plural ‘vós’, e a referência ao que foi dito: beatitudes e censura, indica que Jesus passou a tratar com um outro público: a multidão, deixando de fora os seus discípulos e os líderes da religião judaica (escribas e fariseus).

O público alvo da mensagem de Cristo mudou, pois ele não está mais falando da condição dos seus discípulos (pobres, tristes, mansos, puros de coração, etc.), visto que é impossível ser bem-aventurado e ter grande galardão nos céus (Mt 5:12), quando não se compreende a relação de Cristo com a lei e os profetas.

Ele também não estava falando aos escribas e fariseus (ricos, fartos, etc.), uma vez que a mensagem de Cristo dá uma solução: entrem pela porta estreita (Mt 7:13), pois qualquer que ouvisse a sua doutrina e obedecesse, seria comparável ao homem prudente que constrói a sua casa sobre a rocha (Mt 7:24).

Do capítulo 5 do evangelho segundo Mateus, versos 17 em diante, o leitor terá um discurso voltado para a multidão que, em primeiro lugar, visa esclarecer a relação de Jesus com a lei e os profetas (não vim destruir a lei e os profetas) e, em seguida, alertar que o reino dos céus estava vetado à multidão, caso não adquirissem justiça superior à justiça dos escribas e fariseus (Mt 5:20).

Lembrando que a temática da mensagem de Jesus, desde quando João Batista foi preso, era revolucionar o modo de pensar dos seus concidadãos (Mt 4:12-17), o leitor do Sermão da Montanha precisa estar cônscio de que o sermão tem o escopo de operar uma mudança de compreensão (metanoia) nos judeus.

Mas, para entender o arrependimento (metanoia) exigido por Cristo, primeiro se faz necessário compreender quem eram os judeus e o entendimento que possuíam da lei, pessoas a quem, primeiramente, Jesus foi enviado (Jo 1:11; Mt 15:24; Jr 50:6).

Para o leitor ter noção de quem eram os judeus, basta ler o capítulo 7 do livro dos Atos dos apóstolos, onde o mártir Estêvão faz um resumo preciso da origem e crescimento do povo Judeu.

Os judeus são descendentes do patriarca Abraão, um gentio que veio da Mesopotâmia, antes de fixar residência em Harã. Quando em Harã, Deus apareceu a Abraão e disse-lhe: – “Sai desta terra e dentre a tua parentela para uma terra que Eu te mostrarei” (At 7:2-3).

Abraão deixou os seus parentes e passou a peregrinar nas terras de Canaã (Gn 12:1-5). Deus não deu herança a Abraão em Canaã (At 7:5), pois Abraão viveu como peregrino na terra da promessa (Hb 11:9). Abraão não herdou terras, antes era herdeiro da seguinte promessa: “À tua descendência darei esta terra” (Gn 12:7).

Abraão gerou Isaque, segundo a promessa e Isaque gerou a Jacó e Jacó os doze patriarcas. Os patriarcas cheios de inveja venderam José como escravo, porém Deus o fez governador do Egito e tudo o que foi revelado a Abraão cumpriu-se (At 7:6-7; Gn 15:13-14).

Os filhos de Israel foram feitos escravos no Egito e Deus levantou um profeta – Moisés – e o comissionou para resgatar o seu povo do jugo da servidão, como foi revelado a Abraão. O resgate do povo foi feito com poderosa mão, sendo realizado por Deus muitos prodígios e sinais memoráveis (At 7:34-35).

Moisés profetizou que, dentre os filhos de Israel, Deus levantaria um profeta como Moisés, e que o povo deveria ouvi-Lo (At 7:37). Mas, quando Moisés subiu ao monte Sinai para falar com Deus e ficou quarenta dias e quarenta noites. O povo achou que Moisés estava demorando e que poderia ter morrido e rebelou-se, pois intentou retornar ao Egito (At 7:39).

Por causa da rebeldia do povo, Deus se afastou e os abandonou à própria sorte. Em outras palavras, o Senhor que os seguia no deserto (a pedra) e que concedeu comida e bebida espiritual ‘escondeu’ o seu rosto: “Assim se acenderá a minha ira naquele dia contra ele e desampará-lo-ei, esconderei o meu rosto dele, para que seja devorado; e tantos males e angústias o alcancem, que dirá naquele dia: Não me alcançaram estes males, porque o meu Deus não está no meio de mim? Esconderei, pois, totalmente o meu rosto naquele dia, por todo o mal que tiver feito, por se haverem tornado a outros deuses” (Dt 31:17-18; Dt 32:20; Is 64:7); “E beberam todos de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo” (1Co 10:4).

Onde há relato nas Escrituras de uma pedra que seguia os filhos de Israel no deserto e contra quem se rebelaram?

“Porque apregoarei o nome do SENHOR; engrandecei a nosso Deus. Ele é a Rocha, cuja obra é perfeita, porque todos os seus caminhos são justos; Deus é a verdade e não há nele injustiça; justo e reto é” (Dt 32:3-4 e 15).

A mesma Rocha que serviu de tropeço às duas casas de Israel, visto que os edificadores a rejeitaram (1Pe 2:6-8; Is 8:14; Is 28:16; Sl 118:22). A Rocha que os seguia é o Senhor, que escondeu o seu rosto da casa de Israel, para que aprendessem a esperar n’Ele: “E esperarei ao SENHOR, que esconde o seu rosto da casa de Jacó e a ele aguardarei” (Is 8:17), pois, só há salvação quando Deus manifesta a sua glória na face de Cristo: “Porque Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo” (2Co 4:6).

Manifestar o rosto é o mesmo que resplandecer, de modo que o resplendor da face de Deus é misericórdia e salvação: “O SENHOR faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti” (Nm 6:25); “Faze-nos voltar, ó Deus e faze resplandecer o teu rosto e seremos salvos” (Sl 80:3).

Embora os filhos de Israel oferecessem sacrifícios no deserto por quarenta anos, dizendo que serviam ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó, continuamente eram censurados e repreendidos como transgressores (At 7:42-43).

Deus não se agradou da MAIORIA deles quando percorriam o deserto por serem cobiçosos (torpe ganancia), idólatras, promíscuos (prostituíam), tentadores e murmuradores (1Co 10:5-10).

Havia em Israel aqueles que cobiçavam coisas materiais, reverenciavam outros deuses, que se prostituíam, etc., porém, havia os religiosos que diziam seguir a lei de Deus (como o fariseu que orava no templo agradecendo a Deus por não ser como os demais homens, pois não matava, não roubava, não se prostituía, etc.), e mesmo assim Deus os denominava cobiçosos, idolatras, promíscuos, etc.

Ora, todos esses comportamentos, perniciosos do ponto de vista da moral humana, foram utilizados como figuras para apontar uma realidade espiritual, assim como tudo o que sobreveio sobre Israel foi feito para a Igreja de Cristo como figura (1Co 10:6 e 11).

Moisés protestou contra Israel, dizendo:

“Porque conheço a tua rebelião e a tua dura cerviz; eis que, vivendo eu ainda hoje convosco, rebeldes fostes contra o SENHOR; e quanto mais depois da minha morte?” (Dt 31:27).

O que é a rebelião? A rebelião não é o mesmo que feitiçaria? A mesma feitiçaria que os religiosos tanto apontavam como prática reprovável entre os gentios? Que são a iniquidade e a idolatria? A iniquidade e a idolatria não são o mesmo que persistir no erro (porfiar)? O mesmo julgamento que os filhos de Israel emitiam com relação aos povos vizinhos como iníquos e idólatras, arguia contra eles por rejeitarem a palavra de Deus (Rm 2:1-3).

“Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e o porfiar é como iniquidade e idolatria. Porquanto tu rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei” (1Sm 15:23).

Ao chamar os filhos de Israel de rebeldes e de dura cerviz, Moisés estava chamando-os de feiticeiros, de iníquos e de idólatras. Por que? Ora, basta analisarmos a confissão de Neemias:

“E recusaram ouvir-te e não se lembraram das tuas maravilhas, que lhes fizeste, e endureceram a sua cerviz e, na sua rebelião, levantaram um capitão, a fim de voltarem para a sua servidão; porém tu, ó Deus perdoador, clemente e misericordioso, tardio em irar-te e grande em beneficência, tu não os desamparastes” (Ne 9:17).

Em outras palavras, os filhos de Israel, na sua ‘feitiçaria’ (rebelião), levantaram um líder tencionando voltar ao Egito. Queriam permanecer escravos, ou seja, porfiar, o mesmo que iniquidade e idolatria.

É em função da transgressão e da iniquidade que os filhos de Israel são denominados de ‘loucos’, como já vimos acima: “Os loucos, por causa da sua transgressão e por causa das suas iniquidades, são aflitos” (Sl 107:17).

Ora, a maioria das figuras utilizadas pelos profetas para censurarem os filhos de Israel, primeiramente, foram utilizadas por Moisés em seu cântico profético: loucos, dura cerviz, ignorantes, perversos, depravados, Sodoma, Gomorra, veneno, peçonha, víboras, etc. (Dt 32:5-6 e 28-29 e 32-33).

Isaías clamou contra Israel dizendo: “Ouvi a palavra do SENHOR, vós poderosos de Sodoma; dai ouvidos à lei do nosso Deus, ó povo de Gomorra” (Is 1:10). Semelhantemente, clamou Jeremias: “Deveras o meu povo está louco, já não me conhece; são filhos néscios e não entendidos; são sábios para fazer  o mal, mas não sabem fazer o bem” (Jr 4:22). Ezequiel chamou os filhos de Israel de prostituta: “Portanto, ó meretriz, ouve a palavra do SENHOR” (Ez 16:35).

As figuras utilizadas pelos profetas para falar contra os filhos de Israel eram nomes que se davam aos comportamentos desregrados, do ponto de vista de convivência social, porém, essas figuras apontavam para uma realidade espiritual.

Equivocadamente, os filhos de Israel tornaram-se moralistas, legalistas e ritualistas, reprimindo comportamentos humanos desregrados (figuras) e se esqueciam da realidade: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas” (Mt 23:23).

Dessa prevaricação surgiram judeus religiosos que percorriam o mar e a terra para tornar um gentio seguidor do judaísmo (prosélito), e, quando conseguiam, o estado do prosélito se tornava duas vezes pior do que os seus instrutores: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós” (Mt 23:15).

Como mestres, os escribas e fariseus eram prevaricadores, ou seja, os interpretes não sabiam interpretar a lei e os profetas “Teu primeiro pai pecou, e os teus intérpretes prevaricaram contra mim” (Is 43:27); “Os sacerdotes não disseram: Onde está o SENHOR? E os que tratavam da lei não me conheciam, e os pastores prevaricavam contra mim, e os profetas profetizavam por Baal e andaram após o que é de nenhum proveito” (Jr 2:8); “Lembrai-vos disto, e considerai; trazei-o à memória, ó prevaricadores” (Is 46:8); “Como o prevaricar e mentir contra o SENHOR, e o desviarmo-nos do nosso Deus, o falar de opressão e rebelião, o conceber e proferir do coração palavras de falsidade” (Is 59:13).

Os escribas e fariseus achavam que eram salvos por terem Abraão por pai e não atinavam que, somente, os que tem a mesma fé que Abraão são filhos de Abraão: “E não presumais, de vós mesmos, dizendo: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que, mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mt 3:9); “Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos Abraão por pai; porque, eu vos digo que, até destas pedras, pode Deus suscitar filhos a Abraão” (Lc 3:8); “Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e nunca servimos a ninguém; como dizes tu: Sereis livres?” (Jo 8:33); “Responderam e disseram-lhe: Nosso pai é Abraão. Jesus disse-lhes: Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão” (Jo 8:39); “Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão” (Gl 3:7).

O entendimento dos escribas e fariseus era de que bastava ser descendente da carne e do sangue de um judeu para ter direito à bem-aventurança prometida a Abraão, ou que um gentio se circuncidasse e guardasse as tradições dos anciões.

“1 E AJUNTARAM-SE a ele os fariseus e alguns dos escribas, que tinham vindo de Jerusalém.

2 E, vendo que alguns dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar, os repreendiam.

3 Porque os fariseus, e todos os judeus, conservando a tradição dos antigos, não comem sem lavar as mãos muitas vezes;

4 E, quando voltam do mercado, se não se lavarem, não comem. E muitas outras coisas há que receberam para observar, como lavar os copos, e os jarros, e os vasos de metal e as camas.

5 Depois perguntaram-lhe os fariseus e os escribas: Por que não andam os teus discípulos conforme a tradição dos antigos, mas comem o pão com as mãos por lavar?

6 E ele, respondendo, disse-lhes: Bem profetizou Isaías acerca de vós, hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, Mas o seu coração está longe de mim;

7 Em vão, porém, me honram, Ensinando doutrinas que são mandamentos de homens.

8 Porque, deixando o mandamento de Deus, retendes a tradição dos homens; como o lavar dos jarros e dos copos; e fazeis muitas outras coisas semelhantes a estas.

9 E dizia-lhes: Bem invalidais o mandamento de Deus para guardardes a vossa tradição.

10 Porque Moisés disse: Honra a teu pai e a tua mãe; e quem maldisser, ou o pai ou a mãe, certamente morrerá.

11 Vós, porém, dizeis: Se um homem disser ao pai ou à mãe: Aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta ao Senhor;

12 Nada mais lhe deixais fazer por seu pai ou por sua mãe,

13 Invalidando assim a palavra de Deus pela vossa tradição, que vós ordenastes. E muitas coisas fazeis semelhantes a estas” (Mc 7:1-13).

É em função da má leitura que se faz das Escrituras que muitos não conseguem compreender porque Saul foi rejeitado por Deus, e Davi, um homicida e adúltero, foi considerado um homem segundo o coração de Deus.

Aos olhos de Deus, Saul era feiticeiro, iniquo e idolatra, pois era um homem de torpe ganancia (queria a presença do profeta e sacerdote Samuel somente para ser honrado diante do povo), e hábil em mentir, desviar da palavra do Senhor e conceber e proferir do coração palavras falsas (1Sm 13:12; 1Sm 15:30; 1Sm 15:20 e 24-25).

Davi, por sua vez, portou-se de modo inconveniente e reprovável (2Sm 11:4 e 15), e recebendo a pena pelos seus crimes (2Sm 12:10-12). O comportamento de Davi deu azo aos inimigos de Deus blasfemarem, não só no seu tempo, pois onde a história de Davi tornar-se conhecida até hoje, questionam o Deus de Israel.

Mas, em que Davi é melhor que Saul? Errou, porque não foi instruído corretamente segundo a lei, mas quando Deus matou Uzá, de pronto buscou instrução nas Escrituras.

Certa feita os levitas receberam carros de bois, assim como os filhos de Israel receberam a arca da aliança dos filisteus sobre carros de bois, porém, à época de Moisés, somente os filhos de Coate nada receberam, pois o santuário estava a seu encargo e deveriam levá-lo sobre os ombros (2Sm 6:5-7; Nm 6:9).

Davi temeu ao Senhor e questionou como viria a ele a arca do Senhor (2Sm 6:9), e assim buscam ao Senhor segundo o que Deus prescrevera na lei (1Cr 15:2 e 12-15). No mesmo dia que trouxe a arca, Davi entregou pela primeira vez a Asafe e seus irmãos um Salmo de ações de graças ao Senhor onde ele instrui os filhos de Israel a jamais se esquecerem da aliança de Deus e das palavras que prescreveu (1Cr 16:7 e 15-17).

Ora, a multidão ao pé da montanha que estava ouvindo o discurso de Jesus era composta de judeus, descendentes do patriarca Abraão e que foram liderados por Moisés quando saíram do Egito. Desde sempre, aquela multidão foi instruída por prevaricadores que mentiam, pois concebiam e proferiam do coração palavras de falsidade dizendo que os filhos de Jacó efetivamente eram uma nação santa, um povo escolhido por Deus, pelo fato de serem descendentes da carne de Abraão: “Como o prevaricar, e mentir contra o SENHOR, o desviarmo-nos do nosso Deus, o falar de opressão e rebelião, o conceber e o proferir do coração, palavras de falsidade” (Is 59:13).

Entretanto, a Escritura que os mestres da lei liam para afirmar falsamente que os filhos de Israel eram possessão do Senhor, na verdade era condicional, pois dizia: se diligentemente ouvissem a voz de Deus e guardassem a aliança ENTÃO SERIAM propriedade peculiar: “Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar, dentre todos os povos, porque toda a terra é minha” (Êx 19:5).

As pessoas que estavam ouvindo o discurso de Jesus pensavam que eram salvas por serem descendentes da carne de Abraão (Mt 3:9; Jo 8:39). Achavam que eram mais justas e melhores que os outros povos vizinhos, simplesmente porque os seus pais receberam a lei de Deus das mãos de Moisés (Dt 9:4; Rm 3:9). Embora os seus antecessores tivessem matado os profetas que anunciavam a vinda de Cristo, eles religiosamente edificavam e adornavam os túmulos dos profetas sob pretexto de serem melhores que os seus pais (At 7:51-53; Lc 11:47-48). Eles religiosamente ouviam a lei, mas não seguiam os preceitos de Deus (At 7:53; Jo 7:19; Ml 3:7; Rm 2:13), etc.

Os ouvintes de Jesus foram instruídos a cumprir mandamentos de homens e, ao ouvirem a doutrina de Cristo, haveria conflito de ideias, pois o que Jesus haveria de ensinar não era conforme estavam acostumados a ouvir, daí o alerta de Jesus à multidão: “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas…” (Mt 5:17).

É nesse ponto que entra a questão do arrependimento, no seu sentido grego: ‘metanoia’. Quando Jesus apregoava ‘arrependei-vos’, não estava buscando uma reação emocional de pesar dos seus interlocutores por atos realizados ou não, quer fossem atos bons, por não terem sido realizados ou ruins, que foram realizados.

O arrependimento apregoado por Jesus diz da ‘metanoia’ dos gregos, ou seja, significa mudança de mente, mudança de concepção em vista de um novo conhecimento ou evento. Não é o arrependimento traduzido por ‘paenitentia’, que invoca sofrimento, fazer penitencia, pagar indulgência, etc.

A ordem era: arrependei-vos (mudem a concepção de vocês), porque é chegado o reino dos céus (a chegada do reino dos céus – Cristo – é o evento ou o conhecimento que deveriam mudar o modo de pensar dos judeus).

Como mudar a concepção de pessoas que eram acostumadas a ouvir que eram bem-aventuradas, por terem por Pai a Abraão? (Mt 3:9) Como mudar o pensamento de pessoas que estavam acostumadas a ouvir que eram filhos de Abraão e que nunca foram escravos de ninguém? (Jo 8:33) Como mudar o modo de pensar de pessoas acostumadas a ouvirem que era necessário fazer prosélitos, sob o argumento de que só assim os gentios seriam ditosos?

Jesus não podia dizer abertamente ao povo: – “Eu sou o Cristo”, por isso, Ele fez uso de parábolas, de modo que a multidão pudesse, pelas figuras utilizas no Sermão da Montanha, compreender pela Escrituras, que Ele era o Cristo: “E com muitas parábolas tais lhes dirigia a palavra, segundo o que podiam compreender. E sem parábolas nunca lhes falava (Mc 4:33-34).

Jesus não podia dizer abertamente que era o Cristo, porque quem testifica de si mesmo é mentiroso: “Se eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro” (Jo 5:31). Também era impossível os seus ouvintes reconhecerem o Cristo pela aparência, muito menos alguém iria indicá-lo: “E, interrogado pelos fariseus sobre quando havia de vir o reino de Deus, respondeu-lhes e disse: O reino de Deus não vem com aparência exterior. Nem dirão: Ei-lo aqui, ou: Ei-lo ali; porque eis que o reino de Deus está entre vós” (Lc 17:20-21).

Os sermões de Jesus visavam a mudança de concepção dos seus interlocutores, portanto, precisavam ser conduzidos genuinamente através da lei, dos profetas e dos salmos a Cristo. Para reconhecerem Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo, assim como confessou o apóstolo Pedro (Mt 16:16), os discursos de Jesus apontavam através de parábolas e figuras o testemunho (revelação) de Deus nas Escrituras.

O apóstolo Pedro confessou que Jesus é o Filho de Deus, porque Deus revelou a ele. Como? Quando? A revelação de Deus se deu pela manifestação de Cristo aos homens, conforme o testemunho das Escrituras (1Jo 5:9-11).

Não foi carne e sangue que revelou ao apóstolo Pedro que Jesus é o Filho de Deus, ou seja, não foram os seus concidadãos, os seus parentes, os judeus que deram o conhecimento necessário para o apóstolo chegar àquela confissão que lhe concedeu a bem-aventurança. ‘Carne’ e ‘sangue’ neste contesto remete a parentesco, nacionalidade: “E Simão Pedro, respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque não to revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus” (Mt 16:16-17).

Para os escribas e fariseus, a lei e os profetas estavam intimamente ligados à guarda da tradição dos anciões (Mc 7:5), consequentemente, não conseguiam entender como era possível Jesus ser um mestre judaico e comer com os publicanos e pecadores (Mt 9:11), muito menos entender como era possível os discípulos de Jesus não jejuarem (Mt 9:14). Como era possível um seguidor da lei não guardar o sábado? (Mt 12:2)

Por questões semelhantes a essas, facilmente o povo poderia entender que Jesus estava destruindo a lei e os profetas. É em função da falta de compreensão dos seus interlocutores que Jesus enfatiza qual o seu papel em relação à lei e os profetas: “Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir” (Mt 5:17).

Quando Jesus disse que veio para ‘cumprir’ a lei e os profetas, não estava enfatizando os ritos e cerimoniais da lei, antes destacou que Ele era o cumprimento da lei e dos profetas. Jesus deixou claro que nada do que constava na lei acerca d’Ele (nem um jota ou um til) deixaria de se cumprir.

Quando Jesus disse: “Vim para cumprir” (v. 17), temos que interpretar esse verso segundo essa perspectiva: “E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: Que convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos” (Lc 24:44), ou seja, nem um jota ou til deixaria de se cumprir “Porquanto vos digo que importa que em mim se cumpra aquilo que está escrito: E com os malfeitores foi contado. Porque o que está escrito de mim terá cumprimento” (Lc 22:37).

Jesus estava preparando o entendimento do povo para que pudessem compreender, que todas as promessas que constam das Escrituras, sem exceção, estavam vinculadas à pessoa de Cristo: “Porque todas quantas promessas há de Deus, são nele sim e por ele o Amém, para glória de Deus por nós” (2Co 1:20).

Jesus não veio cumprir os preceitos dos escribas e fariseus que, pela tradição oral, compõem a Mishnah ou o comentário posterior que deu origem ao Talmud. Por Ele ser a realidade, vez que a lei era sombra, não precisava guardar os sábados (dias de descansos), pois Ele é o descanso que Deus prometeu à humanidade, cujos sábados simbolizavam.

O objetivo da lei era o Cristo, pois através do nascimento, morte e ressurreição Ele é a propiciação para todo que crê “Porque o fim (objetivo) da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10:4). A lei é santa, justa e boa, porém, através da lei era impossível o homem se justificar, pois a lei era sombra da realidade que se encontra em Cristo “Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo” (Cl 2:16-17); “PORQUE sendo a lei a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem cada ano, podem aperfeiçoar os que a eles se chegam” (Hb 10:1).

Certa feita, Jesus e os discípulos estavam caminhando em um dia de sábado, e passando por uma seara, os discípulos de Jesus colheram espigas. Os fariseus de ponto criticaram a atitude dos discípulos de Jesus, ao que Ele respondeu apontando para Davi que, quando esteve em aperto e com fome, entrou no templo e comeu os pães da propiciação juntamente com os seus homens.

Jesus deixa claro que o sábado foi instituído por causa dos homens e não o homem por causa do sábado. E ao final da exposição, Jesus deixa claro que Ele é o Senhor que instituiu o sábado (Mc 2:23-28).

Ora, o sábado foi instituído para que o povo soubesse que precisavam de descanso para a alma, assim como precisavam de descanso para o corpo físico. Os filhos de Israel só teriam descanso quando perguntassem pelas veredas antigas e andassem nela, mas se faziam de rogados e rejeitavam andar segundo a palavra de Deus: “Assim diz o SENHOR: Ponde-vos nos caminhos,  vede, e perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho, e andai por ele; e achareis descanso para as vossas almas; mas eles dizem: Não andaremos nele” (Jr 6:16).

Jesus veio revelar a vontade de Deus aos homens e orientou a todos dizendo: “Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas” (Mt 11:29).

A instituição de sábados de festas tinha como foco a raiz de Jessé, ou seja, o Cristo – o Senhor que escondeu o seu rosto da casa de Israel – “E acontecerá naquele dia que a raiz de Jessé, a qual estará posta por estandarte dos povos, será buscada pelos gentios; e o lugar do seu repouso será glorioso” (Is 11:10); “E o efeito da justiça será paz, a operação da justiça, repouso e segurança para sempre” (Is 32:17).

De que adiantava guardar sábados e dias de festas, se eles não entrariam no repouso estabelecido por Deus? “Porque nós, os que temos crido, entramos no repouso, tal como disse: Assim jurei na minha ira: Que não entrarão no meu repouso; embora as suas obras estivessem acabadas desde a fundação do mundo” (Hb 4:3).

O escritor ao Hebreus deixa claro que Josué não deu descanso aos filhos de Israel, embora eles tivessem entrado na terra prometida com ele:

“Porque nós, os que temos crido, entramos no repouso, tal como disse: Assim jurei na minha ira Que não entrarão no meu repouso; embora as suas obras estivessem acabadas desde a fundação do mundo. Porque em certo lugar disse assim do dia sétimo: E repousou Deus de todas as suas obras no sétimo dia. E outra vez neste lugar: Não entrarão no meu repouso. Visto, pois, que resta que alguns entrem nele e que aqueles a quem primeiro foram pregadas as boas novas não entraram por causa da desobediência, Determina outra vez um certo dia, Hoje, dizendo por Davi, muito tempo depois, como está dito: Hoje, se ouvirdes a sua voz, Não endureçais os vossos corações. Porque, se Josué lhes houvesse dado repouso, não falaria depois disso de outro dia. Portanto, resta ainda um repouso para o povo de Deus. Porque aquele que entrou no seu repouso, ele próprio repousou de suas obras, como Deus das suas. Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência” (Hb 4:3-11)

Como poderia Josué ter dado repouso aos filhos de Israel, se Davi, muito tempo depois, profetiza acerca de um dia – hoje – quando haveria de ser dado o descanso? Como poderiam ter alcançado descanso, se Deus jurou que aquele povo não entraria no descanso de Deus?

Mas, se ouvissem a voz de Deus anunciada por Davi – hoje – e não endurecessem o coração, certamente entrariam no descanso do Senhor. Se é dito para dar ouvidos à voz de Deus, certo é que há um descanso.

Enquanto os escribas e fariseus ordenavam ao povo que se lavassem antes das refeições, Jesus deixa claro que todos os que o ouviam já estavam limpos pela palavra. Ele deixa claro que o que sai pela boca é o que contamina o homem e não o que entra “Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado” (Jo 15:3).

Cristo é a água limpa providenciada por Deus que purifica o homem de toda imundície, portanto, não é a agua natural que purifica o homem, mas, sim, o Verbo de Deus: “Então aspergirei água pura sobre vós e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei” (Ez 36:25).

A lei e os profetas testificavam do Cristo e Jesus deixa claro essa função das Escrituras: “Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam” (Jo 5:39).

A lei foi dada aos filhos de Israel para que reconhecessem que eram pecadores, porém, por causa da carne (sou filho de Abraão) a lei se tornou enferma, ou seja, não produzia o seu efeito, visto que os filhos de Israel se achavam justos, por serem descendentes da carne de Abraão (Rm 8:3).

Por mais que a lei arguisse os judeus como transgressores encerrando tanto judeus quanto gentios debaixo do pecado (Gl 3:22), pois essa era a função da lei, ela tornou-se inócua (enferma) frente ao argumento: ‘Temos por pai Abraão’ (carne).

A lei serviu de ‘aio’ para que os judeus fossem conduzidos a Cristo (Gl 3:24), os judeus, por sua vez, buscavam ser justificados por meio do que foi dado para preservá-los até a vinda do Cristo: “Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar” (Gl 3:23).

 

Os deveres dos mestres

“19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus” (Mt 5:19).

Jesus evidencia a importância da lei e dos profetas, ao destacar que, qualquer que aviltar (transtornar) um dos mandamentos, por menor que fosse e ensinasse aos homens, será nomeado ‘menor’, ‘sem expressividade’ (ἐλάχιστος)[2] no reino dos céus. Porém, aquele que obedecer e ensinar, será chamado ‘grande’ no reino dos céus.

Torcer o mandamento de Deus é violentar a própria alma, pois o peso decorre de suas próprias palavras: “Porém, ele lhe disse: Mau servo, pela tua boca te julgarei. Sabias que eu sou homem rigoroso, que tomo o que não pus, e sego o que não semeei”  (Lc 19:22); “Mas nunca mais vos lembrareis do peso do SENHOR; porque a cada um lhe servirá de peso a sua própria palavra; pois torceis as palavras do Deus vivo, do SENHOR dos Exércitos, o nosso Deus” (Jr 23:36; Ez 22:26; Pv 8:32-36).

O apóstolo Paulo é exemplo de alguém que é chamado ‘grande’ no reino dos céus, pois creu que Jesus é o Cristo (cumpriu o exigido na lei e nos profetas) e ensinava o evangelho de Cristo aos seus ouvintes, através da lei de Moisés e dos profetas: “E, havendo-lhe eles assinalado um dia, muitos foram ter com ele à pousada, aos quais declarava com bom testemunho o reino de Deus e procurava persuadi-los à fé em Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas, desde a manhã até à tarde” (At 28:23).

 

Justiça superior

“20 Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus (Mt 5:20)

Do mesmo modo que era impossível Nicodemos ver o reino de Deus, apesar de ser juiz, príncipe e fariseu, se não nascesse de novo, também era impossível à multidão que ouvia Jesus entrar no reino dos céus.

O reino dos céus estava vetado ao povo, do mesmo modo que o reino dos céus estava vetado aos escribas e fariseus, ou seja, a justiça deles era equivalente. Daí a ordem: se a justiça do povo não excedesse a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrariam nos céus.

Através desta colocação, Jesus estava demonstrando que os líderes da religião judaica não podiam entrar no reino dos céus, apesar de parecerem justos aos olhos dos homens (Mt 23:28).

Levando-se em conta a seguinte parábola: “E dizia-lhes uma parábola: Pode porventura o cego guiar outro cego? Não cairão ambos na cova?” (Lc 6:39), certo é que a multidão estava em igual condição à dos seus líderes religiosos (Mt 15:12).

Qual a justiça superior à dos escribas e fariseus? A justiça pela qual os seguidores de Jesus haveriam de ser perseguidos e injuriados (Mt 5:10-12).

Uma mudança de concepção (metanoia) nos ouvintes de Jesus era imprescindível, pois tinham zelo de Deus, mas, como profetizou Davi, sem entendimento (Sl 53:3). Por não conhecerem a justiça de Deus, procuraram estabelecer uma justiça própria, não se sujeitando à justiça superior: a que vem de Deus: “Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus. Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10:3).

A justiça da lei descrevia os seus ouvintes como mortos, pois o homem que fizesse o estipulado na lei haveria de viver pelo que cumprisse (Rm 10:5; Lv 18:5).

No evento das serpentes ardentes, temos uma alegoria que aponta para condição dos filhos de Israel, mortos em delitos e pecados, visto que qualquer que olhasse para a serpente de metal, viveria: “E disse o SENHOR a Moisés: Faze-te uma serpente ardente, e põe-na sobre uma haste; e será que viverá todo o que, tendo sido picado, olhar para ela” (Nm 21:8).

Para viver, era necessário cumprir a lei, que foi interposta com maldição: “Maldito aquele que não confirmar as palavras desta lei, não as cumprindo. E todo o povo dirá: Amém” (Dt 27:26). Para viverem, teriam que olhar para a serpente, segundo o que Deus ordenará ao povo, por intermédio de Moisés.

Os filhos de Israel desconheciam que a justiça superior foi dada gratuitamente a Abraão, quando Deus prometeu que, em seu Descendente, todas as famílias (judeus e gentios) da terra seriam benditas: “Porque a promessa de que havia de ser herdeiro do mundo não foi feita pela lei a Abraão, ou à sua posteridade, mas pela justiça da fé” (Rm 4:13).

Apesar de os filhos de Israel horarem a Deus com os lábios, o coração deles estava longe de Deus (Mt 15:8), e justamente quem veio explicar tudo acerca da lei e dos profetas (Jo 5:25), não foi reconhecido por eles, porque a mensagem de Jesus era contrária a religiosidade judaica (formalismo, legalismo e ritualismo).

Os judeus não se consideravam transgressores da lei e nem atinavam que, qualquer que tentasse guardar a lei, mas tropeçasse em um único ponto dela, era transgressor de toda lei (Tg 2:11). Os descendentes de Jacó não analisavam o motivo pelo qual a lei protestava contra eles, como povo rebelde e fazia referência a eles como injustos, tanto que Moisés deixou claro que os judeus não eram melhores e nem mais justos que os povos vizinhos (Dt 9:4 e 6), principalmente, porque os judeus eram ouvintes da lei, mas nenhum deles a praticavam (Jo 7:19; Rm 2:13).

 

Continua: ‘Não matarás’ e o Sermão da Montanha

 


[1] Hebraísmos –  refere-se a termos ou expressões exclusivas da linguagem dos hebreus (algo semelhante as expressões idiomáticas) que, pela peculiaridade da língua ou do contexto, pode trazer certa dificuldade aos tradutores para verterem o texto em outra língua.

[2] “1646 ελαχιστος elachistos superlativo de elachus (curto); usado como equivalente a 3398; TDNT – 4:648,593; adj 1) o menor, o mínimo 1a) em tamanho 1b) em valor: de administração de negócios ​1c) em importância: que é o momento mínimo 1d) em autoridade: de mandamentos 1e) na avaliação de seres humanos: de pessoas 1f) em posição e excelência: de pessoas” Dicionário Bíblico Strong; “1. elachistos (ελαχιστος). “o mínimo, o menor”, o grau superlativo formado da palavra elachus, “pequeno”, de cujo lugar foi tirado por mikros (o grau comparativo de elassõn, “menos” ). É usado acerca de: (a) tamanho (Tg 3.4. “bem pequeno” ); (b ) quantidade, a administração dos negócios (Lc 16.10. duas vezes; Lc 19.17); (c) importância (1 Co 6.2); (d) autoridade, de mandamentos (Mt 5.19); (e) avaliação, sobre pessoas (Mt 5.19. segunda parte: Mt 25.40,45; 1 Co 15.9): sobre uma cidade (Mt 2.6); sobre atividades ou operações (Lc 12.26; 1 Co 4.3, “mui pouco” ). 2. eiachistoteros (éXaxicrrÓTepoç), grau comparativo formado do n° I , é usado em Ef 3.8. “o mínimo”. 3. mikros (piicpóç). “pequeno, pouco”, é usado em At 8.10 (“o mais pequeno” ) e Hb 8.11 (“o menor”). com referência a hierarquia ou influência. Veja PEQUENO (1), A. n° 1.” Dicionário VINE.

Claudio Crispim

É articulista do Portal Estudo Bíblico (https://estudobiblico.org), com mais de 360 artigos publicados e distribuídos gratuitamente na web. Nasceu em Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, Brasil, em 1973. Aos 2 anos de idade sua família mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje. O pai, ‘in memória’, exerceu o oficio de motorista coletivo e, a mãe, é comerciante, sendo ambos evangélicos. Cursou o Bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública na Academia de Policia Militar do Barro Branco, se formando em 2003, e, atualmente, exerce é Capitão da Policia Militar do Estado de São Paulo. Casado com a Sra. Jussara, e pai de dois filhos: Larissa e Vinícius.

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